Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ninguém faz a cabeça de quem lê. Só o leitor

A Câmara Brasileira do Livro (CBL) informa que em 2006 o governo foi o maior comprador de livros do mundo. E comprou bem baratinho. Cada um dos 96.910.126 volumes custou 6,35 reais; para tanto, desembolsou 616 milhões de reais. Neste caso, aproveitou muito bem o dinheiro público. Que livro o leitor pode comprar por 6,35 reais? Cada exemplar custou menos do que uma revista, com o agravante de que livro não tem anúncio. Nem na capa, nem nas páginas internas.

Foi um avanço em relação a 2005, quando comprara 65.182.040 exemplares ao preço médio de 5,78 reais, pagando 377 milhões de reais.

Foi de Ana Paula Sousa, em CartaCapital, uma das melhores reportagens sobre o livro didático, ao deslindar o contexto das denúncias feitas pelo jornalista Ali Kamel em O Globo (18/9/2007): ‘Nossas crianças estão sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada. Algo precisa ser feito, pelo ministério, pelo congresso, por alguém’ [ver ‘A polêmica sobre a nova história‘].

O juízo de Ali Kamel é de uma obviedade atroz, mas isso não foi destacado por ninguém. Nem por CartaCapital. Evidentemente, também a cabeça de Ali Kamel, assim como a deste colunista, ‘foi trabalhada’ nas escolas que ambos freqüentaram, ambos ‘foram enganados’ quando crianças e nada foi feito por nenhum ‘ministério, congresso, por alguém’. Ambos, por certo, leram muitos outros livros. E assim nenhum dos dois continuou enganado.

Alunos sempre foram ‘enganados’

Na escola, aprendi que Alexandre tinha sido um grande homem, um dos maiores de todos os tempos. Um dia topei com este parágrafo no Sermão do Bom Ladrão, do padre Antônio Vieira:

‘Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. `Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?´ Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres’.

Todos os alunos sempre foram enganados sobre outros assuntos. Ensinaram-lhes o número errado de planetas; ensinaram-lhes que a democracia grega era exemplar (como, se votavam cerca de 200 pessoas representando uma cidade inteira?); ensinaram-lhes a odiar Nero, que incendiou Roma (mas não lhes ensinaram que ele fez a reforma agrária na África, o que Santo Agostinho reconhece de passagem, num livro sobre música); ensinaram-lhes primeiramente que Getúlio Vargas foi ‘pai dos pobres’ e depois que foi ‘mãe dos ricos’; ensinaram-lhes que ele era amado, depois que ele era odiado, mas para isso tiveram que omitir que ele, deposto, foi reeleito pelo povo e que, apesar de tantas denúncias, não era corrupto, nem havia mar de lama no Palácio do Catete, apenas uma pocinha. Ainda menor se comparada com os governos de hoje. Etc.

Nos anos 1970, o escritor Osman Lins debateu-se quase solitário em livros como Problemas Inculturais Brasileiros e Guerra sem Testemunhas. Ninguém lembrou este autor ao escrever sobre o que ele tanto denunciou.

Trajetória de Paulo Renato

Fazer a cabeça das crianças é coisa muito antiga. Alguns livros de referência – mas nossos jornalistas, por norma, lêem pouco e por isso não podem referir livros que não leram – poderiam ajudá-los, como é o caso de Para Ler o Pato Donald, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, escrito num período em que o governo de Salvador Allende enfrentava o jogo sujo do governo dos EUA, cujos funcionários ajudaram a assassinar o presidente e seus ministros. E Augusto Pinochet, o ditador que os EUA tanto ajudaram, foi para a cadeia na Inglaterra, anos depois. E semana passada a viúva e os filhos foram presos no Chile, acusados de corrupção. Também é bom ler Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino.

Ana Paula Sousa destacou, em CartaCapital, que as denúncias de doutrinação petista não procediam: o livro que serviu de cavalo de batalha, Nova História Crítica (Nova Geração Editorial, 319 páginas), de Mario Schmidt, foi escolhido no governo de Fernando Henrique Cardoso.

A jornalista lembrou também que Paulo Renato Souza, ministro da Educação nos dois governos de FHC, tornou-se consultor do grupo editorial Santillana, líder de vendas de livros para o governo federal.

