‘Uma das questões mais discutidas hoje no mundo é a chamada autocensura na mídia. Tudo porque processar jornalistas virou uma autêntica indústria – a que o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, chamou de ‘uma grande loteria’. Ano passado o jornalista Márcio Chaer fez levantamento sobre as ações que correm contra empresas jornalísticas no Brasil. São pelo menos, agora, 2,7 mil processos movidos contra as quatro maiores empresas de jornalismo e mídia no Brasil. Muitos dos casos estão pontuados pela chamada ‘tutela antecipada’, em que as empresas têm de depositar fortunas em juízo até que o caso chegue nos ‘finalmentes’. Ano passado fui perguntar ao campeão das ações cíveis contra a mídia, o advogado Paulo Esteves, de São Paulo, o porquê de se querer arrancar fortunas das empresas de jornalismo. Sua explicação foi simples e complexa: referiu que empresas fazem também fortunas explorando em suas publicações e transmissões as imagens dos clientes de Paulo Esteves acusados disso ou daquilo. Ou seja: no entender dele, o bolo tem de ser repartido com quem ajudou, à custa de sua imagem, a empresa de mídia a faturar alto graças aos números do Ibope.
Essa situação tem uma variegada paleta de cores no mundo. No Peru, por exemplo, o ex-presidente Alberto Fujimori pediu a seu chefe de inteligência, o doutor Montesinos, que forjasse provas contra o doutor Baruch, dono do maior canal de TV peruano, para acusá-lo de ter fornecido armas ao Equador no embate entre os dois países. Baruch teve de fugir do Peru. Seu canal passou a ser, por ordens diretas de Fujimori, um desfile de fofocas, bobagens sem nexo, mulheres de bunda de fora e platitudes do pior da América Latina.
Nos EUA o jornalista Chuck Lewis começou a levantar uma fortuna para defender seus colegas de trabalho. Uma soma de US$ 30 milhões (cerca de R$ 70 milhões) será amealhada até o final deste ano por ele. Lewis é um veterano produtor do programa ‘60 Minutes’, da CBS. Ele comanda o Fundo para a Independência no Jornalismo. Estive com Chuck em Londres, na primeira semana de agosto passado. ‘Uma nova forma de tratamento está emergindo: a litigância. O jornalismo está sendo submetido a anos e anos de custos dessa litigância. Qualquer história desconfortável pode ser assassinada ou desacreditada, não porque esteja incorreta, mas por causa da força dos implicados. A litigância é uma arma efetiva da censura para qualquer um com riqueza e vontade de usar as Cortes para deter o escrutínio público’, disse-me Chuck.
Chuck Lewis contou que, além do caso Judith Miller (presa por não ter revelado sua fonte a pedido de um juiz), outros jornalistas sofrem ações de iguais. Por exemplo: em dezembro de 2004, o jornalista investigativo James Taricani, de Rhode Island, começou a cumprir seis meses de prisão domiciliar por ter se negado a revelar uma fonte; outros seis jornalistas são processados porque não revelam suas fontes em histórias publicadas sobre Wen Ho Lee, um cientista nuclear acusado de passar segredos dos EUA aos chineses.
A onda, é óbvio, chegou ao PT, como não poderia deixar se ser. Nesta segunda semana de novembro o PT entrou com ação gigantesca contra a ‘Veja’, por danos morais. Na ação, assinada pelo advogado Joel Toledo de Campos Mello Filho, são apontadas as oito reportagens de capa que provocaram a indignação do partido: ‘O PT DEIXOU O BRASIL MAIS BURRO? – O obscurantismo oficial condena o inglês, quer tirar a liberdade das universidades e mandar na cultura’ (26 de janeiro); TENTÁCULOS DAS FARCS NO BRASIL – Espiões da Abin gravaram representante da narcoguerrilha anunciando doação de 5 milhões de dólares para candidatos petistas na campanha de 2002 – PT: militantes serão expulsos se pegarem dinheiro das Farc (16 de março); CORRUPÇÃO – Estamos perdendo a guerra contra essa praga – O PAVOR DA CPI – Delúbio Soares e Silvio Pereira, operadores do PT, não escapariam da investigação (25 de maio); CORRUPÇÃO – AMAZÔNIA À VENDA – Petistas presos aceitavam a propina de madeireiras que devastavam a floresta (8 de junho); QUEM MAIS – Com uma CPI instalada a outra a caminho, a pergunta agora é qual será o rosto do próximo escândalo (15 de junho); ERA VIDRO E SE QUEBROU – A história de uma tragédia política (21 de setembro); UM FANTASMA ASSOMBRA O PT (19 de outubro); OS DÓLARES DE CUBA PARA A CAMPANHA DE LULA (2 de novembro).
