‘O 30º aniversário, dia 25 de outubro, do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, não teve por parte da imprensa brasileira (leia-se jornais e revistas) o tratamento que merecia, à altura da importância do episódio na história recente do país. A morte de Herzog precipitou o início da distensão ‘lenta e gradual’ do governo Geisel, abrindo caminho para a retomada da democracia. As emissoras de televisão ficaram, igualmente, a dever, o que não é novidade. E o jornalismo da TV Cultura não fez mais nem melhor, o que é imperdoável.
O que se viu no ar, em todas as emissoras, foi tudo muito parecido. Todas beberam na mesma fonte e dela quase não foram além. Refiro-me (a fonte) ao filme ‘Vlado 30 Anos Depois’, de João Batista de Andrade, que está em cartaz nos cinemas. Por incrível que pareça, o telejornalismo escolheu o caminho mais fácil de pegar carona nas imagens do filme e pouco produziu por conta própria. Foram tantas as repetições de cenas que elas se tornaram cansativas. É um filme importante, mas deixa a desejar. Foi ótimo o João Batista tê-lo feito. Muito melhor do que se não tivesse feito filme algum – e este parece ser o seu principal mérito. Para quem não o assistiu, o filme baseia-se principalmente em depoimentos de amigos e companheiros de Herzog que, como ele, foram presos e torturados. As narrativas são impressionantes e só por isso valem o ingresso. Ao vê-lo, os jovens têm muito a aprender.
Mas as televisões, e também a Cultura, preferiram a solução mais cômoda de reproduzir, em telejornais e documentários, várias vezes, trechos do filme, quando os depoentes estão todos aí, vivos, e o jornalismo não foi ouvi-los sobre outros ângulos do tema, como era de sua obrigação. Cinema é cinema, televisão é televisão. O filme deixa a desejar porque se concentra demasiadamente no pequeno grupo de colegas de Vlado, membros do Partido Comunista Brasileiro, do qual o diretor João Batista também fazia parte, e não contextualiza o fato, como deveria, na cena política nacional e no jogo da disputa do poder. Eu não sou crítico de cinema e, portanto, não devo me estender sobre o filme. O que interessa, aqui, é o telejornalismo – e este, lamentavelmente, por preguiça ou por desinformação, ficou a reboque da fita.
Na tela da Cultura a boa exceção, do ponto de vista do jornalismo, foi o Observatório da Imprensa do dia 25, com Alberto Dines, Paulo Markun, João Batista de Andrade e Luís Garcia. Ainda muito moço, Markun – que, também vítima naqueles acontecimentos, estava preso no DOI-CODI quando mataram Vlado – trouxe à tona, no Observatório, a figura do então delegado do Dops, Romeu Tuma, hoje senador. Tuma é uma das muitas figuras de proa daquele período que o jornalismo não foi ouvir.
Ninguém mostrou pelo menos uma foto do todo-poderoso general Ednardo, comandante à época do II Exército e, funcionalmente, o responsável direto pelo assassinato de Vlado. Nenhuma menção ao general Frota, o ministro do Exército que dava respaldo ao aparelho clandestino da repressão. E, como o citado filme menosprezou o importante papel do Sindicato dos Jornalistas, o jornalismo acomodado também falhou. No fio da navalha, o presidente do sindicato à época, Audálio Dantas, liderou com coragem e bom senso a reação pacífica, porém firme, que deu curso à indignação da sociedade. Ele foi protagonista no centro da crise política que se instalou e recebeu do jornalismo, 30 anos depois, tratamento de coadjuvante.
O assassinato de Vladimir Herzog representou um fato político que extrapola a dor da sua família, do círculo de amigos, de camaradas do Partidão e do impacto causado no jornalismo da TV Cultura, que Vlado chefiava. O clima era de medo e indignação mas. os jornais já não estavam submetidos a censura prévia e, não obstante, quase todos se omitiram, como a Folha de S. Paulo. Outros, como a Folha da Tarde e o Shopping News, praticavam linha editorial abertamente colaboracionista em relação à ditadura e aos porões da tortura. Nenhuma palavra sobre isso. As exceções na grande imprensa eram o O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde.
Nenhuma televisão, nem a Cultura, deu-se o trabalho de ouvir o professor de Ciências Políticas da USP, Oliveiros Ferreira, à época editor-chefe do Estadão e profundo conhecedor da doutrina de segurança nacional concebida pelo regime militar. Como sociólogo e como jornalista, Oliveiros teria coisas importantes a revelar, ele próprio personagem importante da época. O jornalismo conformado com cenas de filme não exibiu, igualmente, uma única tentativa de ouvir algum ex-servidor do DOI-CODI, que certamente não falaria, pelo menos para mostrar algum esforço de reportagem.
Os 30 anos da morte de Vlado foram lembrados em filmes, livros, prêmios, orações e até show. Faltou, porém, a melhor e mais adequada homenagem, aquela que certamente seria da sua preferência: o bom jornalismo.’