Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem papas na língua,
cem línguas de papa



Cousas há que passam sem ser cridas e cousas cridas há sem ser passadas. Mais o melhor de tudo é crer em Cristo. (Camões)


Há cerca de dois anos, invisto meu tempo e os recursos da Capes na construção de um modelo teórico-metodológico capaz de representar ou de reproduzir as condições de produção, difusão e validação dos enunciados ditos científicos, ou supostamente com valor de verdade, na fase da história denominada pós-industrial, no intuito de observar e descrever possíveis alterações ocorridas em seus estatutos, em seus regimes de regras.


A despeito do que isso possa significar ou não para o leitor médio, pois que ele não existe, e a despeito de o modelo teórico-metodológico funcionar ou não, o que não vem mais ao caso, ocorreu-me que, assim como na física quântica, era preciso criar uma metáfora que desse conta, simultaneamente, de responder a todas as questões de ordem prática da pesquisa e de fornecer ao leigo uma espécie de simulacro do fenômeno em questão. Eis a solução, eis o novo problema: que metáfora será capaz de reproduzir as condições de produção, difusão e legitimação de um enunciado com valor de verdade, oferecendo, enquanto o executa, a possibilidade de observar-lhe alguma alteração, alguma mutação digna de nota?


Alguns messes se passaram, sem resultados, o que é sempre esperado em pesquisa. Quando me ocorreu, subitamente, assistindo aos telejornais da noite, que a contraditória cobertura da agonia, morte e redenção do pontífice João Paulo II – que inclui, não tão evidentemente assim, o caso do falecimento da mulher-símbolo da eutanásia – era o reflexo da imagem que representa estes tempos pós-modernos, pelo menos em sua grande síntese: a ironia de saber que este mundo é feito de coisas cridas que há sem ser passadas e de coisas passadas que há sem ser cridas, e de que, na dúvida, é melhor crer no Cristo do que no estado de saúde do papa.


Sobre esta surreal cobertura da improvável saga póstuma de João Paulo II, que gerou meu assombro diante de minha própria desconfiança herética, deve ser dito, sob pena de despertar ainda mais o ódio dos observadores da imprensa, que esta se reduz, invariavelmente, para não dizer oportunamente, a meia dúzia de imagens do papa, que incluem sempre uma cadeira de rodas motorizada, que se move, ao que parece, dirigida por controle remoto, assim como os braços e a cabeça do Santo Padre; num movimento de benção maquinal, que se repete, brusca, imprecisa, gélida, e sobretudo muda.


A esta massa pasteurizada de imagens, adiciona-se uma curiosa tomada das costas do pontífice assistindo à TV, numa espécie de colocação em abismo que denuncia surdamente a verdadeira condição da saúde do papa: a condição de informação, de discurso, de escritura, enfim, a condição de uma espécie de ficção científica da metalinguagem capaz de abençoar ou de amaldiçoar, para todo o sempre, nas mais de cem línguas do papa, o insólito destino de mais de bilhão de crentes em todo o mundo.


Eis, portanto, a ‘minha’ metáfora, eis, no entanto, a imagem sacrílega que reflete em seu corpo de linguagem as incríveis ficções de um tempo incrivelmente pós-moderno.

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Pesquisador, Itaboraí, RJ