O problema da concentração nos meios de comunicação, para mim, é algo que deve causar tanta preocupação quanto a concentração no setor bancário, como salientei em anterior artigo publicado neste Observatório [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=288IPB003]. Por isto, entendo oportuno retomá-lo. Rastreando, ainda, a jurisprudência a respeito da monopolização e da oligopolização neste campo, descobri poucos precedentes em que a interdição constitucional foi invocada como fundamento pelo Superior Tribunal de Justiça para negar a pretensão de operadora de TV em dissuadir a realização de licitação para que outro canal fosse ofertado na mesma localidade por ela atendida [Mandado de segurança 8821/DF. Relator: Min. Luiz Fux. DJU 16 ago 2004] e para afirmar a validade de cláusula editalícia que estabelecia pontuação negativa por quantidade de outorgas concedidas aos participantes da licitação de canais novos [Mandado de segurança – 5763/DF.Relator: min. Garcia Vieira. DJU 26 jun. 1999], pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região para arredar a possibilidade de, mediante medida cautelar, vir a concessionária a obter exclusividade no atendimento dos serviços de TV a cabo em determinada localidade [Agravo no agravo de instrumento – 199701000514290/MG. Relatora: desembargadora federal Assusete Magalhães. DJU 11 nov 1999 – seção II], pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região para indeferir o pedido de fechamento de TV Comunitária [Agravo de instrumento 200604000297722/RS. Relator: des. federal Carlos Thompson Flores Lenz. DJU 14 fev 2007 – seção II].
O Supremo Tribunal Federal ainda não tem posicionamento externado sobre este tema, o que me conduz a desenvolver algumas linhas sobre ele na esperança de que o debate prossiga, com a serenidade que requerem todos os assuntos sérios, sem que se lhe dê demasiada extensão que conduza a confusões que não permitiriam a sua individualização e, portanto, abririam a porta para o arbítrio, nem que se o restrinja a ponto de os meios de o enfrentar virem a ser frustrados mediante a manipulação de brechas conceituais.
Poder econômico
No momento, a estrutura apta a viabilizar o funcionamento da imprensa ainda é a sociedade empresária, para se utilizar a expressão constante do Código Civil de 2002. Claro que não se descartam as denominadas fontes alternativas, como a imprensa sindical ou a de grêmios estudantis, embora saibamos que seu alcance, em regra, é extremamente restrito,o que não ocorre com a estrutura empresarial – e, normalmente, temos em consideração, aqui,o tema da tese do professor Fábio Konder Comparato no início da década de 70, a macroempresa, cuja forma societária por excelência é a sociedade anônima (‘Aspectos jurídicos da macroempresa’. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970).
Efetivamente, não há como uma empresa de comunicação social que se pretenda apta a ingressar em um território mais amplo estruturar-se como uma micro, pequena ou média empresa. Somente a sociedade anônima, com o seu capital divido em ações, em que pouco importam as características pessoais dos que contribuam para o seu capital – diversamente do que ocorre em relação aos demais tipos societários – tem como expandir-se com eficácia – fato conhecido, pelo menos, desde a época das grandes companhias coloniais da época das grandes navegações.
Até porque é justamente em função da menor pujança no mercado que, por força do inciso IX do artigo 170 e do artigo 179 da Constituição brasileira, as micro, pequenas e médias empresas têm em seu prol a previsão de tratamento privilegiado, em cláusula que reconhece a condição que as desiguala em relação a concorrentes dotados de maior poder econômico, como observou Clóvis Sá Britto Pingret (‘O Estado como fomentador da iniciativa privada: o caso das microempresas’. In: Plures. Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional – estudos jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1995).
Expedientes de sobrevivência
E, em relação aos meios de comunicação, torna-se extremamente complexa a relação jurídica quando se fala em fomento público porque, afinal de contas, o que deles se espera é que fiscalizem, dentre outros poderes, o Poder Estatal. E, de logo, adianto: não há como confundir a presença da publicidade governamental – que, dentro dos limites postos no § 1º do artigo 37 da CF, é necessária para possibilitar à população conhecer o que se passa no âmbito da administração [Brasil. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.294/RS, relatada pelo min. Marco Aurélio de Farias Mello. DJU 25 maio 2001; idem. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.472/RS. Relator: min. Maurício Correa. DJU 3 maio 2002] – com a oferta de auxílio governamental, espécie do gênero intervenção sobre o domínio econômico a que o min. Eros Grau qualifica como ‘intervenção por indução’ (‘Elementos de Direito Econômico’. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981). E realmente as questões se colocam: quais os limites da função de fomento público a que se refere o § 1º do artigo 174 da CF em se tratando da atividade jornalística? Até que ponto não se poderia configurar o fomento público muito mais como um suborno do que, propriamente, como um meio de, legitimamente, estimular a proliferação de canais para a manifestação do pensamento?
