Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sistema
precisa de cirurgia

A coluna ‘Televisão’ da Folha de S.Paulo de terça-feira (29/3) [assinantes do jornal ou do conteúdo do UOL podem ler o texto aqui] traz uma nota sob o título ‘Warner quer cirurgia em brasileira feia’. O texto, de Daniel Castro, é sobre a decisão do Warner Channel, uma das grandes redes internacionais de TV por assinatura, de começar a produzir no Brasil uma versão de seu reality show The Swan. Nele, os participantes são submetidos a cirurgias plásticas e o programa os acompanha por algum tempo para documentar o que muda em suas vidas.


A informação não seria digna de destaque, exceto por duas razões. A primeira é que a realização no Brasil de versões de séries importadas consolida o que há de mais perverso na relação entre as redes estrangeiras e o produtor brasileiro – a exportação não apenas de conteúdo, mas de modelos de conteúdo. A segunda reside no fato de que essa agressão é perpetrada com dinheiro do contribuinte brasileiro.


Não é a primeira vez que séries americanas são adaptadas no Brasil e pelo mesmo instrumento. Isso já aconteceu, por exemplo, com outro programa do People & Arts, no qual a cirurgia plástica não ocorria no rosto, mas nas casas dos participantes – a brincadeira consistia em redecorá-las.


As redes internacionais de TV por assinatura fazem circular diariamente cerca de 4.500 horas de programação no Brasil – das quais menos de 500 são brasileiras. Produções nacionais independentes não ocupam 100 horas. É um massacre volumétrico. E por incrível que pareça, não é o maior dos males que essa relação viciada está causando à televisão brasileira.


‘Licenciar o formato’


A maior agressão não está na exportação de conteúdo, mas na de modelos. Toda a programação das redes internacionais, distribuída maciçamente pelo mundo e em especial no Brasil, pelo tamanho de seu mercado, segue as normas práticas da construção de uma programação feita para ser vista ao mesmo tempo nos EUA, na Europa, na Ásia, América Latina e África. São modelos pueris, que valem para todas as redes e que passaram a constituir, até pela repetição, o modelo universalmente aceito de criação televisiva.


Para fazer parte desse universo mágico, o produtor brasileiro tem uma única opção: comprometer-se a construir um produto tão igual quanto possível ao modelo original. Deixa de ser um criador, abre mão do direito de pensar, para sobreviver como uma espécie de explorador de franchising de modelos televisivos de fora – e assim colaborar para sedimentá-los.


Esse conceito é claramente expresso na matéria da Folha pelo diretor-geral do Warner Channel para a América Latina, Michael Spinelle: ‘Se a versão americana for bem-sucedida, certamente consideraremos a hipótese de licenciar o formato para uma versão brasileira. Já conversamos com potenciais parceiros’.


Renúncia de investimentos


Tais conversas constituem uma face ainda mais cruel dessa relação. Implicam que o produtor brasileiro vai não apenas se resignar a copiar da melhor forma possível um modelo importado, mas servir de testa-de-ferro para levantar recursos para a produção, através do artigo 39 da Medida Provisória 2228.


Este artigo prevê que as programadoras estrangeiras podem transformar os 11% que são obrigadas a pagar de Condecine [Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional] em apenas 3%, a serem aplicados em co-produções nacionais. É uma das melhores formas já encontradas para incentivar a aplicação de recursos das redes estrangeiras em produção brasileira, mas esse mecanismo não foi concebido para financiar versões brasileiras de programas estrangeiros – e muito menos para substituir os recursos de que as redes estrangeiras já dispõem para aplicar em suas produções.


Tecnicamente não é dinheiro público, já que não resulta de renúncia fiscal. Trata-se, porém, da renúncia a um volume de recursos que seria destinado à produção audiovisual independente brasileira.


A fome do monstrengo


Em outras palavras: as redes estrangeiras, que num primeiro estágio já despejavam maciçamente conteúdo próprio sobre os assinantes brasileiros, passam agora, num segundo estágio, a sugerir a existência de um modelo único de criação televisiva – que sirva naturalmente aos propósitos de exploração universal da programação. E evolui, finalmente, para substituir os recursos que tem para produzir pelos caraminguás do contribuinte brasileiro. É como cobrar da família do condenado a bala que utilizada para executá-lo.


A uniformização dos modelos de conteúdo é um dos piores legados da TV por assinatura em todo o mundo. Com a multiplicação da demanda que vai decorrer da implantação das plataformas digitais, essa padronização poderá ser fatal.


O que o espectador brasileiro e do mundo estão vendo pelos 180 canais que fazem parte dos lineups de suas operadoras não é absolutamente a única forma de se fazer televisão. A universalização dos sistemas de distribuição tem que servir a um ambiente de trocas, não à globalização do consumo.


Se é para utilizar o dinheiro público em alguma forma de cirurgia, como o proposto pelo reality show do Warner Channel, não é nas mulheres que têm algumas rugas a mais, mas na modernização desse sistema – que tem cara, corpo e atitude de monstrengo.