‘Um filósofo, desses que abundam por nossas plagas, provou que Deus não existe. Descobriu um trecho na Bíblia que diz: ‘Deus não existe’. Foi um pânico entre os devotos. Então o Livro dos Livros declarava a inexistência de Deus?
Procuraram a citação. Até que encontraram. Lá estava a afirmação, com todas as letras: ‘Deus não existe’. Porém havia uma vírgula depois do verbo, e a frase completa era: ‘Deus não existe, diz o ímpio em seu coração’.
Na atual enxurrada de provas, de extratos bancários, de escutas telefônicas, em alguns casos (não em todos) há citações que os acusados declaram estar ‘fora do contexto’ -tal como a afirmação do filósofo acima lembrado.
E, além do contexto literal, há o contexto da ocasião em que ela foi dita e como foi dita. Nas últimas semanas, tanto nos jornais como nas revistas semanais, publicam-se trechos de contas bancárias, de relatórios e informes secretos de empresas, bancos, repartições públicas etc.
É evidente que ninguém pode negar a existência e a malignidade dos muitos escândalos que detonaram de forma irreparável o governo e o PT. Mas as provas, por mais provadas que sejam, deixam espaço para contestações que, mais cedo ou mais tarde, poderão, em alguns casos, reverter a situação. Darei dois exemplos recentes:
A mídia divulgou um extrato bancário que acusava Severino Cavalcanti de ter recebido um suborno de R$ 40 mil. Mas o cheque apresentado pelo acusador, e que motivou a sua renúncia ao mandato, era de apenas R$ 7,5 mil. Fosse de R$ 0,07 daria no mesmo -o suborno ficaria provado. A mídia não mais falou na diferença das quantias.
Na suposta operação cubana, dinheiro que Fidel teria mandado para o PT, segundo alguns, a ajuda seria de US$ 3 milhões, mas, segundo outros, seria de US$ 1,4 milhão. Qualquer uma das duas, se provadas, daria para cassar o registro eleitoral do partido. Mas fica aberta a porteira para a dúvida e a contestação.’
LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva
‘Nós e os bichos’, copyright Jornal do Brasil, 16/11/05
‘‘Boi, boi, boi/ boi da cara preta,/ pega esta criança/ que tem medo de careta.’ ‘Fulano foi muito cavalo e deu vários coices durante a reunião, sem reconhecer que o colega tinha trabalhado como um boi.’ ‘Quem lhe deu tantas tarefas fez de conta que você é burro de carga.’ ‘Descanse um pouquinho e vá brincar, cantando a famosa canção: ‘Roda, cotia, de noite e de dia,/ o galo cantava e a casa caía’. Mas evite a outra, malvada com um carinhoso animal de estimação: ‘Atirei um pau no gato (to, to; não é totó, que seria cachorro,/ mas o gato (to, to; idem, ibidem) não morreu (reu, reu; não é réu, é reu, eco, por isso não vai a juízo),/ Dona Chica (ca, ca; não junte, que vira o apelido Cacá),/ admirou-se (se; neste verso, repetir apenas uma vez a última sílaba, que o metro está completo),/ do berrô, do berrô (berrô não é berro; quem berra é boi; gato mia!). Miauuuuuuuu’. Ah, agora você pôs para fora a língua do gato!’.
‘Sicrano macaqueou Beltrano.’ ‘Parente é serpente’, diz o título do filme de um cineasta italiano. ‘O gatuno furtou a mochila dos turistas que lagarteavam na praia.’ O tal gatuno era rato de praia ou rato de hotel? Qual é a diferença entre o rato de biblioteca e o rato de sacristia? Por que quem fica com a maior parte fica com ‘a parte do leão’? Quem não conhece mãe coruja, pai coruja, avó coruja?
Cuidado ao invocar animais, aves, pássaros e peixes para falar dos semelhantes! Há diferença essencial entre perua e galinha, cadela e cachorra, vaca e potranca. O amigo-da-onça namora uma tigresa, derrama lágrimas de crocodilo mas enche a amada de chifres, é cobra criada e dá abraço de tamanduá. Longe dela, diz cobras e lagartos da jararaca, mata a cobra e mostra o pau. Com aquele olhar de peixe morto, esqueceu os versos famosos: ‘Como pode o peixe vivo/ viver fora da água fria?/ Como poderei viver sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?’.
