Caro Presidente Luiz Inácio Lula do Brasil,
É verdade que a escrita não tem pai nem origem e ela pode, em tese, ser utilizada por qualquer um para qualquer coisa e a isso que aprendemos a chamar, muito apropriadamente, exercer a liberdade de expressão.
Como, aqui, empregarei a palavra verdade como uma possibilidade de interpretação; de interpretação da e sobre a verdade, sendo esta, portanto, uma interpretação de um sujeito que agora está a escrever e que, também por isso, não tem pai, nem origem, como você, Lula, sou considerado um analfabeto, ainda que tenha um desvalorizado título de doutor em letras ficcionais. Porque a ficção, Lula, como nós dois, como todos nós, não tem pai, e nem origem.
E não ter pai nem origem, isto é, ser escrita, ser ficção, é apenas uma forma de dizer que somos frágeis, leves, vulneráveis, soltos, espécies paradoxais de rios heraclitianos cujas águas, como todo rio, nunca são as mesmas, em cada ponto de seu fluir.
Não ter pai e nem origem é ser mais servo que senhor feudal, mais plebeu que nobre, mais operário, ou lumpen, que burguês. É mais Lula que FHC?
Assim, se é verdade que a escrita não tem nem pai e nem origem e tudo isso é uma maneira de dizer que somos humanos, demasiadamente humanos, que somos, enfim e em começo, seres vivos de carne e osso, sugiro, senhor presidente, que essa minha interpretação heraclitiana da verdade escreva neste momento que a verdade é não ter posse de verdade alguma, que a verdade é ser vulnerável, sem essência, sem dogma; é ser plebeu.
A verdade do pai
Por outro lado, se é verdade que posso, mesmo não defendendo verdade alguma, argumentar esta verdade: a de todos e de ninguém, a verdade sem casta, sem árvore genealógica, sem mito cosmogônico de origens epopéicas, então é verdade que eu possa dizer o que é a verdade, mesmo para dizer que ela não existe.
Portanto, é verdade que existem muitas verdades, Lula.
E é também por isso que podemos sugerir que, se é verdade que a Verdade que se impõe sobre as outras é a que tem origem, então é preciso dizer que ter origem é começar de um ponto, de um lugar dito como verdade fundamental, capaz de mudar tudo, de ser o princípio, o meio e o fim, e por isso mesmo a referência a que sempre retomamos, como que para destacar o nome do pai fundador, espalhando-o por todos os lugares, colocando suas imagens, suas esfinges, seus ícones por todos os lados e rincões, de tal maneira a, estejamos onde for, encontrarmos a verdade do pai fundador, numa ilusão de ótica a nos incitar a acreditar que a verdade do pai é a única que existe, sendo ela todo o mundo, como a verdade do Pai FHC e sua origem no superávit primário, nos juros altos, nas privatizações dos recursos nacionais, no FMI, no Banco Mundial, no Consenso de Washington, na ONU, Casa Branca, multinacionais, União Européia, e tantas outras verdades impostoras.
Assim, estimado presidente, porque a verdade impostora, dessa rede de oligopólios planetários, dita o que é Verdade, tudo que não a reproduz, a idealize, a incorpore, a projete, a inscreva, numa palavra, a obedeça (obedecer ao pai fundador) Lula, ou é traidor ou é, simplesmente a não verdade: a mentira, o falso, o feio, o monstruoso, o incrível, já que apenas a verdade do pai é e pode ser crível, sendo incrivelmente crível, ou crivelmente incrível, conforme o caso.
Papéis moeda sem lastro
É por isso que digo, Lula, que a verdade maior é a verdade menor; é plebéia, e, como na fábula bíblica do fratricídio, a do Caim matando Abel, de alguma forma, poderíamos interpretar que talvez tenha sido o contrário, que talvez tenha sido Abel quem matou Caim e que este, por não reproduzir a Verdade de Deus, caiu numa cilada fratricida, sendo condenado a ser reconhecido como assassino, falso, perigoso, mentiroso, aonde quer que fosse, a partir da marca (a marca de Caim), na testa.
