Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Abrindo terreno para a política-caveira

Era um risco e vai se tornando realidade. A tematização, pelo cinema e a televisão, do combate ao crime encastelado nas favelas, deslocando-o de seu cenário habitual – e inócuo – do jornalismo, seja ele o policial ou o político, põe o debate sobre a segurança pública no país em novos termos. Novos e preocupantes.


Agora, a cidadania já não forma opinião baseada somente no noticiário criminal, em geral burocrático e estatístico, da imprensa ‘séria’, nem na histeria irracional e oportunista da imprensa ‘sensacionalista’ Também não se alimenta, apenas, das doutas considerações dos sociólogos, psicólogos, juristas e afins, que pululam nas páginas de opinião dos jornais e revistas, e nos comentários do rádio e do telejornalismo.


Agora há também, para alicerçar a opinião pública, um punhado de personagens ficcionais, calcados em tipos reais, carregados de verossimilhança e plausibilidade, mais ‘verdadeiros’ do que parecem os seres descritos na crônica policial, mais complexos e integrais na mescla de razão e emoção com que percebem o mundo (como os demais humanos). Heróis ou vilões, aí estão eles influenciando o cidadão e suas idéias sobre o combate ao crime e à violência.


Soluções de força


O fenômeno Tropa de Elite já foi devidamente dissecado, por incontáveis analistas, no potencial regressivo que demonstra, de despertar o sadismo das platéias e reforçar em boa parte delas a crença em soluções de força para a tragédia social brasileira. Certamente era o oposto que seus realizadores desejavam, mas não são mais fatos isolados, numa sessão de cinema ou outra, as manifestações de júbilo e gozo do público com as atitudes do Capitão Nascimento (Wagner Moura), do aprendiz André Matias (André Ramiro) e demais torturadores-fuzileiros que estrelam o filme. Jovens deixam os cinemas cantando os hinos de guerra desses policiais que se pretendem soldados, e correm a comprar objetos e roupas que ostentam seu signo revelador, a caveira. Entregam-se ao culto macabro dos justiceiros fardados, piamente convictos de que é à bala que se enfrenta a criminalidade.


Também retratados no filme, os debates universitários sobre crime e violência, as ações sociais das ONGs e as manifestações de rua pela paz são claramente desqualificados como ingênuos, alienados e mesmo hipócritas, posto que seria a classe média a responsável última pelo crime, na medida em que consome drogas e sustenta o aparato econômico-militar em torno delas, seja para o seu comércio, seja para a repressão. Não há qualquer razão, portanto, para a identificação das platéias com os personagens que encarnam esse lado do problema. Não é de estranhar que o público divirta-se com cenas de extrema brutalidade contra eles, como na surra aplicada pelo aspirante Matias no universitário que distribui maconha na faculdade, ou no diretor de ONG queimado vivo por traficantes.


O poder público, habitualmente inepto no enfrentamento da criminalidade, percebe a tendência regressiva e vai na onda, usando o fuzil em vez da cabeça. Afinal, são eleitores os que regozijam-se com a violência e, como se sabe, é mau negócio contrariá-los, mesmo longe das eleições. Daí que o governo do Rio de Janeiro não apenas autoriza operações bélicas totalmente irresponsáveis nas favelas da Rocinha, Dona Marta e Coréia, como se mostra indiferente à sorte das vítimas ‘civis’. Uma criança de 4 anos ser trespassada por um tiro de fuzil, dentro de sua casa, não é mais do que um ‘dano colateral’ no nobre combate armado à bandidagem. Qualquer vivente sabe com que facilidade as balas atravessam as precárias paredes das moradias populares, mas o risco não é suficiente para inibir a insana estratégia de provocar tiroteios em favelas.


Tolerância zero e Duas Caras


Culpar Tropa de Elite, exclusivamente, pelo recrudescimento da ‘tolerância zero’ no enfrentamento da criminalidade, seria leviano e equivocado. A opinião pública se forja por um conjunto de fatores e mesmo o espetacular sucesso do filme, já um fenômeno de massas, não explica tudo. Convém jogar também no caldeirão de referências oferecido ao juízo da cidadania um outro produto cultural, de influência indiscutível: a novela das nove da TV Globo. O que temos nela de preocupante, a estimular a percepção pública crescente de que o crime se resolve por meios extra-legais?


