Na edição de 16 de março de 2005, Veja cometeria mais um de seus malabarismos editoriais, com a matéria ‘Tentáculos das FARC no Brasil’
Foi matéria de capa. A ilustração era uma metralhadora e o texto incriminador:
‘Espiões da ABIN gravaram representantes da narcoguerrilha colombiana anunciando doação de 5 milhões de dólares para candidatos petistas na campanha de 2002’.
Depois, outro texto:
‘PT: militantes serão expulsos se pegaram dinheiro das Farc’.
Havia um excesso de textos na capa, ferindo princípios básicos de clareza editorial. A revista estava em plena campanha, na sucessão de capas sobre Lula. E pouco se lhe interessava saber da consistência ou não das matérias. Nas páginas internas, ficaria mais claro o estilo Veja de criar matérias através da manipulação de ênfases.
Jogam-se acusações enfáticas. Depois, algumas ressalvas para servir de blindagem contra ações judiciais, seguidas de novas acusações taxativas.
O que se tinha, objetivamente, era um informe da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), uma página, três parágrafos e nada mais, na qual um agente infiltrado relatava um encontro em uma chácara, com um padre supostamente ligado às FARC. O padre era conhecido como um mitômano, há muito tempo afastado do contato com as FARC.
No encontro, teria mencionado o suposto financiamento à campanha do PT. Não havia nenhuma indicação a mais sobre isso. Na ABIN, não se levou a sério o informe.
Para sustentar a matéria, Veja assegurava que o informe tinha recebido tratamento relevante da ABIN e que havia documentos comprovando as doações. Não aceitou a palavra oficial da ABIN, de que nunca levou a sério o informe.
Esses documentos, comprovando as supostas doações, nunca apareceram, o caso morreu de morte morrida. E o fecho se deu este ano, com a curiosa explicação do diretor de redação Eurípedes Alcântara para o papel de Veja no episódio.
Mas, antes disso, acompanhe o desenrolar dessas matérias.
O pingue-pongue das acusações
Nas páginas internas, a chamada era forte.
‘Documentos secretos guardados nos arquivos da Abin informam que a narcoguerrilha colombiana Farc deu 5 milhões de dólares a candidatos petistas em 2002’
A matéria começava com afirmações taxativas:
‘Nos arquivos da Agência Brasileira de Inteligência em Brasília há um conjunto de documentos cujo conteúdo é explosivo. Os papéis, guardados no centro de documentação da Abin, mostram ligações das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) com militantes petistas. (…) Em apenas uma folha e dividido em três parágrafos, esse documento informa que, no dia 13 de abril de 2002, um grupo de esquerdistas solidários com as Farc promoveu uma reunião político-festiva numa chácara nos arredores de Brasília. Na reunião (…) o padre Olivério Medina, que atua como uma espécie de embaixador das Farc no Brasil, fez um anúncio pecuniário. Disse aos presentes que sua organização guerrilheira estava fazendo uma doação de 5 milhões de dólares para a campanha eleitoral de candidatos petistas de sua predileção. A notícia foi recebida com aplausos pela platéia. Faltavam então menos de seis meses para a eleição. Um agente da Abin, infiltrado na reunião, ouviu tudo, fez um informe a seus chefes, e assim chegou à Abin a primeira notícia de que as relações entre militantes esquerdistas, alguns deles petistas, e as Farc podem ter ultrapassado a mera simpatia ideológica e chegado ao pantanoso terreno financeiro’.
O ‘anúncio pecuniário’ – segundo a expressão da revista – era mencionado em três documentos da ABIN.
‘Num deles, está descrita a forma de pagamento: o dinheiro sairia de Trinidad e Tobago, um pequeno país do Caribe, e chegaria às mãos de cerca de 300 pequenos empresários brasileiros simpáticos ao PT, que, por sua vez, fariam contribuições aos comitês regionais do partido como se os recursos lhes pertencessem’.
Assim como na matéria sobre os ‘dólares de Cuba’, a operação era inverossímil. Como se poderia manter sob sigilo uma operação que envolveria 300 pequenos empresários brasileiros? Fugia ao bom senso. Mas a revista não se deixava intimidar e mandava o bom senso às favas:
‘Em outro documento, aparece a informação de que o acerto financeiro fora celebrado entre membros do PT e das Farc durante uma reunião realizada numa fazenda no Pantanal Mato-Grossense – e que os encontros de cúpula seriam articulados com a ajuda de Maria das Graças da Silva, uma funcionária da Câmara dos Deputados em Brasília que já militou no PC do B e seria amiga muito próxima do `comandante Maurício´, apontado como a maior autoridade das Farc no Brasil.’
Para se prevenir contra eventuais ações judiciais, incluíam-se as ressalvas, formando o estilo pterodáctilo já descrito em outro capítulos:
‘A apuração comprovou a reunião, o local, a data e os personagens. Só não encontrou indícios suficientemente sólidos de que os 5 milhões de dólares tenham realmente saído das Farc e chegado aos cofres do PT. A doação financeira é dada como realizada pelos documentos da Abin, mas a investigação de VEJA não avançou um milímetro nesse particular. Pode ter sido apenas uma bravata do padre Olivério Medina, codinome de Francisco Antônio Cadenas Colazzos, para alegrar seus convivas esquerdistas? Pode. Além da convocação manifestada nos documentos da Abin, a revista não encontrou elementos consistentes para que se faça uma afirmação sobre esse aspecto.’
