Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Procurando a freqüência, procurando a verdade

As acusações contra os dois pilotos norte-americanos na tragédia do Gol 1907 receberam uma cobertura de tamanho e duração quase inéditos. A imprensa cometeu os erros de sempre, recebendo sem ressalvas as acusações oficias e extra-oficiais, reservando a virtude jornalística de ceticismo somente para as declarações da defesa. No máximo, a defesa tem ‘sua versão’, oferece ‘o outro lado’, a procura da verdade sendo descartado a favor do modelo de cobertura ‘ele disse/ela disse’.

A dupla polícia-imprensa comete linchamentos diariamente. É corriqueiro – e a maneira pela qual se desenrolam, previsível. A absolvição dos pilotos será tachada de obra de interesses escusos, poder econômico, brechas na lei ou falhas da justiça. No máximo, ‘falta de evidências’ será admitido, deixando claro que os dois são culpados, mas escaparam.

Declarações de inocência, só mesmo para a atuação dos acusadores. As autoridades vão pôr a culpa na imprensa, a imprensa na polícia e, de qualquer forma, acusações falsas são o preço da liberdade de imprensa. Um preço que vale pagar, sendo que é o acusado que paga, e não o acusador.

Mas há uma grande diferença entre a queda do vôo Gol 1907 e os casos de sempre. Na aviação, quase tudo é gravado. Temos as falas dos pilotos e dos controladores, os movimentos dos aviões e as imagens dos radares, segundo por segundo. E, para culminar, havia uma testemunha ocular que é jornalista do jornal mais idôneo do planeta. Escapamos, neste caso, do reino da ‘versão’, espelhada nas declarações das autoridades e dos acusados. Podemos olhar direto para os fatos.

As regras de aviação também são exatas porque as conseqüências de uma regra que permita interpretação equivocada são fatais. É bem diferente da legislação normal, na qual brechas vêm de interesses divergentes; ou de um estatuto impreciso, que em vez de custar a vida dos passageiros, providencia sustento para advogados e contadores.

Deturpar evidências

Vamos, então, aos fatos, pois a riqueza de fatos é o que faz deste caso algo especial. Usando como fonte o relatório da CPI, vejamos o que este tem a dizer sobre as falhas do rádio e examinar o assunto de uma suposta ‘insegurança’ no comando do Legacy.

Mas primeiro, um breve esclarecimento sobre as conclusões preliminares da CPI e sobre o clearance.

A CPI usou, ‘entre as principais referências para o trabalho apuratório’, uma tradução da caixa-preta do Legacy. Mais exatamente, uma tradução dos diálogos sem a qualidade mínima para ser sustentável. Algumas das falhas inegáveis da tradução já foram apontadas aqui, em artigo anterior. Para quem quiser a tradução do relatório preliminar na íntegra, ela está disponível no blog do Joe Sharkey, com os diálogos em inglês e português, em versões paralelas, com os erros apontados.

Dada a precariedade da tradução em que se baseia, o relatório da CPI é uma estrutura edificada num alicerce de areia. Ainda mais: os diálogos são recortados para tirar frases do contexto, com o intuito claro de pôr a culpa nos pilotos. Quando as conclusões da CPI ficam estritamente ligadas aos fatos, como na análise do rádio abaixo, devem ser respeitadas. Mas quando fazem pulos mirabolantes – por exemplo, concluir que os pilotos poderiam ter acionado o código de falha de comunicações no transponder, depois de mostrar que não havia por que pensar que existisse falha – ficam além de qualquer comentário.

Não é justo criticar a CPI por falhas que podem não ser suas. Não consegui cópia do relatório da PF, nem do laudo nº 1.187/2007-INC. Quem traduziu mal a caixa-preta? Quem tirou frases do contexto? De quem é a culpa por ‘deturpar, alterar, estropiar’ – ou, para usar o verbo que o Aurélio fornece, lanhar – as evidências?

Informações adulteradas

Não me conformo que os pilotos sejam acusados pelo que não fizerem. Prefiro não comentar as conclusões infundadas da CPI sem antes saber se os deputados foram tragados pela vontade política de pôr a culpa onde mais convém, ou se foram induzidos a erro.

Os pilotos do Legacy ouviram um clearance completo, redondo, perfeito, para prosseguir a 37 mil pés até o aeroporto Eduardo Gomes. Ouviram e confirmam, conforme as regras do ar: repetiram, inclusive a altitude FL 370 e o destino SBEG (Manaus). Em resposta ao seu cotejamento, ouviram ‘afirmativo’.

Não há dúvida que prosseguiram conforme ordens dadas e confirmadas. Porém, há uma dúvida sobre as informações na investigação. O coronel Rufino, do Cenipa, disse em seu depoimento que ‘havia um ruído que essa transcrição não permitiu captar’ – exatamente no momento em que, em outra transcrição, o piloto coteja a sigla ‘SBEG’ do destino. Por que esse momento-chave é audível numas transcrições, e não em outras?

