Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Doses de banalidade para mendigos da razão

E tem a história do mendigo. Ele ficava na rua, exibindo uma placa com os dizeres: ‘Veja como sou feliz, sou um homem próspero, sei que sou bonito, sou importante, tenho uma bela residência, vivo confortavelmente e bem-humorado’. Moral? Acabou sócio majoritário de uma grande empresa.

Com esta citação – do livro Semente da Vitória, de Nuno Cobra, ex-preparador físico do falecido piloto Ayrton Senna –, o presidente Lula garantiu ao vice-presidente e à primeira-dama da República que ‘atitudes negativas passam mensagens negativas para nosso centro processador cerebral, que as retransmite para o resto do corpo. A gente passa a viver coisas negativas, quando poderia viver coisas positivas’. De novo, a moral? É preciso mostrar ao exterior as coisas boas do país e não seus aspectos negativos (O Globo, 29/3/2005).

A cena se passou pouco antes da solenidade de inauguração do Ano do Brasil na França.

Não há nada de extraordinário neste fato, todo mundo já sabe o quanto textos de auto-ajuda agradam a figuras de proa do cenário nacional e internacional. Lula, ministros de Lula, Bill Clinton e muitas outras personalidades não escondem a sua predileção por esse tipo de escrita. Não se pode esquecer que Paulo Coelho, o homem dos 65 milhões de leitores, é convidado oficial dos grandes financistas internacionais nas famosas reuniões de Davos, na Suíça.

Mas a peroração presidencial, tornada pública pelo jornal, merece um comentário porque se encaixa de alguma maneira nas ruidosas saudações feitas pelas três mais importantes revistas brasileiras (Veja, IstoÉ e Época) ao lançamento de O Zahir, o mais novo livro de Paulo Coelho, celebrado como ‘o maior vendedor de livros do mundo’, membro da Academia Brasileira de Letras e uma espécie de horizonte narrativo para os produtores de auto-ajuda.

Estilo dogmático

Cobra não corre tão rápido e tão longe quanto Coelho, mas os números de Semente da Vitória (400 mil exemplares vendidos) são ainda assim impressionantes e altamente rendosos, além do evidente prestígio de citações presidenciais. Considerando-se outros autores do mesmo gênero, que, mesmo sem o estardalhaço das manchetes e das capas de revistas, faturam números altos no mercado editorial brasileiro, é preciso levar em conta o fato de que Paulo Coelho é, nos tempos que correm, o único autor brasileiro que efetivamente ‘faz escola’.

O assunto já foi bem levantado neste Observatório, antes da epilogação do presidente da República sobre o pensamento de Cobra. Todo mundo está de acordo quanto à opoRtunidade de comentários. Marcelo Beraba, ombudsman da Folha, diz:

‘É fato que Paulo Coelho é um fenômeno mundial de venda e como tal deve ser tratado pelos meios de comunicação. Seria um erro jornalístico grave ignorá-lo. O problema é que o conjunto da operação reforça nos leitores a idéia de que jornalismo hoje é mais mercado do que notícia e de que as capas fazem parte de uma estratégia comercial que envolve as redações'(Folha de S.Paulo, 17/3/2005).

Beraba está certo quanto aos problemas de credibilidade jornalística suscitados pelo chamado ‘jornalismo de mercado’, corrente nas grandes empresas de mídia no Brasil. Mas resta o enigma, ainda não devidamente abordado, de por quê o discurso de auto-ajuda, seja em forma romanceada ou em estilo dogmático-conselheiresco, sempre recheado com parábolas para todos os gostos, ganhou tamanha repercussão nos últimos quinze anos.

‘Simancol’ crítico

É possível que alguns elementos para a devida explicação se encontrem em algumas das matérias de jornal que acompanharam as repercussões da citação presidencial. De modo geral, os comentários convergem – de um lado para os argumentos de fácil compreensão desses textos, de outro para a condenação do intelectualismo.

Aqui e ali, registram-se pequenos ataques ao intelectual Tarso Genro, Ministro da Educação, cujo último livro foi tachado de ‘indecifrável’ pelo titular da coluna ‘Nhem, nhem, nhem’ de O Globo; ou então tiradas irônicas, como a do deputado Delfim Neto, que disse ser o ministro da Educação o único com pretensões intelectuais em todo um ministério ‘intelectualmente modesto’ (O Globo, 3/4/2005).

