Se fosse a morte de um líder muçulmano, a imprensa certamente iria discutir a situação das mulheres orientais com seus véus e sua submissão aos valores religiosos. Será que alguém percebeu a absoluta falta de mulheres no noticiário sobre a morte do papa João Paulo II? Nenhuma comentarista, nenhuma teóloga, nenhuma figura importante do mundo feminino foi chamada aos telejornais. Era como se a imprensa tivesse determinado que papa, vivo ou morto, é assunto de homem.
O canal Globo News, que passou o sábado (2/4) fazendo entrevistas e ouvindo comentaristas sobre o futuro da Igreja Católica, chamou até o padre da paróquia de Ipanema (Rio de Janeiro) para preencher o noticiário com a sua provinciana visão dos fatos, mas foi incapaz de encontrar uma mulher que valesse ser ouvida.
Mulheres, quando apareciam no noticiário, eram as do povo, em Roma ou no Brasil, com lencinhos à mão, dando o toque ‘humano’ ao noticiário, com suas lágrimas pela perda do Sumo Pontífice. Ou, então, as beatas de igrejas do interior e da capital, rezando pelo Santo Padre, ainda em vida e depois de sua morte.
A brasileira mais ilustre a aparecer no noticiário do sábado foi a primeira-dama Marisa da Silva, convocada para acompanhar o presidente em seu pronunciamento público, seguido de uma rápida entrevista. Vestida de luto, num elegante tailleur preto e maquilagem discreta, fazia um chocante contraste com o terno cinza claro e gravata vermelha do presidente. Mas ele, pelo menos, teve a delicadeza de dizer ‘Marisa e eu’ (em vez de eu e Marisa), quando perguntado sobre sua posição a respeito do aborto. E, com o maior respeito pela posição do papa, reafirmou a política do seu governo, dizendo:
‘Marisa e eu sabemos que ninguém faz aborto porque quer. Faz porque precisa, principalmente o pobre. Por isso é um problema de saúde pública e precisa ser enfrentado’.
Sem autoridade
A imprensa deveria aproveitar esse momento em que a Igreja Católica vira tema obrigatório para discutir a situação da mulher diante dela (igreja que no Brasil ainda é a maior de todas).
O que pensam da Igreja Católica as mulheres pobres que têm filhos porque não podem evitar? Como se sentem as muito carolas que não podem casar na Igreja porque seu parceiro é divorciado? Como se sentem as freiras e teólogas que estudam a vida inteira, têm uma fé inabalável e sabem que jamais poderão exercer um cargo na Igreja, a não ser os de faxineiras, secretárias e outras funções indignas do sexo masculino.
A revista alemã Der Spiegel aproveitou a longa agonia do papa e chamou um teólogo para falar do pontificado de João Paulo II (edição de 31/3). No seu artigo, Hans Küng, diz:
‘O grande culto da Virgem Maria prega um conceito nobre da mulher, mas, ao mesmo tempo, a Igreja proíbe as mulheres de praticarem o controle de natalidade e se opõe ainda a que elas sejam ordenadas. As conseqüências: existe uma ruptura entre o conformismo aparente e a autonomia interna de consciência. Isso faz com que os bispos se voltem exclusivamente para Roma, indispondo-se com as mulheres e alienando-se delas, como foi o caso na disputa acerca da questão dos conselhos de orientação sobre o aborto na Alemanha. Em 1999, o papa deu ordem aos bispos alemães para fecharem esses centros de orientação, os quais emitiam certificados para mulheres que mais tarde poderiam ser utilizados para obter uma autorização para abortar. Tal atitude, por sua vez, resulta num êxodo crescente por parte daquelas mulheres que até então haviam se mantido fiéis para com a Igreja.’
Não seria o caso de a imprensa, ao discutir o número cada vez menor de ordenações, procurasse descobrir a influência das mulheres nessas estatísticas? Mas até nisso a presença feminina é pouco discutida. Ao mostrar que cada vez menos homens são atraídos pelo sacerdócio, ninguém vai procurar saber como andam os conventos e a ordenação de freiras. Como se, por não terem autoridade para administrar sacramentos, elas não tivessem qualquer importância, para a igreja e para a sociedade.
Leis rigorosas
Cairia muito bem uma pesquisa de fôlego que mostrasse como as mulheres católicas encaram a discriminação na igreja que as aceita como coadjuvantes e nada mais – enquanto as demais igrejas ocidentais usam a presença das mulheres para ganhar adeptos. É só ver o sucesso na TV de algumas igrejas evangélicas.
A Igreja Católica é definitiva em suas posições. Como disse o próprio papa (22/5/1994), na Solenidade de Pentecostes:
‘A Igreja, defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que – fiéis ao Evangelho – em todo o tempo participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus. Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja. Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, (…) , declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja’.
Nesses tempos em que duas mulheres são as favoritas nas próximas eleições presidenciais no Chile (duas disputam as primárias e qualquer delas que vença é favorita no pleito final), é estranho ver uma estrutura poderosa como a da Igreja Católica ainda manter-se como uma das organizações mais machistas do mundo. E, mais estranho ainda, é a imprensa nem lembrar de discutir o assunto no meio de tanta conversa jogada fora.
Nos próximos dias veremos cardeais chegando à Roma, especulações sobre quem será o próximo papa, os destinos da Igreja Católica e o que seria melhor para os governantes, católicos ou não. Mas podemos apostar que, nas horas e horas dedicadas ao assunto, ninguém vai discutir o que pode mudar para as mulheres com o fim do papado de João Paulo II e o começo de uma nova era.
Não lembramos que para a maioria das mulheres pobres – e católicas praticantes do Brasil -– a palavra da igreja ainda é lei. Uma lei cuja obediência não pode ser questionada. Mesmo que sejam leis tão rigorosas como as do islamismo, que para nós parecem atrasadas, machistas e discriminatórias.
Será que as leis da Igreja Católica com relação às mulheres não são igualmente malvistas pelas mulheres do Islã?
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Jornalista