O expediente era o mesmo adotado na capa sobre o falso dossiê das contas de autoridades brasileiras no exterior. Depois da ressalva salvadora, voltavam as acusações, em um pingue-pongue devastador de princípios jornalísticos e de lógica.
‘Os documentos mostram que as informações ali contidas foram checadas (pela ABIN) com afinco. (…) O documento 0095/3100, de 25 de abril de 2002, o principal entre todos os que narram as ligações entre militantes petistas e as Farc, passou por todas essas etapas e acabou com um carimbo de `secreto´. Isso significa que suas informações eram críveis e seu conteúdo tinha consistência suficiente para ser levado ao conhecimento do presidente da República.’
Na edição seguinte, de 23 de março de 2005, a matéria receberia uma suíte no mesmo estilo. Primeiro, um sonoro desmentido da Abin:
‘VEJA noticiou que o auxílio financeiro aparecia no documento número 0095/3100, datado de 25 de abril de 2002 e classificado como `secreto´. Tudo isso foi confirmado pelo general (Jorge Armando Felix), mas houve um adendo categórico. O general disse que a informação sobre a doação de 5 milhões de dólares não foi levada a sério pela Abin, que a encarou como `um boato´ e arquivou o documento.’
A revista não aceitava as explicações.
‘A explicação oficial até faz sentido, mas não é verdadeira.
Na semana passada, VEJA voltou a entrevistar o espião que, infiltrado no movimento sindical em Brasília, abastecia a Abin com informações sobre as Farc e suas relações financeiras com o PT. (…) Esquerdistas convidaram-no para participar da criação de um comitê em defesa da guerrilha colombiana. O espião topou e passou a participar de reuniões, quase sempre reservadas. Até que sua rotina foi quebrada, no dia 13 de abril de 2002, quando participou da reunião político-festiva de esquerdistas pró-Farc na chácara Coração Vermelho, situada nos arredores de Brasília. Foi nessa reunião que o espião ouviu o padre Olivério Medina, embaixador da guerrilha no Brasil, falar da doação de 5 milhões de dólares para a campanha de Lula em 2002.’
Veja informava ter entrevistado em cinco ocasiões o coronel Eduardo Adolfo Ferreira, que recebia os informes do espião:
‘Os memoriais, nome dado a um conjunto extenso de relatórios, eram encaminhados diretamente à então diretora da Abin, Marisa Del´Isola. `A Abin em São Paulo até rastreou o que seria uma parte do dinheiro das Farc para o PT.´ O coronel contou que, com a ajuda do setor de inteligência da Polícia Federal, a Abin obteve três ordens de pagamento, somando cerca de 1 milhão de dólares, com indícios de que se tratava de parte do dinheiro das Farc para o PT. `Não podemos afirmar que era o dinheiro da guerrilha mesmo. Eram indícios. Indícios fortes, mas a investigação parou quando o PT ganhou as eleições e eu saí da Abin´, contou. (…)
O coronel diz que, nos arquivos da Abin, há gravações em áudio das promessas das Farc de ajudar o PT e, também, cópias das três ordens de pagamento.’
Com acesso à fonte, por que a revista não exigiu a apresentação das cópias – ainda que sob o compromisso de não publicá-las? Qual a razão para não ter ido atrás do elemento que não apenas consolidaria a capa, como seria o grande furo da reportagem?
‘Na semana passada, o espião do caso Farc disse que está disposto a contar tudo o que sabe no Congresso, desde que seu depoimento seja tomado em reunião fechada. Diante dessa possibilidade, VEJA consultou o senador Demostenes Torres, do PFL de Goiás, membro da comissão que apura a história. O senador disse que, publicada a reportagem da revista, faria o pedido para ouvir o espião. Disse também que convocaria o coronel Ferreira. Diz o senador: `As declarações dos dois, se confirmadas, revelam que a Abin compareceu à comissão do Congresso e ocultou a verdade dos parlamentares. É grave´. É grave mesmo.’
Um factóide que não teve suite. Nem da própria revista.
Escrever pensando
No dia 24 de janeiro de 2008, o diretor de redação de Veja, Eurípedes Alcântara, proferiu palestra para os alunos do Curso Abril de Jornalismo (clique aqui).
No intertítulo ‘As marcas de Veja’, Eurípedes descreve a receita de jornalismo praticado pela revista.
‘O Diretor de Redação expôs alguns pontos essenciais para a produção da revista. Um deles é o controle que o repórter precisa ter sobre a matéria. `Não é a pauta ou a fonte que têm de dominar o jornalista´, disse.’
Provavelmente, nem a informação pode servir de limitação. Segundo a aula de Eurípedes, Veja pratica o conceito de ‘escrever pensando’:
‘Outro ponto é a diluição de conteúdo opinativo em meio às reportagens, a qual Eurípedes chama de `escrever pensando´. O jornalista ponderou sobre as diversas interpretações dos críticos sobre determinadas reportagens da revista. `Você só pode ser cobrado por aquilo que escreve. Não pelo que interpretam´.’
Cobrado pela capa das FARCs, explicou o que a revista fez:
‘A Veja disse que a Abin estava investigando. Não disse que Lula recebia de guerrilheiros. Isso é uma interpretação’.
De fato, tudo não passou de uma grande interpretação. Com direito a capa.
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Jornalista