No implícito elogio ao espontaneísmo intelectivo que acompanha esse tipo de julgamento, esquece-se que o fenômeno Lula, depois de Luiz Inácio da Silva ter-se tornado líder sindical no ABC paulista, foi criado em grande parte por intelectuais de todo o país.

Fatos dessa natureza parecem sugerir à observação reflexiva ter chegado o momento de o jornalismo nacional, ainda que seja em tópicos excepcionais, abandonar a fácil superfície dos fenômenos e começar a investigar as coincidências entre o pensamento ‘facilitado’ e a intensificação da barbárie neoliberal a partir do início da década de 1990. É o período que os teóricos pós-modernistas assinalam como ‘mundo zero’: zero memória, zero identidade, zero instituição, zero política, zero real. E claro, zero contemplação do Estado fiscalista para com povo e território nacionais: em vez de grandes projetos transformadores, a contabilidade fria dos superávits primários e das desregulações sociais de toda ordem.

As únicas utopias que hoje chegam ao espaço público têm forma tecnológica, põem no altar o ciberespaço e a internet por meio de profetas de segunda ordem, a exemplo do francês Pierre Lévy, que, em sua Filosofia Mundo (World Philosophie) equipara os humanos à condição de neurônios de um grande cérebro planetário. Como neurônio tem sinapse, mas não tem cérebro, a moral conseqüente dessa história é que o negócio é conectar-se, em vez de pensar.

Lembramo-nos de Lévy (durante algum tempo, o caderno ‘Ilustrada’, da Folha de S.Paulo, incluía-o no rol de seus articulistas, mas terminou se dando conta do embuste) apenas para indicar que, também no âmbito das erudições acadêmicas, falta o ‘simancol’ crítico. Isto é o que de maneira geral acontece com a literatura de auto-ajuda: são textos sem acompanhamento crítico do conteúdo, já que seus únicos verdadeiros parâmetros são as estatísticas de vendas – termômetro da febre adulatória do ego de leitores, embevecidos pela suposta ‘facilidade’ de compreensão do mundo.

Critério único

Bíblia, cabala, alcorão, zen-budismo, todas essas diferentes e difíceis abordagens do sagrado e do si mesmo profundo banalizam-se em parábolas prêtes-a-porter, dando-se as mãos em corrente, num bajulatório simulacro de conhecimento.

Tendo como pano de fundo um ordenamento social de zero identidade e zero política – e como acesso imediato um mundo de fluxos imateriais e mensagens (a televisão, a internet) – a consciência pequeno burguesa é potencialmente angélica, isto é, aberta a um fluxo de mensagens (função do anjo) que não quer saber de entraves ou barreiras.

Nos livros de auto-ajuda, nos artigos jornalísticos de seus autores, os anjos comparecem em sonhos ou na vida real. Para os mais sofisticados, os que se embevecem com teóricos do quilate de Lévy, o anjo equivale ao mouse do computador.

Na prática, tudo isto redunda numa facilitação (esta palavra começa a designar tarefas tradicionalmente reservadas ao professor, ao pensador etc.), cujos conteúdos tornam-se bastante próximos dos discursos de auto-ajuda ou das seitas, que tendem a se multiplicar no mundo-zero das esperanças ou das crenças.

Por trás de tudo isso está o mercado, o novo deus dos novos tempos, o grande parâmetro dos sucessos e fracassos. Com 65 milhões de leitores como fundo de reserva, Paulo Coelho sente-se perfeitamente à vontade para declarar em entrevista a O Globo, logo depois das três capas de revistas, que James Joyce não vale grande coisa. Claro, não vende, logo não vale. A frase marca o grau zero da literatura na sociedade globalizada.

Na verdade, não há qualquer problema para o escritor se seus livros vendem muito. Jorge Amado vendia ou vende muito; Georges Simenon, houve um tempo, vendia menos apenas do que a Bíblia. O problema é que, agora, vender parece ser critério exclusivo. E se vende o facilitado, o banal, assim como os partidos políticos ‘vendem’ aos eleitores os seus candidatos.

Leitor e eleitor de hoje se equivalem: são mendigos da razão.