É igualmente por isso que podemos dizer que a verdade menor tem marcas na testa e é reconhecida, aonde quer que vá, como falsa, errada, dissimulada, mentirosa, perigosa, feia, assustadora, traidora, traiçoeira, assassina, fingida, sagaz, artificial, assim como a Verdade impostora, porque se impõe como Verdade original, é a que, de tanto impor a sua Verdade, de tanto ser origem única, reproduz tantos clones de seus dogmas que pensamos que esses clones, da verdade dogmática, já não são clones, nem dogmas, porque se apresentam como não tendo marcas, como sendo Abel no lugar de Caim.
È por isso que, embora não tenha pai, que seja órfã, a escrita das verdades menores não pode disfarçar suas pequenas impróprias verdades, porque tem marcas na testa, sendo reconhecida, aonde quer que vá, como escrita perigosa, falsa, mentirosa.
Toda essa divagação inicial é para dizer, Lula, que a liberdade de expressão não pode ter monopólio – ou oligopólio – de interpretação, isto é, não pode ter origem unidimensional, não pode ser reprodutora e clone das assinaturas que têm crédito, ou cujos créditos são impostos por papéis moedas sem lastro nas verdades menores, que são as verdades de qualquer um, que são as verdades dos plebeus, que são, enfim, as menores verdades daqueles que são vitimados e humilhados diariamente – com falta de moradia, de saúde, de reconhecimento de suas menores verdadeiras verdades.
Infração constitucional
Dessa forma, considerando que o Senhor, Presidente da República do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, por mais que tente disfarçar, com as Verdades da fama, do prestígio e do poder, é aquele que tem a marca de Caim na testa; é aquele cuja história sempre foi vista, sob o ponto de vista das Verdades impostoras, como mentirosa, falsa, perigosa, bruta, ignorante, sem pedigree e analfabeta; considerando essas inverdades, Lula, daqueles que humilham e vilipendiam e exploram as verdades menores, Lula; considerando, Lula, que você tenha ainda um mínimo de orgulho – orgulho não, que é palavra demasiadamente feita de verdades exclusivistas -; um mínimo de dignidade em relação à sua não origem, de vermelho sangue comum, nunca azul; e também considerando que, por isso mesmo, por ter a marca plebéia de Caim na testa, Lula, faça você o que quiser, vá aonde for, você nunca vai ser aceito pelas Verdades dos ricos do Brasil e do mundo, considerando isso tudo, Lula, meu igual, exulto-o, rogo-lhe e te peço, em nome de cada verdade menor deste nosso Brasil, Lula, também grandemente menor; em nome de todos os povos verdadeiramente menores da América Latina, dos EUA, da África, Europa, Ásia, Oceania, porque eles, a legião de verdadeiros menores, existem em todo o mundo, Lula; em nome da verdade da boa alimentação para qualquer um, da verdade da saúde para qualquer um, da verdade de uma educação despreconceituosa, libertadora, criadora e dignificante, para qualquer um, Lula; em nome de toda vida menor deste planeta, Lula, toda vida ameaçada – e, neste momento, Lula, sendo indiferentemente assassinada – pelas verdades da exploração econômica, da especulação financeira, imobiliária, latifundiária, rogo-te, presidente, que aproveite a oportunidade, garantida pelas pequenas verdades dos brasileiros comuns, para tomar uma decisão histórica: não assinar a renovação dos contratos de concessão da Rede Globo de Televisão do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Brasília, vencido no último dia 05 de outubro do corrente ano, Lula, nem que para isso você, Lula, como um valente, como um Sanção de cabelos curtos, grite esperneie, desespere, se permita ser chamado de autoritário, de falso, de desrespeitador da liberdade de expressão dos ricos.
Embora saiba que as razões das verdades menores são sempre vistas, pelos monopólios de interpretação de todas as épocas, como inverossímeis, impossíveis, inacreditáveis, irrealizáveis, ou ultrapassadas, anacrônicas, ressentidas, enfim, embora saiba que as justificativas das verdades menores costumam não ter validade para o monopólio das verdades jurisdicionais, Lula, ainda assim, te forneço alguns motivos – que sua equipe de advogados pode traduzir em infração constitucional – para não renovar a concessão da Rede Globo de Televisão.
A serviço de quem?
