Uma porção de alertas sobre a inflação soou nas últimas duas semanas, mas a imprensa pouco fez para articular o noticiário e presentear o leitor com uma boa discussão sobre o assunto. O primeiro aviso importante partiu do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Se nada for feito para conter a tendência, em 2009-2010 a alta de preços poderá estar na faixa de 5% ao ano – e a caminho de patamares mais elevados, naturalmente.
O segundo alarme foi acionado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), poucos dias depois, em seu boletim de conjuntura. A produção industrial vai bem, segundo o boletim, mas o horizonte não está limpo. Pressões inflacionárias podem criar problemas pouco adiante.
A terceira advertência apareceu no Relatório de Inflação do Banco Central (BC). Neste e no próximo ano o aumento geral de preços ficará pouco abaixo da meta oficial, 4,5%, mas a tendência é de aceleração.
Na semana passada, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) chamou a atenção para a elevada ocupação da capacidade produtiva – um recorde – e a CNI, numa pesquisa sobre expectativas dos consumidores, mostrou a nova preocupação dos brasileiros com a remarcação de preços.
Curiosidade política
Nenhum grande jornal combinou essas peças todas nas páginas do noticiário. No entanto, os comentários e análises distribuídos por aquelas fontes tinham importantes pontos comuns – além do tema central. Todos os boletins deram destaque ao elevado uso da capacidade produtiva. Três deles – da CNI, do Ipea e do BC – chamaram a atenção para o rápido aumento do gasto público e recomendaram maior controle da despesa como forma de conciliar a continuação do crescimento econômico e a contenção dos preços.
A maior parte dos jornais nem mesmo destacou os boletins do Ipea e da CNI, apesar da qualidade técnica do material, muito mais sofisticado que a habitual choradeira contra os juros e o dólar barato – esta, sim, geralmente valorizada. Qual a explicação? Pode-se apenas conjecturar.
A choradeira geralmente ocorre durante entrevistas coletivas ou em curtas manifestações distribuídas por e-mail, como os comentários habituais sobre as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom). Uma boa avaliação de boletins como os do Ipea e da CNI exige um esforço de leitura atenta e de avaliação pelo próprio repórter ou editor. Vale a pena, mas dá algum trabalho.
O exame do boletim do Ipea, especialmente do editorial introdutório, seria justificável, desta vez, até pela curiosidade política. Como seria o primeiro editorial produzido pelo Grupo de Conjuntura depois da transferência do instituto para a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, do professor Mangabeira Unger? A curiosidade parece não ter funcionado nesse caso.
Faltou explicar
Outro exemplo de moderação no esforço foi o noticiário da eleição do novo diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, ex-ministro de Economia da França. Na terça-feira (25/9), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o apoio brasileiro a seu nome, depois de um encontro com o presidente francês Nicolas Sarkozy, em Nova York. O apoio foi reafirmado pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, na véspera da escolha.
O ministro Mantega havia protestado, no começo do processo eleitoral, contra a manutenção do velho acordo informal entre Estados Unidos e Europa: presidência do Banco Mundial sempre para um americano, chefia do FMI sempre para um europeu. Mas o acordo funcionou de novo, e o governo brasileiro justificou sua posição, oficializada no último instante, mencionando a promessa de Strauss-Kahn de trabalhar pela reforma política do FMI.
O próprio escolhido voltou a falar sobre esse compromisso numa breve declaração logo depois de confirmada sua eleição. Todos os grandes jornais citaram esses dados, mas nenhum explicou, pelo menos até sábado (29), como funciona o FMI e qual a mudança desejada pelo governo brasileiro e por outros governos de economias em desenvolvimento. Apenas um artigo publicado pelo Estado de S.Paulo mencionou rapidamente a atribuição de cotas maiores, no ano passado, à China, à Coréia do Sul, ao México e à Turquia.
Faltou explicar a relação entre cotas e poder de voto e mostrar, entre outros detalhes interessantes, a desproporção entre as cotas e o tamanho da economia de certos países (alguns emergentes são muito maiores que alguns industrializados europeus, mas sua participação no capital do Fundo e no poder de decisão é menor). Faltou contar também por que o Brasil ficou fora da primeira distribuição de cotas adicionais a emergentes, oficializada no ano passado na reunião do Fundo, em Cingapura.
Quebra-cabeças
Com um pequeno esforço teria sido possível contar, até com algum humor, uma boa história. Valeria a pena, por exemplo, mostrar o poder de veto americano em questões importantes, com o controle de cerca de 17% das cotas. O leitor receberia muito mais que a vaga informação sobre uma certa reforma desejada por alguns governos.
O mesmo bom humor serviria para recordar a eleição de Rodrigo de Rato, o atual diretor-gerente e iniciador do processo de reforma. Por ser espanhol, foi amplamente apoiado pelos governos latino-americanos, incluído o brasileiro. Se alguém esperava moleza para os latinos, fez a aposta errada. A Argentina, o único país da região em crise financeira, foi tratada com o rigor de praxe.
A passagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por Nova York, para a abertura da Assembléia Geral da ONU, foi coberta burocraticamente pela maior parte dos jornais. Só o Estado de S.Paulo fez um esforço perceptível para ir além do mero registro de eventos e declarações. Ao dar destaque, desde o início, ao relatório crítico do suíço Jean Ziegler sobre os programas de etanol, pôs em contexto o discurso de Lula: mais que um manifesto a favor dos biocombustíveis, era uma resposta a um ataque patrocinado pela própria ONU. Nesse caso, as peças foram juntadas e o leitor ganhou.
******
Jornalista