No embalo da mais do que infeliz pergunta do senador José Agripino Maia (DEM-RN) à ministra Dilma Rousseff, quando onde ele insinuou que Dilma poderia mentir à CPI por já ter feito o mesmo sob tortura na época da ditadura, o jornal O Estado de S. Paulo publicou, no dia 12 deste mês, a carta de um leitor fazendo graça com o tema:
‘A gente já sabia, mas ao depor na comissão do Senado a ministra Dilma confirmou: nem sob tortura ela fala a verdade. Foi uma grande verdade’.
Indignado, encaminhei ao responsável pelo Fórum dos Leitores do jornal o seguinte e-mail:
‘Tenho inúmeras restrições ao jornalismo de O Estado de S. Paulo, mas assino-o em nome da minha empresa e por conta da minha atividade profissional, sou jornalista e editor. Hoje, porém, tive engulhos ao ver publicada a carta do leitor Mauro Miler. A publicação desse tipo de ‘piada’ grotesca atenta contra os direitos humanos e os valores mais caros da democracia. A prática da tortura é crime hediondo. Um jornal que se preze deve tratá-la sempre assim.’
A resposta do editor de Fórum dos Leitores de O Estado de S. Paulo chegou-me na noite daquele mesmo dia.
‘Caro senhor, claro que a prática de tortura é crime hediondo, ninguém pode discordar. E mordaça o que seria? Liberdade de expressão, sempre. E viva a democracia! Gratos pela atenção, Fórum dos Leitores’.
Apesar de a resposta ser de um simplismo tosco e de uma pequenez insuportável, decidi abordar o assunto neste espaço exatamente porque quem respondeu pelo jornal utilizou o discurso da ‘liberdade de expressão’ como manto para justificar um erro, no mínimo, ético do veículo.
O jornal tem garantido o direito de publicar tudo o que lhe pareça conveniente. Aliás, direito conquistado pela luta de pessoas como Vladimir Herzog, Rubens Paiva e Luiz Eduardo Merlino. Gente que foi torturada e assassinada durante a ditadura por ter cometido o bárbaro ‘crime de opinião’.
O buraco é mais embaixo
Mas o caso não é esse e não pretendo me alongar nisso. O jornal tem garantido o direito de publicar o que lhe pareça correto, mas, se for sério, deve fazê-lo com base no respeito aos direitos humanos, à ética do seu tempo e aos limites da legislação do seu país. Tem garantido o direito de questionar a lei vigente, evidente, mas não deve confrontar aquelas cláusulas pétreas constitucionais do seu território, principalmente quando diz atuar em defesa do Estado democrático e de direito.
Por isso mesmo, não é aceitável que um veículo de comunicação que se diz sério ainda tenha dúvida em relação ao que significa fazer graça com o tema da tortura. Também por esse motivo não pode ser considerado sério e respeitável um jornalista ou um jornal que utiliza a bandeira da ‘liberdade de expressão’ como justificativa para publicar uma carta onde a tortura é tratada de forma torpe e sem nenhum contraponto.
Mas se esses dois argumentos não bastam, vou recorrer ao exemplo do Estado de S. Paulo para ver se faço o jornal e o seu editor do Painel do Leitor entenderem do que estamos tratando. Esse e-mail que enviei e que foi respondido não foi publicado pelo jornal. Também não foram publicados e-mails enviados pelos leitores do meu blog. Por que o jornal fez isso? Censura, mordaça ou critério de edição?
Sem esquizofrenia, fico com a última opção. Acho que o editor do espaço preferiu divulgar aquilo que lhe parecia mais conveniente. No caso da carta que fazia ‘piada’ com a tortura é isso que também parece ter acontecido. O editor do espaço quis publicar o lhe parecia uma crítica a uma ministra, a uma integrante do governo, quis mostrar que o jornal é de oposição.
Mas o buraco era e continua sendo mais embaixo. Tortura não é assunto que diga respeito a governo ou oposição. E felizmente muitos opositores do atual governo têm certeza disso. Como também defenestrar a tortura e não ceder espaço a quem a defende — ou a quem acha engraçado fazer piada com tema — não tem nada a ver com mordaça.
Fazendo graça
Essa carta publicada pelo O Estado de S. Paulo demonstra que estamos muito longe de ter um entendimento mínimo sobre quais devem os procedimentos éticos de um veículo de comunicação. Até porque, depois que tratei do assunto no meu blog recebi comentários dando conta de que cartas semelhantes foram publicadas em outros veículos impressos, inclusive de grandes centros como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.
Dar vivas à liberdade de expressão por conta da publicação de cartas do tipo da que tratei é apostar na barbárie jornalística.
Ainda bem que, por conta da luta do povo judeu, hoje é considerado crime fazer piadas com o Holocausto. O mesmo se pode dizer em relação ao racismo no Brasil. Mas, infelizmente, parece que as vítimas e os parentes dos que sofreram violências na luta contra a ditadura ainda terão de lutar para que alguns jornalistas e seus veículos aprendam como tratar do tema. E como não tratar.
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Jornalista; www.revistaforum.com.
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