Mas diz pouco sobre o ex-ministro. Ex-reitor da Unicamp, onde enfrentou uma dura onda de calúnias antes de ser eleito para a reitoria, trabalhou também no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e, em São Paulo, foi secretário da Educação no governo Franco Montoro.

Heranças benditas

Paulo Renato Souza, deputado federal (PSDB-SP), se nada tivesse feito no MEC, apenas este programa de compras de livros, depois objeto de sucessivos aperfeiçoamentos, teria deixado seu nome na história como líder de um projeto que seguiu o conselho dado por Castro Alves, ainda no século 19, enaltecendo o livro em seu belo poema O Livro e a América:

‘Oh! Bendito o que semeia/ Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar!/ O livro, caindo n´alma/ É germe – que faz a palma,/ É chuva – que faz o mar!’

Que seja criticado por seus defeitos, não por suas qualidades. O que ele fez com a política de livros, fez também com o processo de avaliações nas universidades, ainda excessivamente quantitativas, mas ainda assim avaliações. Antes dele, as avaliações, ou não existiam, ou eram pífias.

O governo Lula soube manter políticas deflagradas por seu antecessor (no primeiro mandato; agora o antecessor dele é ele mesmo) de que são exemplos a bolsa-escola, a avaliação das universidades e a compra de livros, aperfeiçoando essas boas iniciativas, mas infelizmente o presidente e a mídia insistem em comparações equivocadas, referindo-se à ‘herança maldita’. Neste caso, foram três heranças benditas. Tanto que as manteve.

Ajustes indispensáveis

O jornalista LuIs Nassif foi direto ao assunto no seu blog:

‘As campanhas recentes contra livros didáticos têm como pano de fundo um mercado milionário. Só para 2008, as compras do MEC chegarão a R$ 186,7 milhões para o ensino médio e em R$ 560 milhões para o fundamental. Desse total, a Moderna (controlada por capital espanhol) vendeu R$ 212 milhões, R$ 125 milhões a mais que no ano anterior. O ex-ministro da Educação Paulo Renato de Souza é consultor da empresa.’

Nassif lembrou também outra coisinha. ‘A editora Abril, que edita a Veja, sempre tão impiedosa com o governo Lula, vendeu, para 2008, R$ 162 milhões ao MEC através de suas controladas editoras Ática e Scipione’, um aumento de R$ 73 milhões em relação a 2007!

O colunista deu outra nota esclarecedora: ‘A editora Saraiva vendeu R$ 98 milhões para 2008 contra R$ 39,2 milhões em 2007’. E concluiu: ‘Dentre as dez maiores, há pouco espaço para pequenas editoras ou autores individuais.’

Mario Schmidt, o Paulo Coelho dos livros didáticos, vendeu milhões de exemplares. Mas o governo não obrigou as escolas a adotar o seu Nova História Crítica. Ele foi escolhido por uma comissão de professores.

De pequenos ajustes indispensáveis, e que já estão sendo feitos, fizeram um cavalo-de-batalha para criticar o governo Lula. Miraram em Fernando Haddad e acertaram em Paulo Renato Souza. Nos dois casos, os alvos estão errados. O que precisa ser atacado é o problema, não os dois ministros. Um criou o programa, outro o manteve, como já fizera Tarso Genro, aperfeiçoando-o. E o programa é bom.

Eternos são os livros

Que houve acerto, já sabemos. Antes, muitos alunos nada liam porque não havia livros. Agora lêem, e lêem mal, em muitos casos, porque os livros escolhidos não foram os melhores.

Está de bom tamanho. Mudemos os livros, aperfeiçoemos as formas de escolha e daremos mais um passo à frente. O principal já foi dado: o Brasil tem um projeto de livro didático.

Qual é a responsabilidade da mídia? Deixar de ser irresponsável, deixar de tomar partido a priori, sem examinar, com a devida isenção, o problema.

O que tem havido é um combate que deveria dar náuseas em qualquer intelectual: abdicar de sua capacidade crítica para endossar ou reprovar um governo, qualquer que seja ele.

Todo governo passa, dure quatro, oito ou mais anos. O intelectual, porém, tem no mínimo a vida inteira para ser examinada sua contribuição ao país. E, se deixar livros, nem a morte impedirá que ele continue na berlinda, pois eternos são os livros, não os autores.

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br