MERCADO EDITORIAL
Ian McEwan e nós, 1/12/06
‘Quando li a notícia de que havia uma suspeita de plágio – sem processo na
justiça – pairando sobre um livro do inglês Ian McEwan, e que este livro era
nada menos que o magnífico ‘Reparação’ (Companhia das Letras, 2002, tradução de
Paulo Henriques Britto), minha primeira reação foi decidir que não trataria do
assunto aqui. Factóide, pensei, ao saber que a acusação se baseava em
semelhanças entre apenas uma das quatro partes do romance e um livro de memórias
lançado em 1977. Mais especificamente, entre algumas cenas passadas num hospital
de Londres durante a Segunda Guerra, onde Briony, a protagonista, trabalha como
enfermeira, e um livro chamado No time for romance, de Lucilla Andrews, que
morreu mês passado. Este livro – o detalhe é fundamental – foi citado por McEwan
como uma importante fonte de pesquisa nos agradecimentos que constam da edição
inglesa de ‘Reparação’ (limados da brasileira). Tudo isso é dito no artigo em
que o escritor se explicou, a meu ver de forma convincente, no ‘Guardian’ da
última segunda-feira.
Caso encerrado, então? Acho que não. O que me faz entrar finalmente no
assunto não é o debate sobre a legitimidade dos ‘empréstimos’ literários e o que
os distingue do plágio, mas algo mais subjetivo. Estaria eu sucumbindo a uma
espécie de sacralização do livro de McEwan? Se não, como explicar que, antes
mesmo de me inteirar dos detalhes da polêmica, eu já estivesse inclinado a lhe
dar razão? E se de fato atribuía à obra sem perceber uma aura mágica qualquer,
como se o romancista tivesse recebido o manuscrito em tabletes de pedra no alto
do Monte Sinai, não estaria com essa postura traindo profundamente um livro cuja
genialidade repousa na exposição daquilo que toda narrativa tem de artifício, de
objeto construído, e portanto de logro – ainda que as intenções do narrador
sejam as melhores?
‘Reparação’, lançado na Inglaterra em 2001, é a meu ver um dos grandes livros
deste início de milênio. Consigo imaginá-lo sendo lido dentro de cem anos, isto
é, caso ainda se leia alguma coisa daqui a cem anos. McEwan tem a capacidade
rara de trabalhar com a forma tradicional do romance, de corte, digamos,
oitocentista, e atualizá-la de modo sutil mas radical. Essa atualização pode se
dar pela temática, quando a atenção quase maníaca do autor a detalhes de
composição na horizontal e na vertical – na ambientação e na psicologia dos
personagens – é posta a serviço de histórias agudamente atuais, como em ‘A
criança no tempo’ e ‘Sábado’. Mas também pode, de forma mais fecunda, estar no
próprio núcleo do livro, num pacto novo entre o que se conta, como se conta e
por que se conta, numa desnaturalização da narrativa que não deixa dúvida: eis
uma literatura que não passou pelo século XX fingindo ignorar seus bombardeios
estéticos, embora também não se tenha deixado estilhaçar por eles. É o caso de
‘Reparação’.
Por questão de gosto e convicção, a literatura que mais me interessa nas
últimas décadas é aquela que incorpora em alguma medida a auto-reflexão. Creio
que os infinitos boicotes da narrativa promovidos no século passado nos deixaram
esta herança inescapável: como não questionar o narrador, qualquer narrador,
sobre seus motivos, suas manipulações, o que ele está escondendo? Isso pode
incluir ou não citações, intertextualidade, paródia – tudo o que uma caricatura
crítica apressada acabou jogando na gaveta injuriosa do ‘pós-moderno’. O certo é
que exclui a ingenuidade. Uma literatura que, a esta altura do furdunço, não põe
em questão em algum grau a própria idéia de literatura, nem se assume jamais
como artifício, arrisca-se a ser apenas arte naïf.
A ficção que expõe despudoradamente as engrenagens da história sem deixar de,
ao mesmo tempo, contar uma boa história não tem presença forte no Brasil – um
Sérgio Sant’Anna aqui e um Luis Fernando Verissimo ali estão mais para exceções
valorosas. O que é curioso, se considerarmos que Machado de Assis foi um dos
maiores estilistas da auto-ironia do narrador em todos os tempos. Aí começa
minha história pessoal com McEwan.
Acontece que, em meu livro ‘O homem que matou o escritor’ (Objetiva, 2000),
ataco este que considero o mais instigante desafio da literatura em nossos dias:
nos cinco contos do livro, cinco formas diferentes de fazer uma história se
dobrar sobre si mesma sem que a exposição do ‘truque’ leve o leitor a se
desinteressar do que é narrado – pelo contrário. Isso significa driblar um risco
que sempre ronda qualquer texto consciente de ser texto: virar um joguinho
intelectual gratuito. É absolutamente indispensável que a dobra, o momento
vertiginoso em que a linguagem se vê no espelho, tenha relevância dramática.
‘O homem que matou o escritor’ tem – ou assim eu acreditava até ler
‘Reparação’. O salto reflexivo do romance de Ian McEwan, que não vou entregar
aqui para não estragar o prazer de futuros leitores, bate o recorde mundial de
relevância dramática com uma folga tão absurda que, de certa forma, me curou da
obsessão com a metalinguagem. Em meu romance recém-lançado, ‘As sementes de
Flowerville’, a dobra textual continua lá, mas já não ocupa o centro do palco.
Não se trata de desistência, mas de um saudável recuo estratégico: o
reconhecimento de que, depois de ‘Reparação’, todos precisamos comer mais angu.
Diante de tudo isso, confesso que não foi agradável ler no ‘Times’, na mesma
segunda-feira em que McEwan publicava sua defesa num jornal concorrente, uma
listinha de trechos parecidos de ‘Reparação’ e No time for romance. São trechos
curtos, mas a semelhança é tão grande que chega muito perto da cópia pura e
simples. Plágio não é, pois trata-se de detalhes ínfimos dentro de uma obra
vasta. Mas não dá para negar que ‘empréstimos’ tão literais são meio incômodos,
especialmente num livraço como ‘Reparação’. Era mesmo necessário usar o Ctrl +
c/Ctrl + v?
O lado bom do caso é nos lembrar mais uma vez que a perfeição não existe –
muito menos na literatura. De alguma forma, o jogo fica mais aberto depois
disso. Nada que nos desobrigue de encarar aquele angu.’
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