A conclusão incorreta de que os pilotos receberam um clearance incompleto vem, aparentemente, da transcrição em que ‘havia um ruído’. Essa divergência deve ser investigada. Não seria a primeira vez que informações são adulteradas num inquérito.

Doze tentativas

Houve acusações estapafúrdias que depois sumiram de fininho (como todas as acusações contra os pilotos), como a de que o Legacy estava fora de comunicação por rádio e deveria ter tomado providências. O relatório da CPI permite entender por que o assunto sumiu.

O Legacy foi informado que estava ‘sob vigilância de radar’, que os controladores estavam de olho nele. Assim sendo, era dispensado de chamar o ATC nos pontos que seriam de contato obrigatório. Como o coronel Rufino e outros informaram a CPI, seria de esperar que o Cindacta iniciasse o contato. Não precisava falar, mas ouvir sempre. Não se passaram mais de sete minutos sem que o Legacy ouvisse alguma transmissão, conforme a caixa preta. Os pilotos, portanto, não tinham por que imaginar que estavam fora de contato.

A ATC sabia que as comunicações na região são problemáticas – pilotos que costumam viajar na região sabem disso, mas os pilotos do Legacy, novatos nos céus brasileiros, só tiveram as informações oficiais, que não apontavam problema algum. Uma posição que foi sustentada logo depois da colisão pelo próprio ministro da Defesa.

Mas, chegando ao limite entre a área do Cindacta de Brasília e o de Manaus, o Legacy precisava, pelas regras, falar com controle. E assim tentou durante cinco minutos, em várias freqüências, duas ou três vezes cada, perfazendo um total de doze tentativas, uma delas, inclusive, no momento de colisão. Por que não conseguiu falar? Não seguiram procedimentos?

Comunicação ‘às cegas’

O rádio de um avião sintoniza somente uma freqüência de cada vez, enquanto o painel do controlador sintoniza várias. Qual a freqüências para cada região? O relatório diz:

‘A Carta de Rota é um mapa, publicado pelo Comando da Aeronáutica, que mostra as aerovias, os fixos, os rádioauxílios e outros elementos relevantes à navegação aérea. Esta carta mostra ainda as freqüências utilizadas pelo controle de tráfego aéreo em cada um dos setores representados.’

Os pilotos tinham tal carta a bordo, com a rota delineada. E chamavam as freqüências ali indicadas. Por que não foram ouvidos?

Das quatro freqüências apropriadas para aquele setor, fora a de emergência, três estavam desativadas no painel de controle. Como disse o relatório:

‘As freqüências grifadas foram aquelas utilizadas pela tripulação da aeronave buscando contato com o ACC Brasília, observando-se que duas delas estavam entre as três desativadas, não se descartando que tenha havido tentativas de utilização da terceira.’

Há um outro problema. Enquanto o Legacy estava ligando para Brasília, ouviu Brasília chamando. Só que Brasília estava chamando in blind, ‘às cegas’. A caixa-preta do Gol 1907 captou as palavras in blind, inaudíveis no Legacy. Depois do acidente, o Legacy fez contato com um avião da Polar Air porque este conseguiu falar com Manaus e Brasília, enquanto o Legacy não conseguia nem na freqüência de emergência. O que tinha o rádio da Legacy? O pergunta parece relevante.

‘Insegurança’ dos pilotos

Tratou-se de um claro caso de comunicação. Pelas regras, o Legacy não tinha obrigação de chamar o controle até chegar à fronteira com a área de Manaus. O normal seria aguardar o ATC chamar. Recebeu transmissões. Chegando na hora de falar com controle, tentou todas as freqüências, mas o ATC não estava ouvindo. Ainda, durante seus cinco minutos de tentativas, o Legacy ouviu o que pareceu uma resposta às suas chamadas. Não tinha, porém, motivo algum para considerar que estava com uma falha de comunicação rádio.

Esgotamos, de novo, o tempo e o espaço. Anteriormente, abordamos o assunto do clearance e vimos que realmente os pilotos prosseguiram em conformidade com um clearance completo e confirmado. Vimos, também, que a qualidade da tradução é inaceitável. Hoje vimos que os pilotos se comunicaram em conformidade com as regras e hábitos de rádio, não tendo porque se considerar fora de comunicação a qualquer momento.

Vimos também algumas inconsistências: uns descrevem o diálogo-chave como um clearance até SBEG e outros, como um clearance em que ‘havia um ruído’. A conferir.

Queria abordar ainda a suposta ‘insegurança’ dos pilotos. Como com o clearance e o rádio, se o assunto for tratado no plano dos fatos, dos dados, também a acusação é exposta como decorrente de má tradução, deturpação das evidências, ignorância e uma enorme vontade de colocar a culpa nos pilotos. Enquanto xingamentos e farsas cabem em qualquer espaço, expor a verdade exige um certo espaço e, lamentavelmente, estamos sem. Talvez em outra ocasião.

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Formado em Filosofia pela Universidade Yale e consultor empresarial