Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um homem de muita fé

Hugo Chávez é um homem de fé. Ao contrário do que dizem, não é um indivíduo de opinião, mas de crença. Suas afirmativas são peremptórias. Ele crê na verdade – ou pelo menos quer que suas frases bombásticas tenham a aparência de uma verdade. Uma verdade que, para ser compartilhada, depende da crença conjunta de que ela existe em um estado de pureza absoluta. Contra essa verdade, não há argumentos. Ela é. Isso é fé.

Já a opinião é fruto de um julgamento reflexivo. Depende de um sistema de avaliação sobre um determinado fato que nem de longe – valha-me Deus – é universal. Por isso, opiniões são contrárias e múltiplas. Elas advêm da capacidade intelectiva de cada sujeito imerso em suas próprias condições interpretativas.

Chávez, por exemplo, acredita na imprensa – na grande imprensa – e no inimigo – o grande império (quase que dá para ouvir a trilha sonora de Darth Vader). Segundo informações veiculadas no site da BBC a respeito da visita do presidente venezuelano ao Brasil – em seu programa matinal de rádio Chávez teria afirmado que a ‘essa é a mão do império (…) a grande imprensa tem sido a principal arma do império para dividir-nos’ [ele e Lula].

Precisar, sem cair na simplificação

Se perguntado, provavelmente, Chávez diria que a imprensa – o grande quarto poder – manipula. Aliás, ele já deve ter dito isso. Essa frase faz parte do discurso dos crentes. Se manipulasse como crêem, talvez Lula não fosse presidente reeleito (está certo que foi somente no segundo turno), Renan Calheiros teria sido degolado em praça pública (bom, a imprensa não teve acesso à autoria dos votos e por isso não exerceu o seu poder), a corrupção já teria diminuído, afinal, após tantos e sucessivos escândalos fartamente cobertos pela mídia, os políticos já teriam tomado um ‘semancol’ e pegado mais leve com o dinheiro público. A verdade – se é que existe – é que não há controle algum sobre os efeitos provocados pelos meios de comunicação e sua enunciação de discursos.

Fora algumas pesquisas quantitativas e mais ou menos qualitativas, as instâncias da produção midiática pouco têm a falar sobre quem é o seu público. Esse é heterogêneo por sua própria natureza. Espalhados em condições sócio-econômicas e culturais diversas, interpreta um enunciado – seja ele qual for e em qual meio tecnológico estiver alojado – no mesmo número de sua pluralidade. Patrick Charaudeau denomina esse fenômeno de ‘efeitos de sentidos possíveis’. Para o pesquisador da linguagem midiática, a instância de produção da informação elabora o seu enunciado para um destinatário ideal designado como alvo, imaginado por ela, a quem visa afetar. Esse enunciado ainda vai ser transformado para um determinado sistema semiodiscursivo – imprensa escrita, televisão, rádio e meios digitais – com todas as restrições e limitações que esses meios impõem à mensagem pretendida.

Depois de transformado em notícia, o fato, finalmente, chega à instância da recepção. Essa é múltipla e aí são infinitas as possibilidades de apreensão daquela mensagem inicial. O efeito visado pelas mídias raramente coincide com os efeitos produzidos pela instância da recepção. Se coincide, é uma pequena parte do discurso e, mesmo assim, é complicadíssimo precisar sem cair na simplificação extrema.

O paradoxo da imprensa

Por outro lado, se – grifem o ‘se’ – a mídia manipula, também ela é manipulada por outras instâncias externas, principalmente a do poder político. A mídia submete-se ao seu modo de produção de sentido. Um jornalista reporta. Salvo alguns casos escandalosos, que logo são descobertos e merecem ser condenados, ao profissional não cabe inventar uma frase, um enunciado. Ele é obrigado a escrever o que um determinado ator social lhe disse, mesmo que intimamente saiba que aquilo tudo é um amontoado de ‘patacoadas’, já que muito raramente a instância do poder declara à imprensa o que realmente pensa: ela declara o que quer que seja publicado.

A mídia ainda, por seu caráter empresarial, precisa captar o maior número possível de leitores/espectadores/ouvintes e, imaginando esses receptores, tenta montar uma agenda que acredita que seja interessante a eles. Se não o fizer, a concorrência o fará e, então, adeus lucro. Portanto, se ela manipula, há uma via de mão dupla, tripla e dificilmente unidirecional nesta jogada.

A mídia tampouco é um poder. No máximo, às vezes, desperta alguma consciência adormecida. Poder significa deter a legitimidade de impor normas, sanções e punições. A mídia não faz isso. Tenta condenar e quando o faz recorrentemente comete erros. Não se configura como um poder. Fica ali, naquele trio – sociedade civil, política e imprensa – pendendo cada hora para um extremo, mas incapaz de determinar muita coisa. Ela fragmenta tanto, corre tanto atrás de novidades (para agradar o seu público que se cansa facilmente) que, não raro, é acusada de abandonar um determinado assunto que ainda renderia um bom caldo jornalístico. Mas se insiste muito, eis novamente o paradoxo. Um outro veículo descobre um novo escândalo e lá vai ela tendo que correr atrás do prejuízo.

Discurso típico de quem se acha

Já Hugo Chávez acredita – ou quer que acreditem – que a imprensa é uma ameaça aos seus propósitos – quisera fosse. Nada melhor do que eleger um inimigo comum para dirimir diferenças ideológicas sutis e colocar tudo e todos sob um grande manto de mentiras. Na história, alguns ditadores já tiveram sucesso nesta empreitada. O mundo de Chávez aparentemente é simples. Branco e preto. Poucas matizes no meio.

Menospreza o público – que talvez denomine de ‘massa’. Não crê em sua capacidade crítica. Esse é facilmente manipulável. Neste tipo de crença, algumas pessoas especiais nasceram para despertar as mentes entorpecidas pelo grande mal. Para nos redimir. Para nos salvar. Ou seja, discurso típico de quem crê, ou melhor, de quem se acha.

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Estudante do último período de Jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG