Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Aparecido, querida pessoa

Uma tarde, na minha passagem de um ano pela presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2003, me chamam ao telefone. Quem era? José Aparecido. ‘Governador, que prazer!’ (para mim ele sempre será o Governador de Brasília) e ele: ‘Hoje, você é a minha única ligação com o governo’. Pensei comigo: ‘Não pode, alguma coisa está fora de ordem’. Tratava-se de uma providência simples, empurrar a burocracia em relação a restauro na Igreja da sua cidade, Conceição do Mato Dentro.


Hoje, abro o jornal e fico sabendo que ele nos deixou. Deu um aperto no coração, senti uma grande saudade daquela presença acolhedora, generosa e atuante. Como é bom quando a sensibilidade e a inteligência estão presentes no poder, quando o poder não é fim, mas meio para se ir além em outro tipo de propósito. E me dou conta que ele foi exatamente isso – por onde passou, cavalgou o poder a serviço do Brasil, do Brasil encarado em sua verdadeira dimensão.


Como não poderia deixar de ser, o que me vem hoje à lembrança é o quanto ele fez por Brasília – não fosse sua idéia de propor à Unesco a inscrição de Brasília como Patrimônio da Humanidade, talvez o Iphan não tivesse tomado a iniciativa do tombamento, instrumento indispensável para fazer frente às investidas da especulação imobiliária.


Logo que assumiu o governo do Distrito Federal, em 1985, convocou Lucio e Oscar de volta a Brasília. Na primeira vinda de Lucio à cidade, o Governador fez uma coisa que ninguém mais faria: na época, Carlos Magalhães era Secretário de Obras e estava empenhado na implantação da ciclovia no Lago Sul; fomos ver as obras, e qual não foi a surpresa? Num cavalete, ali, ao ar livre, na beira do lago, nada menos do que o desenho original do plano piloto, que Lucio não via desde o concurso, quase trinta anos antes.


Surpreso e encantado, ele olhava com carinho os detalhes da sua invenção. Vira-se o Governador e diz: ‘Agora assina de novo!’ (o original é assinado Rio, 10/III/1957). Lucio obedeceu, acrescentou a nova data (27/IX/85), e rubricou. E José Aparecido: ‘Agora, diga onde você está!’ com um sorriso feliz, olhando para a cidade em carne e osso à sua frente, o ‘inventor’ acrescentou, antes da data: Brasília.


Construiu, com o empenho do Secretário de Obras, duas das Quadras Econômicas projetadas por Lucio Costa, que fariam parte de uma implantação em larga escala, configurando uma outra política habitacional proposta ao CAUMA pelo próprio Lucio, em reunião memorável, que o Governador nunca deixou de lamentar não ter gravado.


Conseguiu o apoio do Bradesco para a construção do Espaço Lucio Costa na Praça dos Três Poderes, proposto por Oscar Niemeyer, de cuja ambientação interna o próprio homenageado se ocupou, até o dia da inauguração, em 27 de fevereiro de 1992, quando completou 90 anos.


No pronunciamento feito pelo então Presidente da República, Fernando Collor de Mello, em almoço por ele oferecido ao aniversariante no Itamaraty, José Aparecido contribuiu com dois comentários: um sobre o fato de Lucio ter permanecido junto com o pintor até acertar o azul da parede do fundo do Espaço, e outro em relação aos sapatos que usava. Acontece que meu pai gostava de usar um sapato comum, marrom, que se chamava ‘Passo Doble’, difícil de encontrar no Rio – e o descobri em Brasília. O Governador, me vendo com aquelas caixas na mão, perguntou o que era aquilo, e comentei o caso, acrescentando que meu pai os engraxava com graxa preta, o que lhes conferia um ar de sapato inglês – e este fato foi incluído no pronunciamento do Presidente.


Lucio Costa ficou profundamente grato a Oscar e a José Aparecido pela existência do Espaço Lucio Costa. E dentre as muitas cartas enviadas por ele ao Governador, gostaria de deixar aqui registrado esse pequeno bilhete:


‘Dr. José Aparecido,


Mais uma vez obrigado por ter dado continuidade à iniciativa do Oscar.


Assim, quando já estiver farto de estar morto, continuarei vivo na praça que chamei de Três Poderes nesta cidade que inventei.


LC


Madrugada 10 / III / 92′


Deus permita que, quando ‘estiverem fartos de estar mortos’, esses dois preciosos brasileiros inventem um jeito de voltar ao lado de cá, e ajudar de novo o Brasil na sua difícil caminhada.

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Arquiteta, filha de Lucio Costa