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‘Eu não sou juiz, nem promotor. Não vou julgar ninguém.’ [José Luiz Datena, no Brasil Urgente (Band)]**
‘Ele cometeu crime comum de assassinato e deveria ser julgado em júri popular.’ [ José Luiz Datena, em edição anterior do mesmo programa]**
‘Não sou eu que vou julgar.’ [José Luiz Datena, nessa mesma edição anterior, em cuja legenda se lia: ‘Promotor assassino é mantido no cargo’]**
‘Tenho certeza de que os desembargadores vão julgá-lo da forma como ele merece. Vão condená-lo.’ [Idem]Comecemos com uma exegese que se faz necessária, dada a flagrante incoerência que emana desse conjunto de enunciados. É preciso esclarecer.
O autor dessas assertivas sobre o Caso Thales Shoedl (ver ‘O linchamento do promotor‘ e ‘O relato do acusado e das testemunhas‘) é um só . É jornalista. Um jornalista influencia muita gente. De um jornalista, mais do que se pode esperar, deve-se cobrar, peremptoriamente, que fale e vá ao encontro da verdade, com a obstinação dos justos.
O que pensar de um jornalista que, ao falar de si mesmo, de suas convicções, de suas próprias opiniões, apresenta ao público um apanhado de verdades que se contradizem? Em dado instante, evoca incompetência para julgar. Logo em seguida, arvora-se em magistrado. Ora se coloca em seu devido lugar, ora age como um síndico de tribunal.
É como dizer que agora, às 12h10, faz 40 graus e faz 11 graus no município de São Paulo. Ou que, agora, às 16h31, estão jogando Corinthians e Palmeiras no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, e Corinthians e Ituano no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Futebol, o mesmo campeonato. Ou, ainda, que temos, neste exato momento, um total de 122 km de congestionamentos e, ao mesmo tempo, um total de 76 km de congestionamentos na mesma cidade.
Assim se dança essa frenética ciranda de ‘sim’ e ‘não’.
Não incorra no engano de pensar que o jornalista-juiz-promotor em questão esteja em crise, que não saiba o que fazer e o que dizer. Não pense que esteja em busca da ‘coisa em si’ ou de algo que o valha, e que, diante da complexidade que tal esforço exige, tenha-se deixado confundir por esse emaranhado de conceitos.
Nada disso. Quando tal autor proclama ‘não sou juiz’, pretende mesmo é que assim se faça entender pelo seu público e pela Justiça: ‘Não usurpo a prerrogativa alheia, não desrespeito a lei, não cometo crime algum’. Trata-se de uma salvaguarda. Seria, a seu ver, o suficiente para blindar a sua frase seguinte, sentença condenatória que, de per si, já bastaria para arremetê-lo de cabeça rumo às graves implicações decorrentes do seu ato injustificado, em face da lei e da ética da sua profissão.
Em um outro momento, o mesmo sujeito demonstra quão profundo é o seu conhecimento sobre o caso que pretende julgar, em rede nacional de televisão: ‘Eu vendi o peixe que me falaram’. Ou, ainda: ‘Dizem que tecnicamente há vários detalhes que dizem que ele teria alegado legítima defesa, e que sustentariam a legítima defesa…’
Sem fazer a lição de casa
O jornalista que queria ser juiz poderia ter lido o processo criminal 118.836.0/0-00. É documento público que hoje compreende mais de 1.500 páginas. Não o fez e, candidamente, cara aberta no vídeo, confessou o seu despreparo. Não esteve à altura dos seus devaneios. Reconheceu, ao proferir essas duas frases reproduzidas no parágrafo anterior, ter promovido um julgamento sumário, para dizer o mínimo.
Em um só profissional, o exercício do mau jornalismo e o desapreço pelos fundamentos do Direito que tanto diz defender. Um cidadão que falhou em sua realidade e em sua fantasia togada.
E pensar que é sob essas condições que se detém o poder irrefreável sobre as mentes de toda uma multidão, país afora…
Ignorância e presunção
Vamos a outro exemplo da linha ‘Eu vendi o peixe que me falaram’. O que o popular José Luiz Datena e um aristocrático editorialista do Estadão podem ter em comum? Respostas: o mesmo método (calcado na ignorância do tema que se propõem a analisar) e a mesma presunção condenatória:
‘Todas as testemunhas confirmaram que as duas vítimas já estavam caídas quando levaram os disparos, e não tiveram chance de defesa. Apesar disso, ao ser preso em flagrante, Shoedl alegou legítima defesa’ (‘O Corporativismo do MP’, editorial de O Estado de S.Paulo, em 1º de setembro).
Quero crer que o bem-intencionado editorialista — certamente uma pessoa que, à margem das suas limitações, sabe-se lutando por um mundo melhor — tenha escrito esse trecho ‘de orelhada’. Só mesmo uma confiança cega na sua fonte e no seu próprio ‘ideal’ poderia explicar esta inverdade: ‘Todas as testemunhas confirmaram que as duas vítimas já estavam caídas quando levaram os disparos, e não tiveram chance de defesa’.
