Passados mais de 30 anos do primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação, lançado nos anos 70 do século passado, a pesquisa científica cada vez mais apresenta indicadores positivos em todos os levantamentos feitos pelos órgãos de fomento e pelas agências responsáveis pela avaliação do sistema de Pós-Graduação.
O crescimento é de tal modo significativo que, se feita uma análise superficial, poderíamos concluir que vivemos numa situação perto da ideal. Lamentavelmente, este não é o caso. A distribuição de recursos humanos, de infra-estrutura de pesquisa e de fundos específicos de apoio à produção científica continua muito concentrada no Sudeste-Sul do país, que recebe cerca de 70% das verbas de Ciência e Tecnologia.
No caso específico da institucionalização da pesquisa em jornalismo, produzida em programas de pós-graduação em comunicação, mesmo que seja considerado o processo de descentralização vivenciado ao longo dos últimos 15 anos, o Nordeste continua com um número muito pequeno de programas, com apenas dois: o da UFBa e o da UFPE. Este último somente agora se prepara para a implantação do doutorado e em nenhum deles existe linhas específicas de pesquisa em jornalismo.
Em contradição com o avanço do ensino privado no nível de graduação na região, nenhuma instituição privada, ao contrário do que ocorreu no Sudeste e no Sul do país, resolveu até agora investir na criação das condições para abrir cursos de pós-graduação strictu sensu. Há vários casos de cursos de especialização de lactu sensu (UFRN, UFMA, UFPB, UFAL) em que as condições de pesquisa são muito mais limitadas, quando não inexistentes e em que os laços com a graduação são muito precários porque os cursos são destinados a profissionais em atuação no mercado de trabalho.
Neste cenário, se fossemos pessimistas, poderíamos concluir que pouco se pode fazer para que a pesquisa científica possa contribuir para o desenvolvimento regional. Como não se trata de lamentar a má distribuição dos recursos humanos, de infra-estrutura e econômicos, mas de construir alternativas viáveis para superar a atual situação, me parece mais produtivo verificar que tipo de possibilidades haveria para o campo do jornalismo. Nesta intervenção proponho-me a discutir uma delas: a pesquisa aplicada.
Uma fronteira a ser desbravada
Uma avaliação mais detalhada das pesquisas desenvolvidas no programas de pós-graduação em comunicação revela que, provavelmente, seja obra de um simples acaso, na melhor das hipóteses, e de um desvio intencional de finalidade, na pior, que o jornalismo esteja localizado na Área das Ciências Sociais Aplicadas. Em quase todos os programas a pesquisa aplicada aparece como muito embrionária quando não inexistente.
Neste momento, antes de entrar numa discussão conceitual de fundo, muito rica e que me interessa, mas que este não é o momento mais adequado para travá-la – se o jornalismo deveria ou não permanecer como uma Ciência Social Aplicada – a mim me interessa discutir porque, curiosamente, mesmo estando nesta área produzimos tão poucas pesquisas aplicadas.
Em primeiro lugar, o que pode aparecer como um paradoxo à primeira vista, decorre de uma desvinculação existente desde a criação da pós-graduação em comunicação no país no nosso campo, entre a pesquisa feita e as demandas dos cursos de graduação. Como se o curso de graduação tivesse que se restringir a uma simples formação técnica, desprovida de teorias e a pós-graduação nada tivesse que contribuir para a sua melhoria, seja com novas teorias, seja com o estímulo à inovação tecnológica.
Em segundo lugar, porque, ao contrário da pesquisa teórica em que, desde que a instituição conte com pesquisadores qualificados, pode ser feita com recursos muito menores, a pesquisa aplicada exige pesados investimentos na criação da infra-estrutura laboratorial necessária para dar continuidade aos projetos. E mais: os resultados práticos da pesquisa aplicada podem ser melhor aferidos pelos órgão financiadores.
Em terceiro lugar, mas não em menor ordem de importância, devido a um equívoco ideológico. Constituída como uma área que reivindica uma tradição das Ciências Humanas, crítica e de forte predominância do marxismo, a comunicação sempre manifestou enorme desconfiança, quando não ojeriza a qualquer possibilidade de interagir com as demais instituições da sociedade, notadamente as de caráter empresarial.
Como se fosse condenável a interação com o sistema industrial, com muito boa vontade, no máximo, são admitidas como legítimas as parcerias com sindicatos ou movimentos sociais de natureza contestatória. E, nestes casos, a bem da verdade, é bom que se diga que inclusive houve algumas conquistas significativas no campo da pesquisa aplicada, com o desenvolvimento de tecnologias sociais.
A necessidade da pesquisa aplicada
Mais do que uma simples constatação ou mesmo uma reivindicação, o que deveria ficar claro é que o estimulo à pesquisa aplicada necessita ser defendido como uma prioridade no campo do jornalismo. Como em qualquer campo do conhecimento, não existe e nem deveria existir contraposição entre pesquisa pura e pesquisa aplicada. As duas são essenciais para o avanço da ciência e para o desenvolvimento social.
No nosso caso, em que estamos situados no campo das Ciências Sociais Aplicadas, a quase inexistência deste tipo de pesquisa somente revela o quanto deveríamos avançar para constituirmos condições aceitáveis de pesquisa, em que, como área, fossemos capazes de atender às demandas da sociedade, seja pelo conhecimento teórico, seja pelo desenvolvimento de tecnologia de ponta.
Quando renuncia a aplicação das teorias que desenvolve o campo do jornalismo comete um duplo equívoco. De um lado, quando se trata de uma teoria criativa, deixa de possibilitar que este tipo de conhecimento seja traduzido em aplicações que poderiam melhorar a qualidade de vida das pessoas. De outro, por não aceitar sequer a possibilidade de por à prova da prática as suas hipóteses, o pesquisador muitas vezes acaba por assumir uma postura reativa ou mesmo contestatória ao mundo institucionalmente dado. Não raras vezes, mais que teorias reafirma princípios políticos.
Ao defendermos a prioridade para a pesquisa aplicada nada mais queremos que, com mais de dois séculos de atraso, o circuito da produção de conhecimento seja completado no campo do jornalismo. Com o estímulo à pesquisa aplicada haveria a possibilidade para a pesquisa auto-reflexiva, – a que determina o nível de amadurecimento do próprio campo – e que permitiria a cobertura de uma lacuna que provoca muitos prejuízos ao processo de formação: o desenvolvimento de métodos de pesquisa e metodologias de ensino no campo do jornalismo.
Pode parecer ironia, mas por darmos pouca atenção a este tipo de preocupação, muitos de nós seguimos professores de quadro negro e giz, incapacitados que estamos para usufruir de métodos mais avançados de ensino. E o pior de tudo é que nem sequer nos damos conta de que deveríamos voltar nossos esforços para romper com este modelo de pesquisa que recusa até mesmo debruçar-se sobre o que não teria porque não ser uma prioridade para um pesquisador da área: desenvolver metodologias de ensino e pesquisa.
De costas para as demandas das práticas
O mais curioso nesta história é que, de costas para as demandas da sociedade, no mais das vezes, pouco tempo perdemos em refletir sobre a natureza da pesquisa em nosso campo, preferindo o caminho mais fácil de reclamar que somos mal compreendidos pelos órgãos de fomento à pesquisa, à ciência e a tecnologia.
Durante uma conversa pessoal um colega que coordenava o VII Simpósio de Pesquisa no Nordeste me contava inconformado que, numa tentativa de negociar com um diretor do BnB que o Edital do Fundo de Apoio à Pesquisa do banco incluísse à comunicação, recebeu como resposta: ‘a comunicação não está entre as prioridades da instituição porque pouco contribui para o desenvolvimento regional’.
Este tipo de procedimento do executivo do BnB que, em si demonstra desconhecimento que a comunicação seja hoje a indústria que mais cresce no mundo, responsável em países como os Estados Unidos pelos mais altos índices de PIB, deveria servir como um alerta para a necessidade de que como pesquisadores aceitemos o desafio de nos voltarmos para a pesquisa aplicada.
Caso contrário, corremos o risco de seguirmos ad infinitum sem saber bem porquê somos tão mal tratados e, pior, continuaremos incapazes de apresentar argumentos consistentes de que vale a pena para o BnB investir em pesquisa no campo do jornalismo. Uma evidência de nossa indigência: recebemos 0,3% de todos os recursos de fomento liberados pelo CNPq.
O caso do pioneirismo da UFBA
No caso do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, mais especificamente no campo do jornalismo digital, desde que começamos nossas pesquisas em 1995, no que seria o embrião do Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-line (GJOL), percebemos que deveríamos criar as condições de recursos humanos, infra-estrutura laboratorial e financiamentos, para fomentar a pesquisa aplicada.
Dez anos depois estamos colhendo os primeiros resultados de uma iniciativa que contribui para melhorar a qualidade do ensino, da pesquisa e do jornalismo digital praticado em Salvador. Em decorrência de nossas pesquisas e de nossas preocupações em trazer para o plano da aplicação prática as nossas descobertas, fomos uma das primeiras faculdades brasileiras a ensinar e a incluir o jornalismo digital como disciplina obrigatória no currículo, em 1997, antecipando um movimento comum hoje em todos os cursos de jornalismo.
Por pensarmos a pesquisa em associação direta com as demandas da prática logo percebemos que deveríamos inventar os nossos próprios modelos de ambientes de ensino em vez de nos adaptarmos aos modelos oferecidos pelo mercado. Resultado: decidimos em 1999 criar um protótipo de sistema descentralizado de produção de conteúdos jornalísticos que fosse utilizado como ambiente de ensino na disciplina oficina de jornalismo digital.
Por sinal, desenvolvida com a coordenação de uma de nossas alunas de mestrado, Carla Schwingel. Hoje, nosso sistema, a Plataforma Panopticon, além da FACOM, está sendo adotado, com pequenas modificações, por outras escolas privadas da cidade como a FTC e a FIB e recebemos a solicitação de outras instituições para que liberássemos a sua utilização em regime de parceria.
Quando da experiência com a Plataforma Panopticon, já éramos o principal núcleo brasileiro de pesquisa conceitual sobre o jornalismo digital, responsável pela formação de dezenas de estudantes de graduação, mestrado e doutorado. Cientes de que os aplicativos devem ser sempre aperfeiçoados, em 2003 elaboramos projeto pioneiro de uma rede internacional com colegas brasileiros, argentinos e mexicanos para potencializar a Plataforma Panotpicon.
Em concorrência com pesquisadores de todas as áreas do conhecimento fomos um dos 9 projetos aprovados pelo CNPq para desenvolver softwares e metodologias para o ensino de jornalismo em redes de banda larga.
Neste momento estamos em fase final de testes da nova versão da plataforma, mais adaptada às condições de ensino demandadas pelo ambiente flexível das redes e muito mais dinâmica inclusive que os modelos em funcionamento nas empresas jornalísticas existentes no mercado. Nesta etapa do projeto a plataforma passará a ser internacional e será utilizada pelos colegas argentinos, primeiro, e mexicanos, posteriormente. No final de abril de 2005, eu e o professor Marcos Palacios, viajaremos a Córdoba e Vila Maria para implantarmos a Plataforma Panopticon naquelas cidades e darmos um curso sobre metodologias de ensino para os professores daquelas universidades e sobre modelos de produção de conteúdos jornalísticos para os jornalistas locais.
O mais interessante neste tipo de experiência é que ao mesmo tempo em que transformamos em produtos ou aplicações as teorias que desenvolvemos, podemos utilizar nossos processos e protótipos como espaço laboratorial para produzir novas teorias decorrentes das práticas estabelecidas.
Se antes, durante as atividades de pesquisa descrevíamos e conceituávamos produtos, processos e relações agora demos dois passos adiante: concebemos, descrevemos, desenvolvemos e conceituamos. É mais do que chegada a hora de por fim ao monopólio de um único modelo de pesquisa, a que analisa produtos, processos e relações. A consolidação do jornalismo como campo de conhecimento depende da aceitação de sua vocação como Ciência Social Aplicada.
Sistemas locais de inovação
No Brasil cultivamos um tipo de pesquisa no campo do jornalismo que independe de uma infra-estrutura laboratorial de ponta. Não é por outra razão que, na maioria dos casos, nossas pesquisas são mimetizações de teorias ou aplicações locais de hipóteses concebidas em outros centros.
Na verdade, os programas de pós-graduação deveriam funcionar tanto como produtores de conhecimento de ponta como fomentadores de sistemas locais de inovação tecnológica. Enquanto renunciarem a uma de suas funções – a de conceber e testar tecnologia de ponta que atenda às demandas de cada região – a Universidade e os programas de pós-graduação em geral terão dificuldades de conseguir convencer o campo político e os gestores da ciência e tecnologia de que vale a pena liberar recursos para o campo do jornalismo.
O ideal seria que paulatinamente a crítica da teoria pudesse ser complementada com a crítica sistematizada em laboratórios de pesquisa. Passo a um exemplo: Já paramos para nos dar conta quantas teses de doutorado produzimos sobre as especificidades conceituais da edição em telejornalismo?
Ao menos que eu saiba nenhuma publicada. E parece difícil negar que o telejornalismo seja um dos produtos culturais mais importantes da televisão brasileira. Deveríamos perceber que o próprio desenvolvimento das novas linguagens passa, necessariamente, pela pesquisa, pela análise sistemática e pela experimentação laboratorial.
A superação deste modelo de pesquisa que tenta replicar no campo do jornalismo o modelo de pesquisa das Ciências Humanas ou da Filosofia depende do estabelecimento de relações permanentes de parceria com a indústria da comunicação e com as agências de fomento. A um pesquisador acostumado à pesquisa descritiva pode parecer demasiado abstrato ou irreal uma proposta desta natureza.
Não nego que, no primeiro momento, seja difícil conceber um modelo diferente, mas o que gostaria de chamar a atenção aqui é que em qualquer país em que existe um conhecimento de ponta no campo do jornalismo a universidade mantém relações estreitas com os órgãos de fomento e a indústria cultural, materializado em sistemas locais de inovação.
Por se aterem à pesquisa descritiva ou analítica de natureza pura os programas de pós-graduação em comunicação acabam por somente formar futuros pesquisadores teóricos. Este tipo de opção provoca disfunções enormes no campo. De um lado, estes pesquisadores pouco podem contribuir para o desenvolvimento da indústria cultural local como pesquisadores aplicados. De outro, quando chegam aos cursos de graduação, como professores, estes pesquisadores têm poucas afinidades com as disciplinas de habilitação. Resultado: existe cada vez mais um conhecimento acumulado e, paradoxalmente, este conhecimento pouco tem a ver com a natureza das práticas profissionais consagradas.
De nada adianta criticar e, mesmo que no nosso caso com razão, a falta de agressividade da indústria cultural e das agências de fomento em investir em pesquisa no campo do jornalismo. Necessitamos nos dar conta que se não tivermos a capacidade de assumirmos de vez a dupla função da universidade, de produzir pesquisas puras e aplicadas de alta qualidade, seguiremos condenados a posição marginal na hora da distribuição dos recursos para a pesquisa. Uma contradição inaceitável quando a indústria cultural de comunicação e da informação é a que mais cresce no mundo.
Pesquisa aplicada ou mestrado profissional?
Um dos equívocos mais comuns acaba sendo a confusão feita entre pesquisa aplicada com mestrado profissional. Ao contrário do que se pensa, a pesquisa aplicada depende da pesquisa pura, de natureza teórica. Sem o desenvolvimento de conhecimento conceitual avançado pouco se pode fazer para transformar este saber em uma determinada aplicação tecnológica demandada pela sociedade. Conceber os mestrados profissionalizantes em que os profissionais recebem um certo tipo de treinamento e em que se antecipa a priori que se trata de um curso que não se destina à pesquisa parece um desconhecimento completo do que seja a pesquisa aplicada.
É provável que a escassa disseminação e a resistência de parte da comunidade acadêmica aos mestrados profissionais seja decorrente da falta de definição exata do que se pretende com este tipo de curso. Na atual situação nem se produz conhecimento aplicado, nem muito menos se fornece ao futuro mestre um conhecimento acadêmico especializado sobre um determinado campo.
O que deveria ocorrer – até para que este profissional não fosse condenado a ficar na berlinda – era, por um lado, definir de forma mais concreta a que se destina o mestrado profissionalizante e, por outro, reconhecer que a pesquisa aplicada nada tem a ver com este modelo de mestrado que vez por outra retorna como uma verdadeira tábua de salvação no sistema de formação pós-graduada.
O impasse que este tipo de indefinição provoca somente serve para revelar que caberia às agências de fomento, às sociedades científicas, às organizações da indústria cultural no campo do jornalismo e às universidades elaborarem políticas para o desenvolvimento de conteúdos e produtos vinculados a cada região do país. Políticas deste tipo são um pressuposto para que possamos criar e consolidar ao largo da geografia do país os sistemas locais de inovação.
Um sonho que parecia menos distante se considerássemos os postulados do novo Plano Nacional de Pós-Graduação, que estabelece como meta o apoio para a constituição destes sistemas. Parecia. O anteprojeto de Lei do Ensino Superior do MEC decreta o fim das Ciências Sociais Aplicadas. Se o plano for levado adiante o jornalismo seguirá condenado a, provavelmente, permanecer como campo de conhecimento amputado, limitado pelo paradigma das Ciências Sociais e Humanas.
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Jornalista, presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (http://www.sbpjor.org.br) e líder do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online na Universidade Federal da Bahia (http://www.facom.ufba.br/jol)