ALBERTO DINES
O jornalismo brasileiro de hoje, com raras exceções – e as exceções são todas grisalhas –, não tem nada a ver com o jornalismo dos anos 1960, 70 ou 80, essa é a grande verdade. As pessoas esqueceram, não conhecem detalhes, não fazem as conexões, não arrumam, não costuram tudo. E a prova disso é uma reação que eu acho muito paroxística no caso desse escândalo [iniciado com o vídeo da propina dos Correios temperado com as denúncias do mensalão e do financiamento irregular de campanhas eleitorais]. Quer dizer, o escândalo é grande, é forte, está aí, mas há em volta desse escândalo toda uma excitação desnecessária. Eu acho que os fatos são evidentes, não precisam ser elaborados nem magnificados, mas o trabalho político da imprensa não é o mais equilibrado. Toda essa conversa de impeachment [do presidente Lula] são declarações. Ora, a imprensa não é obrigada a dar todas as declarações. Aí começa a dar declarações de políticos irresponsáveis, que querem aparecer e lançar algumas idéias, e a coisa vai. Não interessa neste depoimento, mas eu acho – e aí fica o meu testemunho para história – que todas essas tentativas casuísticas de diminuir o mandato do presidente Lula, de fazer uma reforma constitucional ou fazer o impedimento, tudo isso é uma forma de esquecer o passado.
LUIZ WEIS
No ano passado, o Correio Braziliense e o Estado de Minas publicaram fotos de um padre canadense que foram identificadas pela Clarice Herzog, por mim e por outras pessoas como do Vlado – erradamente. E o jornal bancou aquilo tudo. Mas o ponto não é esse. O ponto é a oportunidade para o renascimento do caso. E, mais do que isso, a serventia de mostrar pelo menos a uma parcela dessa geração que se encaminha para o jornalismo um pouco daquela história. Eu escrevi um prefácio, a pedido do Fernando Pacheco Jordão, para a nova edição do livro dele sobre o caso – Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil –, e digo nesse prefácio, entre outras coisas, que a nota [distribuída pelo Exército depois da divulgação das fotos, leia aqui] era como se fossem os mortos falando –havia dois mortos [Vlado e o operário Manoel Fiel Filho] –, os que estão mortos e aqueles que morreram e não sabem ainda que morreram. Mas eu não sou muito otimista, não. O João Batista Andrade [autor do documentário ‘Vlado, 30 anos depois’] me contou que montou a câmera dele na porta da Fundação Cásper Líbero [em São Paulo], e ele perguntava à garotada que estava saindo da faculdade, ou entrando, quem era Vlado. ‘Quem é Vladimir Herzog?’ E a esmagadora maioria das pessoas não sabia. Ainda que o Centro Acadêmico da Faculdade de Jornalismo da Cásper Líbero se chame Vladimir Herzog. Eu não estou dizendo que os alunos de Jornalismo não soubessem, isso é improvável, mas tinham uma noção muito, muito vaga.
Uma vez eu escrevi que ele morreu duas vezes. A primeira vez que ele morreu não foi quando o mataram: a primeira vez foi quando ele tomou a decisão trágica de voltar ao Brasil, já [sob a vigência] do Ato Institucional nº 5. Aí foi uma circunstância: a Clarice já estava no Brasil, eles moravam em Londres, veio o AI-5, o Vlado balançou, não sabia se continuava na BBC e trazia de volta a Clarice… Ele me escreveu muito, a gente se escrevia muitas cartas, e ele dizia: ‘O que é que eu vou ficar fazendo aqui? Tenho que ficar no Brasil’. Ele voltou, afinal.