Os advogados sustentam que em pelo menos duas reportagens a própria revista admitiu não ter provas para sustentar suas afirmações. ‘A apuração (…) só não encontrou indícios suficientemente sólidos de que os 5 milhões de dólares tenham realmente saído das Farc e chegado aos cofres do PT’, ressalva a revista na segunda reportagem da série citada pelo PT, que trata sobre o suposto fornecimento de dinheiro da guerrilha colombiana para a campanha eleitoral do partido.
O PT acusa a revista de ‘conduta nitidamente abusiva, pela reiteração de ofensas, desproporção ofensiva das capas com os fatos reais, utilização de associação de imagens depreciativas e seqüencialidade da prática’. Diante disso, pede que ‘Veja’ seja ‘condenada ao pagamento de reparação a lesão causada ao nome e imagem do partido-Autor, de forma proporcional ao dano’. E pede que o juiz determine a quantia a ser paga.
Tudo pode se dizer de certos corifeus do PFL e do tucanato, menos que façam igual ao promotor Thales Schoedl, que no Ano Novo passado matou um garoto e feriu outro, na Baixada Paulista, porque lhe chamaram a esposa de gostosa. Pefelista e tucano não dão recibo. Não reconhecem nos agressores seus interlocutores. Política é isso: não se entrega o leite. O PT perdeu uma grande oportunidade de calar a boca. Por mais que ‘Veja’ tenha feito fora do penico (e faz), ignorar muitas vezes é a melhor saída. Mas o PT não gosta disso: o Boeing petista não dá ré e gosta mesmo é de dar porrada, mesmo que isso os alinhe, moralmente, a Fujimoris e Collors da vida. O PT virou o partido Fujicolor.’
Augusto Nunes
‘Um entrevistado fora de forma’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 9/11/05
‘O currículo de Lula exibe dúzias de grandes desempenhos no papel de entrevistado. Duelos (com ou sem mediadores), batalhas solitárias contra numerosos inquisidores, debates que acabaram transformados em combates simultâneos – qualquer que fosse o tipo de luta, o local do confronto ou a arma escolhida, ele costumava sair-se muito bem. Alternava momentos de intensa agressividade com apelos quase doces à alma popular, tinha o raciocínio ágil de dirigente sindical habituado a situações-limite e se dispensava de cautelas sem serventia para comandantes oposicionistas. Graças a tais trunfos, Lula sempre brilhou nas muitas vezes em que ocupou o centro da arena romana simulada pelo cenário do ‘Roda Viva’, exibido há 18 anos ininterruptos pela Cultura.
Neste 7 de novembro, um Lula visivelmente fora de forma protagonizou a milésima edição do mais duradouro e importante programa de entrevistas da TV brasileira. O reconhecido craque do improviso parece implorar pelo ritmo de jogo que só sucessivos exercícios desse gênero permitem alcançar. Como um atacante que que jogou três anos sem marcador, Lula perde o equilíbrio facilmente quando invade zonas congestionadas por adversários eventuais.
É compreensível que tenha se apresentado um tanto tenso: pela primeira fez em seis meses, ele responderia a quaisquer questões vinculadas à grande crise desencadeada em fim de março e sem prazo para terminar. Desde o fim de março, incontáveis perguntas continuam atravessadas na garganta do Brasil, e agora seriam formuladas sem restrições. Mas quem conheceu o orador das assembléias dos metalúrgicos do ABC e o polemista de tantos debates desiguais surpreendeu-se com o evidente nervosismo.
Esse Lula foi Duda Mendonça quem fez. A má idéia começou a ser testada na construção do ‘Lulinha Paz e Amor’. Convinha ao candidato discursos improvisados, sem apartes. Para que arriscar-se a ouvir perguntas embaraçosas e réplicas impertinentes? Lula aderiu ao método e ganhou a eleição. Vitorioso também, o marqueteiro da Corte permaneceu por lá, modelando a obra-prima. O presidente abdicou de entrevistas de verdade. Quanto aos improvisos, nenhum problema: Lula e o povo sempre se entenderam, argumentava Duda. Ele só monitorava os pronunciamentos feitos à nação pela TV, obrigando Lula a ler textos escritos pelo ministro Luiz Dulci.
Só dois anos depois da posse os jornalistas alcançaram a graça teimosamente perseguida. Mas Duda foi precavido. Primeiro, confiscou o direito de réplica aos sorteados para formular perguntas. Na véspera do bisonho pingue-pongue, o marqueteiro submeteu o presidente a um interrogatório simulado, para que nenhuma questão surpreendesse o pupilo-chefe. E recomendou que levssse a conversa para o campo da economia. Havia números animadores a apresentar. Mais importante ainda, jornalistas sem especialização nessa área enxergam em debates econômicos o mais pantanoso dos terrenos.
Duda sugeriu a Lula alongar-se tanto quanto possível nas respostas, eliminando sobras de tempo que pudessem convidar a contestações. Jornalisticamente, foi um fiasco formidável. Duda e Lula gostaram. Acharam que haviam ganhado mais uma.
Na entrevista de segunda-feira, Duda não estava lá. Afastado do palácio depois do depoimento em que confessou ter recebido milhões de dólares da dupla Delúbio-Valério na conta aberta num paraíso fiscal, o criador não estava ao lado da criatura na mais complicada entrevista. Nunca o presidente pareceu tão só. O marqueteiro que tudo sabia não fora a única baixa. Ainda antes da crise, haviam dado o fora os amigos de fé Ricardo Kotscho e Frei Betto. Seguiram-se a queda de José Dirceu, a anemia política de Luiz Gushiken e as escoriações generalizadas sofridas por Antônio Palocci.
Os cinco sempre estavam na sala de audiências enquanto se movimentava o estúdio improvisado, acompanhavam a gravação da fala, preparada pelo ghost-writer Luiz Dulci, e no fim de tudo aplaudiam outra missão exemplarmente cumprida pelo incomparável Duda Mendonça. Ele escolhera a roupa certa, livrara Lula de armadilhas, sugerira as palavras e o tom corretos, extirpara com cremes milagrosos quaisquer vestígios de cansaço ou desassossego.
Na gravação do programa Roda Viva, faltava o indispensável Duda e nenhum desses companheiros estava lá. Talvez seja esse o mais escancarado efeito da crise sobre o coração do poder: a paisagem humana parece ter sido trocada, como tripulações exaustas. Nesta segunda-feira, quem comandava a movimentação no 3º andar eram o jornalista André Singer, porta-voz da Presidência, e o secretário-especial de Lula, Gilberto Carvalho. Os antigos mandarins estavam longe dali, empurrados pelos ventos da crise.
Do núcleo duro dos bons tempos, só ficara o quase invisível ministro Dulci, que acompanhou toda a gravação por um monitor. Cumpria-lhe avaliar minuto e minuto a performance de Lula. Em três dos seis intervalos, o entrevistado deixou a sala alegando urgências urinárias. Se foi ou não ao banheiro, pouco importa: o que erguia Lula da cadeira cujo primeiro dono foi Getúlio Vargas era a justificada ansiedade: ‘Como estão as coisas?’, perguntava Lula a Dulci. O ministro dizia o que diz para todos: ‘Tudo muito bem’.
No quinto bloco, Lula certamente se lembrou de Duda. Desandou a despejar números estimulantes e elogios ao quadro econômico, emendou com explicações sobre a compra do AeroLula e ocupou quase todo o tempo com um monólogo. Isso ele sempre soube fazer. Só precisa voltar a dominar a arte da entrevista convincente. E ficar à vontade com a imprensa.
Apesar da branda temperatura ambiente, Lula suou bastante. A cada intervalo, a maquiadora acercava-se do presidente para remover manchas de suor na testa. Antes do terceiro bloco, pediu um café que não viria a tempo. Queixou-se da demora. Chegado o intervalo, o café chegou depressa. ‘Agora não vou tomar, porque se não vou querer um cigarrinho’, resolveu o ex-fumante que ainda sucumbe aos chamados do fumante eventual.
Pelo menos naquele instante ele deve ter recordado com algum carinho o velho amigo Delúbio Soares, expulso do PT por ter operado ‘a terceirização dos recursos de campanhas eleitorais’, na criativa definição do entrevistado. Como atesta a foto famosa, era Delúbio, entre uma terceirização e outra, quem segurava por baixo da mesa o cigarro que Lula tragava escondido.
Lula decerto achava, e Delúbio também, que brasileiro é muito distraído.’
Daniel Piza
‘Mas eis que chega a roda viva’, copyright O Estado de S. Paulo, 13/11/05
‘De todas as más tradições brasileiras que o governo do PT reproduz, a pior é a de não assumir a responsabilidade por quase nada, jogando a culpa nos outros ou em motivos genéricos. Como vivemos num regime presidencialista e numa democracia imatura, o fato de que Lula seja a quintessência dessa tradição não poderia ser mais deletério. A entrevista que deu ao Roda Viva na última segunda-feira, no tom de quem faz uma concessão magnânima a esse mal necessário que a imprensa lhe parece ser, não espanta pela desfaçatez nem pelo diversionismo, mas por ilustrar tão bem a falta de noção de seus deveres como homem público, chefe de Estado, liderança, representante – como não? – da classe dirigente do País. É uma mistura de Dom Pedro II com Macunaíma, narcísico como um imperador, leviano como um desocupado.
A reação de Lula está sendo quase tão desastrosa quanto seu governo. Até agora, por sinal, não enfrentou uma entrevista individual, ou ao menos uma coletiva na qual o entrevistado exerce o direito de contestar em detalhes a resposta. Mesmo assim, deu um espetáculo de contradições e evasivas. Disse, por exemplo, que nenhuma denúncia está sendo provada, a começar pela do mensalão. Então o que são todos aqueles depósitos feitos nos bancos Rural e BMG para parlamentares ou seus assessores, por meio de Marcos Valério, um empresário cujos contratos com o governo deram um salto neste mandato e que freqüentava a sala de José Dirceu no Palácio do Planalto? Há provas documentais e testemunhais de cada um desses fatos. Valério falava com Dirceu e em seu nome o tempo todo, inclusive para beneficiar a ex-mulher do ministro.
Em seguida, Lula criticou Delúbio Soares – o sujeito do caixa é sempre quem vai ao sacrifício no lugar dos chefes da máfia – por ter ‘terceirizado’, com Genoino, as finanças do PT. Disse também que caixa 2 é ‘intolerável’. Mas, como mostrou naquela famigerada entrevista de Paris, ele mesmo tolerou tal prática no partido que comanda. Se todos os partidos fazem isso, como supomos que façam, Lula não é menos inimputável. Já a transferência ilegal de recursos para outros partidos, provada neste caso, é outro crime. E o uso de dinheiro público para tanto, outro maior ainda. O único julgamento que cabe a tudo isso é a cassação ‘política’ de Dirceu? E Dirceu já não deveria ter sido demitido quando um de seus principais assessores foi flagrado cobrando propina? Ninguém perguntou, Lula nem precisou enrolar uma resposta.
Lula também disse que não manobra contra as CPIs, o que voltou a fazer no dia seguinte à entrevista. E confirmou que ouviu de Roberto Jefferson a história do ‘mensalão’. Então por que nada fez? Voltou a soltar o bordão de que todos são inocentes até prova em contrário, mas disse ter certeza não só de que o mensalão não existe, mas também de que o assassinato de Celso Daniel foi um crime comum. Como pode ter certeza, se não investigou? Também se mostrou bem familiarizado com as produções da empresa de seu filho, Gamecorp, que recebeu aporte inabitual da Telemar de R$ 2,7 milhões; citou presumidos índices de audiência como se fossem explicações. Nos assuntos econômicos, também não poupou distorções numéricas, como os dados do Caged (que passou a computar as notificações de vagas como se fossem empregos criados), mas não se lembrou de mencionar outro dado: o crescimento do PIB deste ano mal passará de 3%.
Nem é preciso falar dos seus incontáveis erros de português. Ele erra quase todas as concordâncias de número e gênero, troca palavras (o Palácio da Alvorada, por exemplo, precisava de reforma porque tinha ‘problemas hidrelétricos’), não domina os conceitos. Essas são apenas traduções do contínuo ataque à lógica e à realidade que sai de sua boca. É comum ouvir a justificativa de que isso acontece porque ele não teve oportunidades na vida para ser claro, honesto e bem informado. Não; apenas achou mais conveniente seguir o caminho habitual da política – o caminho da falsa promessa, do assalto à máquina pública, do populismo latino-americano. E durante décadas a ‘esquerda’ jurou que ele era de ‘esquerda’…
O curioso é como ele se revelou mais indignado com as críticas aos seus deslumbres de poder do que com a má gestão delubiana. Ninguém disse que o AeroLula é seu, presidente. Tal ato falho é significativo. O que se criticou foi o custo do negócio, para não falar da ironia existente na aquisição de um produto das multinacionais que o PT sempre considerou espoliadoras da riqueza nacional. Lula também nada falou sobre educação e saúde. Citou apenas iniciativas aprimoradas do governo FHC, como o Bolsa Família (agora espertamente confundido com o Fome Zero) e a estabilidade monetária. Por fim, reconhece agora que Cuba vive num ‘miserê’ e que falta democracia ao regime de Fidel Castro. ‘Foi tudo ilusão passageira/ que a brisa primeira levou’? Lula subiu ao poder pela simbologia. Por ela está descendo.
RODAPÉ
Por falar em sonhos que a roda do destino leva, a eclosão de revoltas de jovens descendentes da África árabe (do Magreb; chamados pelos franceses de ‘pieds-noirs’) nos subúrbios de Paris tem sido comparada com os movimentos estudantis de 1968, tema de um excelente livro que estou lendo no momento, 1968 – O Ano Que Abalou o Mundo, de Mark Kurlansky (José Olympio). Mas não tem muito a ver, porque nasceu de uma reação à truculência policial e correu como faísca no rastro do desemprego e da discriminação a que são submetidos. Não é propriamente política, não se volta contra valores de uma geração anterior. É um grito de vontade de integração, ou uma espécie de cobrança histórica semiconsciente pelos séculos de colonialismo europeu.
Por outro lado, como mostra Kurlansky, os acontecimentos em maio de 68 também não foram ‘orquestrados’, como supunham os conservadores; nasceram em reação a medidas punitivas das universidades e do governo, e os líderes foram se estabelecendo informalmente, com destaque para Cohn-Bendit, ‘Danny le Rouge’, o menos ideológico deles, um ruivo libertário, não socialista, dotado de humor e ardor, que não se portava como chefe de ninguém. No livro, ele nota que foram ‘a primeira geração da televisão’, que foi ao ver os outros na tela que o relacionamento se imaginou e se internacionalizou. A energia dos ressentimentos sociais está sempre aí, disponível; quanto mais se fecham os olhos para ela, mais estará à mercê de ideologias e/ou religiões.
Às vezes, por sinal, vejo pessoas dizendo que os grandes crimes contra a humanidade no século 20 não foram cometidos por religiões, e sim por ideologias como o nazismo e o comunismo. Mas a força do nazismo estava justamente em advogar por um ‘povo eleito’, destinado a comandar os outros; e o que era o comunismo senão a promessa de uma sociedade sem conflitos, plenamente igualitária, como um paraíso terreno? A contracultura foi ao mesmo tempo a expressão de uma fase utópica que terminava, para dar lugar a outras utopias, e a renovação de um sistema contra o qual dizia ser, a ‘democracia burguesa’, de consumo, em que o ‘I can’t get no satisfaction’ foi convertido em ‘just do it’. Ninguém escreve ironias como a história.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Olho nos jornais os anúncios de apartamentos em São Paulo e fico pasmo com o padrão de vida que tantas pessoas – das classes média e alta, sobretudo – parecem sonhar para si, ou ao menos se deixar convencer pelas incorporadoras. São quase todos prédios com fachada dita ‘neoclássica’, vidros espelhados, espaço social com cara de clube, dormitórios apertados, domínio do aparelho de TV na sala, número de vagas na garagem superior ao de quartos, etc. Toda a ideologia paulistana da fuga ao convívio em espaços públicos, com sua exaltação do automóvel, com seu gosto pela ostentação, com sua jequice de nomes estrangeiros, se estampa ali.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Ainda sobre a cultura novo-riquista paulistana: por que praticamente todos os espetáculos – shows, concertos, musicais, óperas, peças – são aplaudidos de pé ao final, como se fossem uma apoteose de talento?’
Claudio Lessa
‘A Força Da Internet’, copyright Direto da Redação (www.diretodaredacao.com), 6/11/05
‘Locutor 1: O desgoverno de Luiz Inacio Sonso da Silva está com cada vez menos opções para mentir e se fazer de morto. No ar, mais uma edição de ‘Minuto da Saudade’. Roda vinheta (trecho inicial de ‘Ébrio’, com Vicente Celestino). Segue o texto: Na União Soviética tão venerada pelos bolcheviques de galinheiro hoje refugiados no Brasil e que se dizem os reis da modernidade, da ética, da transparência e da honestidade – inserir vinheta em BG com barulho de vidro quebrando -, era proibido o uso de mimeógrafos a álcool, os populares ‘cachacinhas’. De copiadoras estilo xerox, então, nem pensar. Só esse fato já dá uma idéia do sentido de perigo que as comunicações independentes, diretas, sem controle ‘oficial’ podiam representar e dos danos que aqueles que estavam por cima da carne seca sabiam que estas máquinas poderiam causar ao ‘regime’. Encerra o programa rodando mais uma vez a vinheta com a música do Vicente Celestino, e desce até o fade completo.
Locutor 2: Este ‘Minuto da Saudade’ teve o patrocínio da internet! Para desmentir qualquer argumentação em segundos, demolir qualquer versão fantasiosa num piscar de olhos, encostar mentirosos na parede e derrubar governos corruptos, use a internet! Em banda larga, então, é uma maravilha! Você lê, ouve e vê as coisas acontecendo ao seu redor! A internet é uma invenção dos nossos bravos irmãos do Norte, que atravessou fronteiras e chegou para ficar!
Reflexão de quem está saindo do estúdio: é claro que um programete desses aí de cima não poderia jamais – em termos de conjuntura atual, claro – ser patrocinado pelo Banco do Brasil, né?, e por motivos mais do que óbvios.
Uma das coisas mais estimulantes no noticiário de nossos dias é acompanhar o ritmo alucinante dos acontecimentos, a rapidez com que a mentira é contestada ou imediatamente detonada, a facilidade com que se destrói tentativas de se criar uma (ou mais) versão(ões) para o fato verdadeiro. A pilantragem perpetrada pelo PT, que usou um dos maiores símbolos do País – o Banco do Brasil – numa tentativa informal de reduzir sua condição à de um ‘Bando do Brasil’, envergonhando a todos, é uma dessas situações, que se contrapõem brilhantemente à tentativa de criação de um Conselho Federal de Jornalismo atrelado ao que está aí.
A revelação do fato incontestável e indefensável – e que agora se eleva dos dez milhões de reais comprovados para uma expectativa em torno de cem milhões de reais, arrebenta de vez com a cantilena dos malas, que se apoiaram até agora num tripé de mentiras, a saber: o valerioduto não se alimentava de dinheiro público; repasses do mensalão teriam sido custeados pelos empréstimos no Banco Rural e no BMG; toda essa folia estaria restrita a caixa dois de campanha, crime, aliás, considerado uma transgressão menor, mera hipocrisia, no índex de falcatruas vigente.
Essa atividade de acompanhamento exige atenção, para que se evite o joio e fique-se apenas com o trigo – da mesma forma que ocorre nos intestinos das CPIs, onde toda aquela montanha de papel precisa ser cuidadosamente digerida, mas é interessante, muito interessante e até muito divertido, ver a sucessiva frustração das manobras que visam desmoralizar o processo publicamente.
O certo é que os tímidos esboços de reação do partido no desgoverno diante dessa mais recente e decisiva descoberta podem ser um indicativo de que agora estejam surgindo, pra valer, as bases mais sólidas de um processo de destituição de Lula, o Eterno e Etílico Sonso – e, na esteira do impeachment, a rápida substituição de todos os profissionais da anencefalia que, sob o patrocínio do PT, se encastelaram na administração pública, de alto a baixo, e quando chamados a depor, não sabem, não conhecem, não ouviram, não se lembram, não viram, não encontraram, não conversaram, não retiraram e, sobretudo, não roubaram nem deixaram roubar.’
Guilherme Fiúza
‘A volta do semi-Deus’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 9/11/05
‘O mensalão não existe. E ponto final. Quem afirmou foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em sua entrevista ao programa ‘Roda Viva’. E as verdades de Lula, possivelmente por algum dom divino, têm o poder de pairar sobre os fatos, intactas, inatacáveis. Não dá, portanto, para discutir com um sujeito desses. Lula venceu.
Não importa que uma conta da agência SMP&B de Marcos Valério no Banco Rural tenha abastecido políticos de vários partidos, inclusive do PT, com saques ao longo de vários meses somando mais de 20 milhões de reais, todos comprovados, levando inclusive à renúncia de deputados, inclusive o ex-líder do PT Paulo Rocha, e a abertura de processo de cassação de vários outros, incluindo o ex-presidente da Câmara, João Paulo Cunha, também do PT. Lula tem o misterioso dom de manter-se a salvo da confrontação com os fatos. Falou, está falado. O mensalão não existe, ponto final.
Esta e outras provas de que Delúbio Soares, braço direito de José Dirceu e homem da confiança do Palácio do Planalto, irrigou a base parlamentar do governo, notadamente PL e PP, com os recursos providos pelo lobista Marcos Valério, em operações conhecidas, confessadas e exaustivamente citadas pelo noticiário, desaparecem misteriosamente de cena quando Lula começa a dar uma entrevista. Ele está convencido de que não há mensalão, e a cachoeira de evidências parece encolher-se envergonhada, ante a certeza presidencial.
Caixa dois para a campanha de Lula também é uma evidência que se dissolve no ar numa hora dessas. Duda Mendonça confessou que foi pago pelo PT através de uma empresa offshore, à margem de qualquer contabilidade, isto é, por debaixo dos panos. Mas não tem nada, não. Lula disse na TV Cultura que isso é problema de Duda Mendonça. Mas não seria problema do PT também, que propôs ao publicitário que ele recebesse por fora, e concretizou a operação ilegal? O dinheiro que circula à margem da lei não é o famoso caixa dois? Era, até o momento em que o presidente declara estar convencido de que não é. Aí sua verdade se impõe olímpica, a salvo do contraditório.
Os poderes mágicos de Lula de lançar suas verdades acima dos fatos ficaram provados, também, nas referências do presidente a Roberto Jefferson. Lula decretou: em verdade vos digo, Jefferson foi cassado porque não provou a existência do mensalão. Até os microfones de lapela deveriam saber que Jefferson não foi cassado por este motivo. Jefferson foi cassado porque confessou tráfico de influência e recebimento de recursos ilegais para campanhas eleitorais. Mas a teoria de Lula se sustentou, impávida, sob os holofotes do ‘Roda-Viva’: Jefferson foi cassado porque não provou a existência do mensalão. Portanto, o mensalão não existe. Amém, presidente.
O campo magnético invisível que protege Lula dos fatos incômodos da vida o salvou, também, de ter de dar explicações sobre Luiz Gushiken. O super-ministro que caiu em desgraça, acusado pelo Tribunal de Contas de interferir em licitações a favor da agência de Marcos Valério, não apareceria para puxar o pé do presidente. Até as assombrações sabem o seu lugar diante da verdade presidencial. Mas se o fantasma do ex-ministro teimasse em aparecer, não haveria problema. Lula diria estar convencido de que o companheiro Gushiken é inocente. E a conversa estaria encerrada.
Assim como esteve quando o assunto foi José Dirceu. Trata-se de um santo homem. Ao menor sinal de desconfiança, Lula solta o seu bordão definitivo e absoluto: não há provas contra ele. E num passe de mágica, não há mais nada a se levantar contra Dirceu, uma vez que o presidente já decretou que as provas – assim como o mensalão – não existem. Evidentemente, o fato de Delúbio e Sílvio Pereira, os homens que comprovadamente triangularam com Valério na distribuição de dinheiro sujo, também fartamente documentada e confessada, serem homens escolhidos, dirigidos e protegidos por José Dirceu não tem a menor importância. Também não importam todas as provas testemunhais de secretárias, ex-mulheres e do próprio Valério, de que todos eles respondiam a José Dirceu. Lula disse que não há nada contra Dirceu. E fim de papo.
Seria até cansativo insistir no caso do aporte financeiro da Telemar na empresa do filho de Lula. É mais um assunto mágico, que orbita misteriosamente em torno do ponto central, sem tocá-lo. O presidente diz que se trata de uma empresa privada, portanto é um assunto privado. É claro que o que importa, no caso, é o fato de a referida empresa privada ser concessionária de um serviço público, isto é, diretamente subordinada a decisões governamentais – desde a tarifa que tem direito de praticar, até o mercado que tem direito de explorar. Mas esses detalhes se desmancham ante a magia presidencial.
Lula chegou a afirmar que não entendia as críticas à sua má vontade em atender à imprensa, argumentando que faz pronunciamentos diariamente. O país é obrigado a concordar com ele. Agora está claro que uma entrevista de Lula e um pronunciamento de Lula são, praticamente, a mesma coisa.’
Ana Araújo
‘Desmascarado ao vivo’, copyright Veja, 16/11/05
‘Na quinta-feira passada, o economista Vladimir Poleto prestou depoimento à CPI dos Bingos sobre a viagem na qual, a bordo de um Seneca, transportou 1,4 milhão de dólares de Brasília para Campinas, em São Paulo. O dinheiro, vindo de Cuba, foi entregue nas mãos do então tesoureiro Delúbio Soares, abastecendo o caixa da campanha de Lula – o que é ilegal. Nervoso e constantemente atendido por seu advogado, Poleto abriu seu depoimento lendo uma declaração de doze páginas, em que desmentia tudo o que dissera a VEJA em reportagem de capa publicada na edição 1.929. Garantiu aos senadores que jamais transportara dinheiro de Brasília para Campinas e que sua conversa com o repórter Policarpo Junior, de VEJA, realizada no bar do hotel Plaza Inn, em Ribeirão Preto, no dia 21 de outubro passado, não fora uma entrevista. O economista disse que não autorizou o repórter a gravar seu depoimento, que falou sob a ameaça chantagista de ter revelados detalhes de sua vida íntima e, por fim, que estava com seu ‘discernimento comprometido’ pelo chope e pela ‘cachacinha’ que bebera antes e durante a conversa com VEJA.