Sou eu que o digo? Não, são as várias testemunhas (incluindo as de acusação) que apresentaram uma versão distinta. Na melhor das hipóteses, o editorialista simplesmente não leu o processo. Trabalha amparado pelo Método Datena de Verificação: ‘Dizem que tecnicamente há vários detalhes…’. Dizem. Se dizem, é verdade. Se dizem, a minha tese está consagrada. Se dizem, posso informar. Dizem. Na TV e no Estadão. Azar de quem ouviu, azar de quem leu.
Ignorância e presunção são apenas duas das várias faces da crise sistêmica a que, covarde e apaticamente, temos nos submetido no cotidiano do jornalismo.
Tribunais midiáticos
Sugiro que fechemos os tribunais. Diz-se que a Justiça é injusta e lenta. Sabe-se que há um acúmulo piramidal de processos. Sugiro, pois, que nós, jornalistas, façamos um mutirão nos fins de semana. Vamos julgar esse Brasil, pessoal! Alguns colegas, abnegados e plenos de iniciativa, já começaram a trabalhar. O Caso Thales Shoedl, por exemplo, já está resolvido. Thales é um assassino. Eis algumas decisões do tribunal midiático:
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‘O crime ocorreu em dezembro de 2004…’ (Folha de S. Paulo, 30/8/2007)Se houve crime, a legítima defesa foi rejeitada. Se esta houvesse sido acolhida pelo juiz do Tribunal da Folha de S. Paulo, o réu teria sido absolvido. Logo, não teria havido crime. Detalhe: no box ‘Entenda o caso’, ‘Crime’ está lá também, como intertítulo.
Outra decisão:
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‘Por causa de um outro crime de homicídio que tem como protagonista um promotor…’ (Folha de S. Paulo, 31/8/2007)Aqui, o juiz do TFSP, referindo-se ao promotor Igor Ferreira da Silva, que estava foragido, deve ter recorrido a uma nova e curiosíssima forma de jurisprudência, a que, inspirada por uma sentença, conduz a uma sentença necessária: se um primeiro foi condenado pela Justiça e era promotor, o segundo, que também é promotor, deverá, necessariamente, ser autor de um ‘crime de homicídio’ (note o emprego do pronome ‘outro’).
Mais uma:
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‘Ele é o assassino confesso de Diego Mendes Modanez (…) e sustenta a tese de legítima defesa’. (Folha de S. Paulo, 1º/9/2007)Essa, penso eu, é passível de recurso. Afinal, como Thales pode sustentar a tese de legítima defesa, sendo, ao mesmo tempo, assassino confesso? Caso decidam recorrer ao STFSP, os advogados do réu poderão apresentar, como argumento, a seguinte recomendação constante do Manual de Redação do jornal que, no passado, ao que parece, não queria saber de ser um tribunal:
‘Assassinar – Use sempre que alguém tira deliberadamente a vida de outra pessoa. Quando não houver premeditação ou a morte for provocada em legítima defesa, use matar. Não chame de assassino quem não foi julgado e condenado em última instância. Nesse caso, use acusado do assassinato ou suposto assassino. Veja eufemismo; executar; matar. Consulte também o anexo Jurídico.’
Jornalismo de exceção
A próxima é a sentença do tribunal instalado pelo Diário de S. Paulo, cujos juízes são ‘mão pesada’, como se pode observar, diante deste título de alto de página:
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‘Promotor assassino é afastado do cargo, mas mantém o salário’ (4/9/2007).Esta é do Estadão (aquele do editorial), em 30/8/2007:
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‘Apesar da repercussão do assassinato, o julgamento de ontem não levou em consideração o caso de Bertioga’.Não custa, também, relembrar as decisões do portal G1:
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‘Assassino reassumirá lugar no Ministério Público’ (29/8/2007)**
‘Segundo o advogado, Rebelo Pinho é autor da denúncia criminal contra o promotor Schoedl – assassino confesso do jovem Diego Ferreira Modanez em dezembro de 2004.’ (5/9/2007)Assim tem sido. Mas é desejável, como estímulo àqueles que só querem fazer jornalismo (o que não é pouco), encerrar este artigo com um bom exemplo.
Longe dos tribunais, o programa SP Record abriu, em edição especial, o mesmo espaço para a defesa e para a acusação. Falaram os advogados do promotor e o da família do jovem morto. Perguntou-se sobre o ocorrido. Ouviu-se com atenção o que cada parte considerou importante dizer. Pouco adjetivo, muita informação, nenhum prejulgamento. Aproveitou-se, como subsídio, um debate realizado anteriormente por outra atração da casa, o Fala que Eu Te Escuto, programa que, por milagre, não cometera os seus abusos costumeiros, ao abordar esse mesmo episódio.
Naquela noite, o público não esteve diante de um tribunal de exceção, mas de um jornalismo de exceção. O que, se de um lado, deve-se louvar, por seus méritos evidentes, obriga, de outro, a que lamentemos a realidade: trata-se de um fato isolado que, ao sublinhar o contraste, expõe a péssima qualidade do trabalho da maioria.
No próximo e penúltimo artigo desta série, a interferência da mídia no trabalho da Justiça.
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Jornalista