Eu não sei honestamente o que o Vlado representa hoje, eu não quero falar aqueles conceitos óbvios, a liberdade versus a tirania, a luz, a decência, a integridade versus a treva. E eu também não sei como é que o Vlado veria o Brasil hoje. Termino meu pequeno prefácio dizendo: ‘Ô Vlado, o que você acha do que está acontecendo agora?’. Eu não sei, acho que não respondi a essa pergunta que me parece crucial dentro desse trabalho. O que representa o Vlado, hoje? Eu acho que nós, no geral, nos movemos bem, tirando esse soluço, este ladrar da nota do Exército em cima das fotos que afinal não eram do Vlado. Mas no geral nós caminhamos, nós somos uma sociedade livre. Nós estamos mergulhados numa crise política infernal, temos um zilhão de coisas a nos queixar com toda razão deste país, e que são óbvias: a miséria, a desigualdade, a violência, a truculência, a brutalidade, a degradação urbana, a degradação ambiental. Mas nós temos uma estabilidade política que talvez tampouco pareça importante para quem não viveu o oposto disso.
JOSÉ VIDAL POLA GALÉ
Tem muita coisa para ser resolvida. A gente vive num país em que a justiça social tem que dar muitos passos à frente. O sonho é que a vida melhore, que mais gente tenha acesso à felicidade, mais gente não tenha que ficar preocupada com coisas que atrapalham a vida, que todos tenham acesso à escola, que todos tenham acesso à diversão, a felicidade na sua plenitude, uma qualidade de vida melhor. Eu procuro fazer isso no meu trabalho. Eu sempre procuro trabalhar para que aquilo que eu boto no ar, lá na televisão, seja útil para quem vê, seja útil para despertar a consciência, o espírito de solidariedade, a consciência crítica e a participação. Eu sempre tenho a preocupação de colocar no ar uma coisa conseqüente. E me dá uma satisfação quando eu consigo fazer isso. Meu sonho é que isso continue e vai continuar. Tem gente nova entrando no mercado profissional que também tem essa preocupação.
LUIZ WEIS
A ditadura matou Vlado, amputou nossas vidas, por tudo o que deixamos de fazer, que não pudemos fazer, nós, os que estamos vivos, o que não nos foi permitido desenvolver como cidadãos, como profissionais, como jornalistas nesses anos… Alguns o fizeram: tem gente que faz pacto com o diabo, tem gente que não faz, alguns fizeram pacto com o diabo para uma causa muito boa e documentaram a ditadura melhor do que ninguém. Nostalgia? Nostalgia é uma palavra que obviamente não se aplica, mas você tinha um momento em que as condições todas estavam se armando no Brasil, tinha um surto de industrialização, tinha uma demanda popular, finalmente as classes populares deixaram de ser interlocutoras afônicas do processo político. Você tinha o crescimento eleitoral do PTB absolutamente consistente desde 1946: toda eleição o PTB tinha mais votos, elegia mais deputados federais, e era certo que se nada tivesse acontecido, Juscelino [Kubitscheck] se elegeria presidente [nas eleições presidenciais originalmente previstas para 1965], o PTB seria a bancada majoritária num Congresso de centro-esquerda. Com vícios, evidentemente: não somos uma Noruega: o populismo, as amarrações entre o Estado e o sindicato, eu não vou fazer toda uma teoria sobre o Brasil, mas é evidente que na soma algébrica das coisas ruins e das coisas boas você estaria melhor do que está; e não se teria, enfim, amputado uma, duas gerações dos que ‘foram no rabo de foguete’. E o Vlado não era a favor, não éramos a favor de partir de rabo de foguete. Sabíamos que isto era um equívoco político. Estávamos no Partido Comunista não porque fôssemos comunistas, quiséssemos transplantar a União Soviética [para cá], mas porque era a única organização política que tinha uma visão realista das possibilidades da luta pela redemocratização, e costurou o PMDB, costurou a OAB, costurou a igreja, era realmente uma política de articulação. O papel do Partido Comunista naquele período da luta pela redemocratização foi ofuscado pelos movimentos posteriores. Claro que houve as greves de São Bernardo, o Partido Comunista não teve nada com isso, isso é coisa que veio do Lula, dos novos, do novo sindicalismo. Mas observando bem nas cronologias, as condições, a campanha pela Anistia, todo o movimento, os advogados, tudo isso teve articulação de gente. Para nós era muito claro que esse era o caminho e, como jornalistas, qual era a nossa parte nisso? Era informar até o possível, informar com a concepção que o Vlado tinha de jornalismo: ajudar as pessoas a pensar. O jornalismo que o Vlado queria continua sendo e será sempre o jornalismo necessário.