Com o normalmente exíguo prazo de validade do material jornalístico, a imprensa parece condenada à maldição de Sísifo, ou seja, por mais que labute e se esforce, não consegue que nada mude com a urgência desejável. Ou lhe falta fôlego, ou as coisas caducam por decurso de prazo. Parodiando Shakespeare, a busca pela verdade pode ser uma tarefa bem mais complexa do que supõe nossa vã filosofia. A começar pelo fato de que nem todos efetivamente anseiam que ela venha à tona, nua e crua, doa a quem doer. Ainda mais no âmbito da política, em que se contam nos dedos quem não tenha culpa no cartório ou o rabo preso.
Todos conhecem a história do PT e a guinada de 180 graus de seu discurso, após a chegada ao poder. O que sobrou da defesa intransigente e obstinada dos valores éticos, de transparência administrativa, de combate feroz à corrupção e outras utopias mais? Amostra grátis do rebotalho retórico que lhes restou bravatear abunda, com o perdão da palavra, entre os comentaristas deste OI, à revelia do lapidar exemplo de verdade que incomoda, representado pelo xamanismo em que se transformou o lulo-petismo. O qual só se mantém aos olhos dos descamisados e desvalidos – além, é claro, dos que se consideram excluídos ou vítimas do perverso sistema capitalista – com a cumplicidade da mídia.
‘Vício e virtude’
Apontar a degradação do ideário petista tem custado caro à imprensa, como se sabe. De porta-voz da oposição e das elites a golpista e conservadora, o repertório antimidiático não tem escrúpulos em encampar a própria defesa de malfeitores, como os 40 do mensalão e do presidente do Senado, só pelo prazer de contestar a imprensa. Debocham, inclusive, do clamor público que se fez ouvir, tanto no aplauso pelo indiciamento dos mensaleiros, como na revolta pela absolvição de Renam por seus pares de bandalheira, supõem-se. ‘Os orelhões aqui de Fortaleza estão congestionados de tanta gente protestando,’ ironizou um leitor, a propósito de meu artigo da semana passada. O que me fez lembrar de outra célebre fala hamletiana: ‘do que rides, estúpido?’etc etc.
Tripudiam, evidentemente, pela quase certeza de que mais uma vez tudo tende a acabar em pizza. Mesmo a festejada decisão de indiciamento por parte do STF não é garantia de que os acusados serão punidos. Na própria imprensa, noves fora a chapa-branca, não faltaram vozes pretensamente ilibadas para reprovar a, digamos, impetuosidade com que a mídia se debruçou sobre os dois episódios. Corretos sob o ponto de vista jurídico, posto que, de fato, não cabe à imprensa dar o veredicto sobre os acusados – no restante, tudo depende de como se encara a prática jornalística.
Para uns, desvendar crimes a partir de escutas clandestinas, flagrar intimidades delituosas de personalidades públicas, é invasão de privacidade e, portanto, ilegal; para outros, é um recurso válido, pois muitas vezes é a única forma de desvendar crimes, desbaratar quadrilhas. ‘A desconfiança é um vício no mundo particular e uma virtude no mundo público. Existe maior prova de que não se pode aplicar na política a mesma ética que aplicamos nas relações pessoais?’ (Otávio Frias Filho, no seu Antimanual de jornalismo).
As leis são como as virgens
Mas o calvário da imprensa não é bem esse, familiarizada como está, não obstante seu relevante papel na história da civilização, a má fama granjeada ao longo dos tempos. Vilania no mais das vezes imputada pelos que têm seus interesses por ela contrariados, como sói acontecer num certo país tropical, abençoado por Deus e – em que pese o ritmo alucinante com que o fogo e as motosserras vão dizimando suas florestas – bonito por natureza.
O que verdadeiramente aflige a mídia é a própria transitoriedade dos fatos, a brevidade de sua vida útil, precariedade assim resumida por um velho mestre do ofício: mais perecível que o leite, assim é o jornal. Daí, a inevitável sensação de dejà vu que costuma preceder coberturas marcantes, como foram as dessas duas penúltimas semanas, seja por saturação ou pela ausência de fatos novos. O que normalmente beneficia as partes visadas, os vilões da história, por assim dizer, visto que é deles e de suas malfeitorias que o jornalismo mais se ocupa.
Pois é justamente nisso que o obstinado presidente do Senado parece apostar para se desvencilhar das acusações e conservar o precioso cargo: ganhar pelo cansaço. Depois de vencer o primeiro round valendo-se de artimanhas que escandalizaram o país, não fosse o afastamento dos advogados responsáveis por sua defesa e a trégua teria garantindo o gás necessário para enfrentar as três representações que ainda terá pela frente. E somando aliados de última hora, com a solidariedade dos tradicionais áulicos de plantão, cuja defesa intransigente da ética e dos preceitos jurídicos soa, paradoxalmente, como música aos ouvidos dos que acham que as leis são como as virgens, foram feitas para serem violadas…
Aventada reação popular
Bem,voltando ao tópico inicial: é possível que, mais uma vez, o trabalho insano da imprensa tenha sido em vão, para regozijo dos governistas, enrustidos ou não. Também, não será a primeira nem a última vez que as esperanças num país melhor, mais justo e decente se diluam, por conta do sórdido vale-tudo do jogo político e da luta pelo poder. Mas quem mais perde com isso não é a imprensa, acostumada, como já disse, à sua inglória labuta ladeira acima. Perde mais, como sempre, a dignidade e a auto-estima dos brasileiros que ainda conservam a capacidade de indignação e que não se deixaram inocular pelo funesto vírus do fanatismo político-ideológico.
A estes, só resta acalentar o cívico sentimento de repulsa e, da próxima vez, caprichar mais nas urnas. E torcer para que, no íntimo de cada um, as coisas estejam efetivamente mudando, como deu a entender a aventada reação popular das últimas semanas.
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Jornalista, Santos, SP