Pela primeira vez no atual escândalo, um depoimento foi desmascarado ao vivo, antes que a testemunha levantasse da cadeira. O senador Demostenes Torres (PFL-GO) pediu que se executasse em plena sessão uma gravação de quase oito minutos divulgada por VEJA em seu site (ouça o trecho). Na fita, Policarpo Junior começa informando o momento e a identidade do entrevistado, num sinal eloqüente de que a gravação não foi feita às escondidas. Em seguida, Poleto, sem exibir nenhuma contaminação alcoólica na voz, responde às perguntas que lhe são formuladas num tom sereno e firme. Na conversa, Poleto diz que levou três caixas de bebida de Brasília para Campinas e, mais tarde, ao ser presenteado com uma ‘garrafinha de Havana Club’, uma marca de rum cubano, soube que havia 1,4 milhão de dólares dentro de uma das caixas. Com isso, ficou claro que Poleto mentia à CPI. Encerrada a execução da fita, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pediu o ‘imediato indiciamento’ do depoente. Não fosse o habeas corpus que pedira previamente à Justiça, Vladimir Poleto teria saído da CPI preso e algemado. Pessoas que saem presas das CPIs são levadas para uma delegacia da Polícia Federal e interrogadas. Elas são postas em liberdade horas depois, em geral por força de um habeas corpus concedido pelos juízes de plantão. É um mecanismo mais pedagógico do que punitivo.
O depoimento de Poleto foi um completo desastre para ele mesmo e para seus patrocinadores, mas trouxe um raio de luz ao caso dos dólares etílicos voadores. Quando VEJA publicou reportagem sobre o assunto, dirigentes do PT e do governo, mas também vozes apartidárias, disseram que a matéria era ‘fantasiosa’ e ‘inverossímil’. Com o testemunho de Poleto, tão acintosamente mentiroso, a impressão de que a história seja uma fantasia começou a cair por terra – pelo menos para os analistas honestos. Quando VEJA revelou o caso dos dólares cubanos, o jornalista Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, por exemplo, fez reparos à matéria e apontou aspectos da história que lhe pareceram inverossímeis. Depois do depoimento de Poleto, na sexta-feira o jornalista voltou ao assunto em sua coluna: ‘Eu mesmo escrevi aqui que a história de Veja parecia inverossímil em vários pontos, mas, diante das mentiras flagradas de Poleto, fica claro que naquelas caixas de uísque e rum havia mais coisa do que simplesmente bebida’. Por sua clareza e honestidade, ambos os textos, o que fez críticas e o que reconheceu as mentiras de Poleto, são exemplos da seriedade do colunista diante dos fatos disponíveis para sua análise.
O que terá levado Poleto a ser tão claro – sobre o vôo, sobre as caixas, sobre o dinheiro – em sua entrevista a VEJA e, depois, mudar tão radicalmente de comportamento? Não se sabe, mas não é muito difícil imaginar, considerando-se que uma doação de dinheiro estrangeiro, de Cuba ou de qualquer outro país, é um crime eleitoral de primeira gravidade – e, se for comprovado, pode levar até mesmo à cassação do registro do PT. É um caso de difícil comprovação, pois naturalmente o dinheiro que chegou a Brasília não deixou rastro atrás de si. Uma alternativa, que não autoriza nenhum otimismo, é que os envolvidos contem o que sabem a respeito do assunto. O advogado Rogério Buratti tem feito isso. No mesmo dia em que Poleto falou à CPI dos Bingos, Buratti também depôs e reafirmou o que contara a VEJA. Disse que fora consultado por Ralf Barquete, a pedido do ministro Antonio Palocci, sobre formas de trazer dinheiro de Cuba para o Brasil. Mais tarde, soube que os recursos chegaram e que somavam 3 milhões de dólares.
Confira um trecho da entrevista de Vladimir Poleto a VEJA
Veja – E o que tinha dentro dessas caixas, segundo te disseram?
Poleto – Uma coisa é o que me dizem, outra coisa é a realidade…
Veja – E o que te disseram?
Poleto – Que tinha dinheiro numa das caixas. Só isso.
Veja – Quem disse isso?
Poleto – Ralf Barquete.
(…)
Veja – Qual o valor que foi falado?
Poleto – É…
Veja – Segundo a informação que eu tenho, o valor transportado teria sido 3 milhões de dólares.
Poleto – Não. O valor que me disseram era 1 milhão e 400 000 dólares.’