Recorrer aos seres vivos em terra, mar e ar, para revelar emoções, idéias e até preconceitos, eis um de nossos recursos de expressão mais habituais. Também o reino dos inanimados é invocado com freqüência, de que são exemplos as expressões ‘pedra no lugar do coração’, ‘olho de vidro’, ‘mão de ferro’, ‘cara de pau’ etc.
‘O anel que tu me deste/ era vidro e se quebrou.’ É, mas Maria Bethânia já disse: ‘Se esta rua, se esta rua fosse minha/ eu mandava, eu mandava ladrilhar,/ com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante/ para o meu, para o meu amor passar’.
Outras vezes, você quer ser inanimado, mas tecido por mãos diligentes: ‘Eu queria ser balaio, balaio eu queria ser/ pra ficar dependurado na cintura de você’.
E se a bela não lhe der bola, só lhe restará comparar sua situação à do batráquio infeliz: ‘Sapo-cururu na beira do rio/ Quando o sapo grita, ó, maninha, diz que está com frio’. O frio deve ser muito intenso, pois altera até a linguagem do sapo, que, em vez de coaxar, grita! Logo, porém, o sapo terá o calorzinho da companheira, ‘que está lá dentro/ fazendo renda, maninha, para o casamento’.
Também os insetos colaboram conosco na arte de falar: Fulano estrilou! Ou, se ave doméstica, não deu um pio!
Deonísio da Silva escreve às quartas’
FRANÇA CONFLAGRADA
Marcelo Coelho
‘Gangues em Paris, escritores no Capão Redondo ‘, copyright Folha de S. Paulo, 16/11/05
‘Com indisfarçável prazer terceiro-mundista, andamos falando bastante da periferia de Paris nos últimos tempos: nada como alguns incêndios e distúrbios para esses franceses aprenderem o que é bom para a tosse…
Enquanto isso, na nossa situação de relativa calma social, pode ser interessante dar uma olhada num livro organizado pelo escritor Ferréz, morador do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo. Trata-se de ‘Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica’ (editora Agir), reunindo contos e poemas anteriormente publicados em edições especiais da revista ‘Caros Amigos’.
O livro, de 132 páginas, abre-se com um texto de apresentação do próprio Ferréz, intitulado ‘Terrorismo Literário’. Vale citar seus parágrafos iniciais, como que sacudidos por um movimento de afirmação e de negação, revoltado e celebratório ao mesmo tempo.
‘A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós. Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre, segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas. Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca! Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve (…) Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.’
De Luiz Alberto Mendes, que narra sua experiência como detento no Carandiru, a Dona Laura, ‘porta-voz de sua comunidade na colônia de pescadores 2-3, em Pelotas – RS’, passando por Eduardo Dum-Dum (Facção Central), do Grajaú (São Paulo), todos os autores do livro pertencem, no dizer de Ferréz, às ‘três letras classes: C, D, e E’.
O que os move, claro, é a necessidade de não mais serem ‘objeto’ do discurso alheio -da literatura, do jornalismo, da sociologia feita pelas ‘classes A e B’. Trata-se de tomar a palavra, na certeza de que ‘cultura é poder’, como diz Preto Ghóez, que acrescenta: ‘Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e tristes, nos darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos filmes sobre nossas vidas em nosso habitat, mal sabem eles que o sangue já transborda da perifa, que existe mão-de-obra excedente com armas na mão (…)’.
O texto de Preto Ghóez vai longe, num ritmo de memorável eloqüência. O ‘eles’ desse discurso todo corresponde, claro, a ‘nós’, eu e você, leitor, embora -do nosso ponto de vista- o retrato seja um tanto distorcido. Sabemos perfeitamente, por exemplo, que ‘o sangue já transborda da perifa’ e que ‘existe mão-de-obra excedente com armas na mão’. Todo membro da classe dominante sabe que a classe baixa representa uma ameaça potencial à sua segurança.
Mas o jogo literário, aqui, é de outra ordem. Para se afirmar como sujeito, é preciso que o autor desqualifique tudo o que tenha sido dito a respeito de sua condição social: ‘Não nos conhecem’, ‘não sabem disto e daquilo’, ‘falam de fora’ etc.
Com isso, os textos de ‘Literatura Marginal’ acabam se tornando mais paradoxais do que parecem à primeira vista. O manifesto de apresentação de Ferréz oscila, por exemplo, entre dois registros: o jargão acadêmico e a fala popular, entre o discurso ‘de fora’ e a fala ‘autêntica’.