Em Duas Caras, novela de Aguinaldo Silva dirigida por Wolf Maia, desponta um curioso personagem de nome Juvenal Antena, interpretado por Antonio Fagundes. Ex-segurança de uma construtora que vai à falência e deixa todos os empregados sem receber, torna-se líder e ‘protetor’ dos peões, invadindo um terreno da empresa para formar nele uma nova comunidade, a favela da Portelinha. Os anos se passam, a favela torna-se um bairro gigantesco e o poder de Juvenal apenas se fortalece, fazendo dele o ditador de todas as leis e todas as regras, que incluem deliberar sobre o comportamento privado dos moradores e mesmo suas relações afetivas.


Juvenal é um ‘chefe de morro’, o traficante rico e armado até os dentes, que distribui benesses e terror com igual desenvoltura na comunidade? Não, abomina traficantes e criminosos em geral. Então ele é um chefe de milícia, um policial afastado ou em atividade que reúne um grupo armado, expulsa os bandidos da área e ‘oferece’ segurança aos moradores, em troca de pagamento ‘espontâneo’ pelo serviço prestado?


Também não, ele abomina armas e não cobra nada de ninguém.


Juvenal é um líder comunitário bastante autoritário, com práticas de poder ambíguas, que mesclam populismo sedutor e uma violência dissimulada, que o telespectador não vê, mas intui, pela atitude sempre impositiva e ameaçadora do personagem. A novela nos mostra que, graças à sua ação heterodoxa, a Portelinha transformou-se em exemplo de comunidade ordeira, livre do crime e da violência, a ponto de suscitar o interesse de jovens documentaristas – iguais aos jovens universitários de Tropa de Elite, também bem-intencionados, ingênuos e incoerentes, embora não lhes seja possível acender nenhum baseado no horário nobre da Globo, enquanto conjeturam sobre as suas responsabilidades sociais.


O Estado não está ausente da Portelinha. Não se vê posto de saúde, carro de polícia ou outros indicativos da presença estatal, mas há em cena o deputado estadual Narciso Tellerman (Marcos Winter), aliado de Juvenal, obviamente eleito graças aos votos da comunidade popular. O Estado se faz presente na novela, portanto, pelo que oferece de pior à população, o conluio interesseiro de políticos com líderes comunitários controladores de currais eleitorais. Tellerman admite os métodos ‘pouco convencionais’ do cacique favelado, mas nem por isso deixa de atuar com ele, nem lhe passa pela cabeça que comunidades efetivamente livres do crime não deveriam carecer de protetores, de ‘pais de todos’, para exercer a sua liberdade.


Se o Estado é reduzido à mera politicagem, as ONGs também apanham em Duas Caras. Numa cena emblemática, socialites procuram Juvenal Antena para oferecer a doação de agasalhos aos pobres favelados. Mas não o fazem por compaixão e sim porque concorrem a uma viagem a Paris, paga por organização internacional, onde mostrarão o seu case de ação social. É esse o grau de compromisso e seriedade que Aguinaldo Silva enxerga em ONGs ‘picaretas’, as quais pretende espicaçar outras vezes ao longo da novela.


Caldo de cultura para o autoritarismo


E é assim que vai engrossando o caldo de cultura para a adoção de políticas autoritárias de segurança pública. Obras influentes do cinema e da televisão glamurizando policiais e líderes comunitários ‘durões’, ridicularizando organizações que procuram atuar num meio social deteriorado e carente, deixando de enfatizar que o Estado deve se fazer presente com políticas de promoção humana, não de carnificinas.


Produtores, autores e diretores protestam inocência e dizem que tratam apenas de ‘mostrar a realidade como ela é’. Mas a realidade é que, a cada dia, o terreno está mais livre para a ética do chumbo quente. Terreno limpo para ‘deitar corpo no chão’.

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Jornalista