Por um lado, reconheço a situação de fato, que é a do comprometimento do pluralismo em razão do altíssimo grau de concentração dos nossos meios de comunicação [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=294JDB007]. Não deixa de ser sintomático que os Diários Associados tenham desempenhado um papel de relevância na protelação, até 1962, da implementação de uma legislação antitruste – quem conhece as peripécias do Decreto-lei 7.666, de 1945, revogado com poucos meses de vigência, sabe do que estou falando. E é interessante, ainda em relação aos próprios Diários Associados, recordar o que aconteceu no início da década de 80, quando, com o auxílio de empregados da própria Rede Tupi – a primeira rede de televisão do país, como se sabe –, a Globo conseguiu a cassação da concessão da rival. Mas, por outro, não posso deixar de reconhecer o caráter empresarial com que é explorada a atividade de comunicação social, e que existem hipóteses em que a adoção de expedientes concentracionistas são uma imposição da própria sobrevivência da empresa.
Custos de transação
O desafio para a conformação do poder econômico privado à função social a que se refere o texto constitucional, no art. 5, XXIII, e no art. 170, III – que não está dirigido apenas aos bens imóveis, mas aos bens de produção como um todo –, neste campo é precisamente este: o de que não se exclua a possibilidade da formação de um ‘jornalismo cidadão’. Ou seja, de um jornalismo que permita uma participação efetiva da coletividade em seus destinos, tomando conhecimento do que realmente ocorre, e não do que se deseja que ela acredite que ocorre. Mas esmiuçar as características da mídia é importantíssimo para que não se examine, em relação a ela, a legislação antitruste com o mesmo enfoque dado a fusões de supermercados, p. ex. [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=285SAI003].
Com toda a certeza, a distinção entre o direito da empresa e o direito de toda a coletividade deve ser salientada e foi objeto de consideração em algumas obras que refiro no meu opúsculo, editado este ano pela Memória Jurídica, intitulado, justamente, Liberdade de informação, direito à informação verdadeira e poder econômico. O estabelecimento do ponto de equilíbrio dos interesses, aqui, é extremamente delicado.
Seria interessante verificar se seria aplicável ao setor midiático o conceito desenvolvido por Ronald Coase concernente aos custos de transação, que costumam ser maiores em um setor com alto grau de concentração do que num setor em que a concorrência esteja assegurada. Conceito que, por sinal, é muito trabalhado pela versão jurídica da Escola de Chicago, a Análise Econômica do Direito, capitaneada por Richard Posner, que, antes de ser nomeado juiz, integrou a Federal Trade Commission – órgão executor do Sherman Act, de 1890, e modelo em que se abeberou o Brasil para a criação do CADE em 1962, pela Lei 4.137, que vigorou até 1994, quando a Lei 8.884 passou a disciplinar toda a matéria antitruste.
Periferia da respeitabilidade
E mesmo Hayek, o defensor-mor da abstenção do Estado no âmbito econômico, e que foi expresso em entrevista concedida em 1981 no sentido de ser preferível uma ditadura que fosse fiel ao mercado livre (referia-se especificamente a Pinochet) a uma democracia intervencionista, admite a atuação coercitiva deste na preservação da concorrência (Direito, legislação e liberdade. Trad. Henry Maksoud. São Paulo: Instituto Liberal, 1985, v. 3). E Hayek entrava no hagiológio de Roberto Campos, dado que este prefacia encomiasticamente a tradução de O caminho da servidão, veiculada pela Biblioteca do Exército. Uma vez que se reconheça não ser fácil a criação de concorrentes da noite para o dia, de plano, vem a questão dos custos de transação.