Num trecho, lemos frases assim: ‘Jogando contra a massificação que domina e aliena os assim chamados por eles de ‘excluídos sociais’ e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/ gueto tenha sua colocação na história (…) a literatura marginal se faz presente…’. E, logo em seguida: ‘Na real, nego, o povo num tem nem o básico pra comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde pode ter us barato pra agüentar mais um dia’.
O empenho autêntico de auto-afirmação não dispensa uma fraseologia ‘externa’, um sociologuês legitimador. Mas Ferréz rejeita essa posição de dependência: ‘Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta de ninguém para abrir, nós arrombamos a porta e entramos’. O problema é que, embora dispense a legitimação do leitor burguês, o texto continua se dirigindo a esse mesmíssimo leitor.
A contradição não tem como ser resolvida numa sociedade em que a maioria não lê, muito menos escreve. Querendo falar com a ‘voz da periferia’, muitos desses autores terminam usando uma linguagem estereotipada, como para provar que estão ‘fazendo literatura’. ‘Durante muito tempo naveguei pelos mares da vida, num barco de ilusões’, diz alguém; para outro escritor, ‘meus olhos vêem quando eu olho pra favela almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas, crianças sem futuro, vejo apenas vítimas de dor’.
As contradições não são menores no plano semântico, com mensagens opostas coexistindo vertiginosamente num mesmo texto: o ser humano será sempre igual, mas a paz vencerá; a justiça será feita, mas o poder está sempre nas mãos de uns poucos; somos ignorados, mas já ouvem nosso grito, e assim por diante.
Tantos clichês e ambigüidades revelam, entretanto, uma situação mais complexa e interessante do que a atual capacidade dos ‘escritores marginais’ para descrevê-la. Antes de tudo, parece haver tanto uma condição de real isolamento social -o gueto, a discriminação, a pobreza- quanto um acréscimo notável nos meios de informação -a TV, a escola, a internet.
Nelson Mandela e Hitler, Ceausescu e João Antônio, Zumbi e Kafka aparecem nos textos, ao mesmo tempo em que as referências à realidade imediata do desemprego e do tráfico de drogas. Um presente imutável e as evidências da mudança estão ali, em cada página, lado a lado. O livro está pronto, mas a história continua.’
CRISE NAS AMÉRICAS
Ariel Palacios
‘Alca, mentiras e videoteipes agravam crise ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 16/11/05
‘O governo do presidente Néstor Kirchner transformou-se no suspeito de ter repassado ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, os videoteipes com as gravações dos debates entre os presidentes que participaram, há uma semana e meia, da 4.ª Cúpula das Américas, no balneário argentino de Mar del Plata. Os vídeos, transmitidos pelo canal estatal venezuelano Telesur, mostram as ásperas discussões entre os presidentes pró e anti-Alca. Num trecho, Kirchner (contrário à Área de Livre Comércio das Américas) aparece tendo um embate com Fox (a favor). A divulgação das imagens irritou o governo mexicano, que argumentou que a emissão do vídeo pela TV venezuelana é ‘ilegal’, já que o acordo entre os presidentes determinava que as discussões seriam privadas.
O governo Kirchner se mantém oficialmente em silêncio sobre o caso. Extra-oficialmente, a diplomacia argentina afirma que os vídeos não foram entregues pela chancelaria. Na sede da presidência, a alegação foi a mesma. Por isso, suspeita-se que as imagens foram entregues ao governo da Venezuela pelo Canal 7, a emissora estatal argentina, encarregada de filmar a cúpula. Analistas afirmam que isso poderia ter ocorrido com a bênção de Kirchner, amigo de Chávez. Mas o canal também se exime de responsabilidade e afirma que não recebeu pedido formal de Caracas para entregar os vídeos.
‘Alguém está mentindo em Buenos Aires’, sustentou um colunista político, indicando que as suspeitas sobre o Canal 7 são consideráveis, já que a diretora, Ana de Skalon, é esposa do deputado Miguel Bonasso, amigo de Kirchner e fanático militante chavista em Buenos Aires. Bonasso, um jornalista peronista transformado em escritor de best sellers que há poucos anos criou um partido político, acompanhou Chávez durante o discurso deste na ‘anticúpula’ realizada em Mar del Plata como contraponto à reunião de presidentes.
As suspeitas de envolvimento do governo Kirchner no envio dos vídeos foi reforçada pelo inesperado anúncio de que o presidente irá domingo a Caracas para reunir-se com seu amigo Chávez.’