São eles:
1. A Rede Globo de Televisão tem usado suas concessões para projetar a enganadora sombra agigantada das verdades dos ricos, principalmente a dos ricos imperiais, sobre a parede de cada lar do Brasil, Lula, infringindo, assim, os mais elementares e constitucionais direitos de expressão das pequenas verdades de todos os brasileiros que não podem se agigantar também, presidente, como ilusionista sombra de onipresente beleza, bom-gosto, inteligência, sensato, dona de todas as razões legais, morais, trabalhistas, afetivas e ideológicas.
2. A programação da Rede Globo de Televisão, toda a programação, sem exceção, é neoliberal até o último fio de cabelo. Seja no jornalismo, seja nas novelas, seja nos programas de auditório, seja nos filmes que escolhe para passar, seja nas publicidades que veicula, presidente Lula, podemos ver, naturalizado, Lula, como origem, como verdade que parte de um ponto fundamental, como Verdade Maior, que não pode ser questionada, como verdade de um FHC, de um Serra, Aécio Neves, de um Banco Mundial, de uma Organização Mundial do Comércio, como verdade da Casa Branca, do império dos ricos, podemos ver, no mundo transmitido pela Rede Globo de Televisão, o mundo neoliberal naturalizado, como se fora o único mundo possível, logo podemos ver o mundo em que as taxas de juros devem mesmo ficar elevadas para garantir a extorsão das riquezas dos povos, para que seja concentrada na mão de especuladores, de rentistas, de parasitas do trabalho de qualquer um, Lula.
3. Igualmente podemos ver, nas artimanhas ilusionistas da tevê Globo, senhor presidente, a naturalização de nossa neoliberal época, a nos dizer que acabou a era – a que nunca alcançamos – das políticas de pleno emprego e que é preciso individualizar a culpa pelo desemprego, como fruto de incompetência , assim como a verdade fundamental de que devemos morar num país em que tudo que venha do Estado não presta, e por isso mesmo o Estado brasileiro deve reduzir drasticamente os custos dos gastos sociais, com a previdência, a educação e a saúde. Não é isso que o senhor docilmente tem feito até agora, Lula? Estará o senhor a serviço da Globo, e esta, a serviço de quem?
Vida pessoal privatizada
4. Também é possível sentir, no rosto fingidamente sério e responsável, de cada jornalista da tevê Globo, a presença dessa outra verdade imperial e neoliberal, Lula, a de que o Estado deve, em nome dos ricos, facultar toda sorte de incentivo fiscal aos poderosos, aos exportadores, aos banqueiros, à própria Rede Globo, de modo que toda riqueza que o povo do Brasil produz fique concentrada nas mãos deles e o Estado brasileiro fique sem recursos para investir em infra-estruturas diversas, como as que possibilitarão uma educação digna e de qualidade, como as que são indispensáveis para que possamos ter o geral e irrestrito acesso universal à saúde, abandonados secularmente que temos sido, Lula, como povo.
5. Por isso, Lula, em nome da verdade neoliberal de promover e incentivar a riqueza de e para poucos, cortando impostos sobre fortunas e especulações, a Globo impõe, como verdade sagrada, a impostora verdade de que é preciso que o Estado brasileiro, e é por isso que é ineficiente, flexibilize o trabalho, acabe com o décimo terceiro, para finalmente e ao mesmo tempo privatizar tudo, porque apenas a iniciativa privada é a única e inquestionável verdade, assim como a privada iniciativa da Globo o é.
6. Assim, através da programação da tevê Globo, somos convocados a aceitar que somos seres individuais, nunca sociais, e que todos os aspectos de nossa vida, os ligados aos afetos, logo à felicidade, os ligados aos êxitos econômicos, educacionais e que tais, todos os aspectos, enfim, de nossa vida pessoal e familiar e social, devem ser igualmente privatizados, de tal modo que todas as nossas atividades só terão valor se forem ou se comportarem como mercadorias.