Este tema conduz, necessariamente, a outro de extrema relevância, que é o da presença ou não de restrictive convenants, isto é, de acordos restritivos da concorrência, mercê dos quais vem a ser nulificada ou dificultada ao extremo qualquer possibilidade de ingresso de algum novo agente no mercado, e que, com efeito, foi objeto de exame pelo professor Venício de Lima no que tange aos efeitos das negociações entre o Grupo Abril S/A e a Telefônica sobre o mercado das comunicações [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=451IPB001].
Por outra banda, tendo em vista a possibilidade de a própria mídia poder servir para a manipulação das informações quanto ao mercado de outros bens e serviços – como se pode exemplificar com o mercado imobiliário, objeto das preocupações de um texto de Alberto Dines [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=452IMQ003], que se coloca não só no que tange aos preços dos terrenos propriamente ditos, como na caracterização de tais ou quais bairros como ‘bairros nobres’ ou não, como bairros onde se ‘mora bem’ ou ‘mora mal’, influenciando ou sendo influenciada pelas decisões dos agentes econômicos privados na construção de condomínios de luxo, subtraindo cada vez mais ao público o espaço urbano e empurrando grandes contingentes para a periferia, que se pode, eventualmente, tornar, também, a periferia da respeitabilidade.
Discussão incipiente
E ainda há gente que considera este tema da concentração um tabu, pelo medo de que isto possa dar força ao ‘comunismo internacional’. Creio até que este medo é um dos grandes responsáveis pela completa lacuna existente a respeito do tema na literatura jurídica nacional e por parte de profissionais da mídia, os quais, ou não gostariam de dar armas a quem estivesse no pólo ideológico oposto àquele em que se engajam ou teriam sérios problemas em obterem empregos. A um ponto tal que se passa a sustentar que: 1- apesar de a concorrência traduzir postulado caro ao sistema capitalista, é proibido, sob pena de petismo, debater a concentração nos meios de comunicação; 2 – a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial da Organização dos Estados Americanos – organização internacional da qual só não faz parte Cuba, em toda a América –, por haver manifestado tal preocupação, em 1985, como se vê em relatório da ONG Article 19 [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=451CID001], deve ser considerada um longo braço do petismo; 3 – apesar de o § 5º do artigo 220 da CF ser expresso no tema da concentração dos meios de comunicação, proibindo expressamente o monopólio e o oligopólio, tal dispositivo deve ser considerado uma aberração petista (e, com isto, cai-se, paradoxalmente, na tese cara ao sovietismo do valor relativo da Constituição, ao passo que, no pensamento liberal, a Constituição deve valer mesmo para quem não goste dela).
Há alguns temas, em relação à concentração das empresas de comunicação social – e que conduzem, necessariamente, ao debate da democratização da mídia –, que ficam ao largo: quando o ato de concentração – fusão ou incorporação – pode ser considerado, em relação a tais empresas, apto a lesar, efetivamente, não só a concorrência como o próprio pluralismo? Quando não ultrapassará ele a simples possibilidade de a empresa sobreviver no mercado e expandir-se?
É sempre importante ter presente que a concentração empresarial nem sempre se coloca no sentido de garantir a dominação de mercados e eliminar a concorrência, mas de reduzir os custos operacionais das empresas interessadas, garantindo-lhes maior eficiência etc. Não é por menos que, ao mesmo tempo em que se condena a concentração abusiva, a própria Lei das Sociedades Anônimas vigente, até que ponto se pode admitir a adoção da joint venture em se tratando de empresas de comunicação social, considerando a característica principal desta modalidade contratual, em face da própria finalidade a que se voltam?
Se o problema, em si mesmo, é antigo, a discussão dele é ainda incipiente, justamente pelo nível rebaixado com que se têm travado os debates políticos no Brasil, o que motivou que o problema da confusão do direito de crítica com o interesse em ofender fosse objeto de análise em outra ocasião [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454JDB003]. O professor Venício de Lima [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454IPB001] versou uma outra faceta do problema, levantado em caráter geral pelo profesor Gilson Caroni Filho [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454JDB004], enfrentando as deficiências concernentes às concessões no setor de radiodifusão. Infelizmente, houve manifestações, ali, totalmente divorciadas da proposta do texto, que se voltaram ao reducionismo político-partidário, como se aqui não estivesse em jogo, paradoxalmente, um dos valores centrais do capitalismo, qual seja, a concorrência entre os agentes econômicos, isto é, o debate sob o signo da excitação a que se referiu o professor Ivo Lucchesi [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=450JDB005].
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Advogado, Porto Alegre, RS