Saquear e roubar
7. Não é apenas – o que já é um crime de lesa-pátria e de lesa-humanidade – a privatização da saúde, da educação e de nossos recursos naturais que a Globo arduamente naturaliza e tenta impor como verdades inquestionáveis, Lula, mas também a privatização das novas gerações, posto que estas devem ser objetivos do mercado desde que nascem, devem ser também mercadorias; mas também, Lula, a mercantilização étnica, posto que negros e índios e mestiços só serão aceitos se também se venderem, se aceitarem a verdade do dinheiro, do exibicionismo e do fetiche da mercadoria, o mesmo valendo para as mulheres, para a comunidade gay e, pasme, presidente, para os pobres, porque estes serão aceitos, serão até adoráveis, se alguns de seus traidores – ou simplesmente ingênuos vendidos – aparecerem na programação da rede globo como vencedores, como felizes e bem resolvidos, porque fizeram sucesso vendendo a pobreza como mercadoria, defendendo, como músicos, atores, escritores, que a pobreza não é crime, que a pobreza é cultural, é mercadoria, que a favela é bonita, que o favelado deve ter orgulho de si, como outrora tínhamos a política de afirmação dos afro-descendentes.
É, presidente Lula, chegamos, através da programação Rede Globo, no limite do cinismo e da barbárie, posto que este nosso absurdo mundo em que vivemos, este mesmo em que a vida na terra está no limite de extinguir-se, para que meia dúzia de humanos possam saquear-nos e roubar-nos, como se a privatizada verdade deles fosse a pública e coletiva verdade de todos nós.
Mudanças estruturais
É por isso, Lula, que venho aqui evidenciar o que todos nós já sabemos, que a rede globo, embora se diga cansada de ti, presidente, não nos cansa de dizer, de todas ilusionistas formas possíveis, com pirotécnicos truques de edição, que este é o mundo verdadeiro dos monopólios das novas tecnologias, da verdade parasitária dos fluxos financeiros em escala mundial, do roubo de todos os recursos naturais e sua concentração mercadológica nas mãos de umas poucas empresas ditas multinacionais, eternamente apoiadas pelo igualmente oligopólio privado dos meios de comunicação, também em escala mundial, assim como que igualmente amparados, todos os oligopólios do império de poucos, afinal, pelo monopólio das armas de destruição massiva, posto que, para garantir o mundo como ilha da fantasia global, para meia dúzia de ladrões, é preciso não apenas matar os insubordinados, como também – já que tudo deve ser motivo de lucro – ganhar dinheiro com isso.
Pode, Lula, made in Brasil, me chamar de quixotesco, de louco ou até de um desocupado professor vagabundo, por encontrar tempo para escrever quixotices, como as que escrevo agora, ou mesmo de querer aparecer, mas te atrevo a dizer que você não tem tido a coragem do Presidente Chávez, que não renovou a concessão da Globo deles lá, que teve visão para entender que não basta que a Record tenha a sua Globo News do jornalismo aberto, isto é, não basta concorrência privada, de iniciativa privada para iniciativa privada, logo de lucro para lucro, para garantir a democracia dos meios, porque, de lucro para lucro, Lula, as verdades menores de sua infância pobre, de sua ex-vida de operário, de todos os brasileiros que votaram em você, presidente, esperando mudanças estruturais, de lucro para lucro, presidente, essas verdade menores vão continuar marcadas como falsas, mentirosas ou simplesmente inexistentes.
Não traia nossa esperança
Por isso, presidente, rogo-te, renove, se for o caso, a concessão da rede Globo, deixa-a fazer o que quiser, em nome da liberdade de expressão dos ricos, que seja, mas não conceda à Globo, assim como aos demais canais abertos de televisão, o direito de se apossar, de seqüestrar e roubar os espectros, logo novos canais, possibilitados pela tecnologia das tevês digitais.
Rogo-te a coragem para conceder esses canais para os movimentos sociais, as instituições e as pessoas que acreditam que o capitalismo não é o fim dos tempos, que nem tudo tem que ser baseado na competição mercadológica, que outro mundo é possível: um mundo em que as riquezas simbólicas e materiais, coletivamente produzidas, sejam cooperativamente distribuídas.
Rogo-te coragem, presidente, para não deixar o seu medo, ou o sua vaidade de presidente, de pobre que mais não é, rogo-te para que não traia a nossa esperança, a única que te garante no poder, não tenha dúvida disso.
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Professor de Teoria da Literatura, Vitória, ES