Ninguém sabe como aconteceu o estranho fenômeno geopolítico que separou o Brasil da Europa num fosso muito mais alargado do que oceano Atlântico. Culturalmente, nossos corações e mentes foram se voltando para a esquerda, não para as fronteiras mais próximas, mas para ‘ele’, os Estados Unidos, num salto histórico forçado pela pressão explícita ou subliminar do país que roubou, do resto, a condição de ‘americano’. Ninguém sabe, mas o fato é que a imprensa reflete, aceita e reproduz o deslocamento, e expressa, em suas parcas páginas ou editorias de Mundo ou Internacional, um estranho retrato do planeta, onde Europa mal cabe em pequenos e irrelevantes espaços.
Culpa de quem? Também ninguém sabe. Do francês, que deixou de ser matéria obrigatória nas escolas? Do cinema norte-americano do pós-segunda guerra, que adentrou por nossas telas e pelas nossas cabeças? E como jornais são monitorados e fabricados por cabeças, eles são a mais sensível prova do que se passa na cabeça do leitor? Se o jornal só dá ao leitor o que ele pede ou lê, se o jornal determina o que vai ser lido e aprendido ou discutido, se é a ponta de um lado ou do outro que faz o miolo da imprensa, isto é um enigma também nunca muito bem explicado.
O fato é que a União Européia, ou o braço estabelecido em Brasília, percebeu a indiferença, incomodou-se no papel de preterido, quis saber o que se passava no útero dos jornais brasileiros e organizou um seminário em conjunto com a embaixada de Portugal. ‘A Imagem da Europa na Imprensa do Brasil’ reuniu na semana passada, no Consulado de Portugal, em São Paulo, os principais órgãos (rádio,TV, revistas, jornais, sites).
‘Confesso que me espanto quando vejo os jornais brasileiros dando páginas sobre a Assembléia do Partido Comunista chinês e nenhuma uma linha sobre a importantíssima cimeira de Lisboa que redefiniu a política européia’, disse o estupefato embaixador da UE no Brasil, João Pacheco. A cimeira muda o papel do Brasil naquele continente. ‘Por que os jornais enviam jornalistas à China e nenhum a Lisboa para a cimeira há duas semanas?’, perguntou.
Sem correspondentes em Bruxelas
O Brasil é o único país que não tem correspondente em Bruxelas, diz o representante da União Européia, avisando: ‘a Europa existe muito além de Paris e Londres’. Carlos Fino, conselheiro de imprensa da embaixada portuguesa e ex-correspondente da rede RTP em Moscou, foi o moderador e questionador também da ausência da cimeira de Lisboa na imprensa brasileira. Esta, ninguém entendeu, embora o editor de uma rede de TV, confirmando a indiferença que motivou o Seminário, se espantasse com a cobrança, ‘mas por que diabo a reunião sobre tratado europeu tem de estar nos jornais do Brasil?’
Os jornalistas, editores, representantes da linha de frente da imprensa brasileira não podem fazer milagres com o magro espaço concedido ao mundinho que corre fora das entranhas nativas e das maledicências de Brasília – essas sim, têm prioridade. Todos reafirmaram a confiabilidade da Europa, mas as TVs se disseram reféns do monopólio de imagens; as rádios e os jornais, reféns do espaço que sobra dos anúncios (‘jornalista é o que escreve nas costas dos anúncios’, assumiu uma delas).
O fenômeno Caras invadindo as redações do mundo contaminou o Brasil, a mania das pesquisas (sem se entender muitas vezes quem ou o que pesquisou) faz a imprensa obedecer ao suposto gosto por trivialidades e à cultura das celebridades quando sugere que só 30% do público se detém na Internacional.
Biscoitos para as massas
Quando ninguém acha a culpa, por que não colocar a culpa na Europa, que não se dá a conhecer, como dizem alguns? Agora, dizem, a Europa tem de disputar o espaço conquistado pela Argentina, Venezuela, Bolívia, Equador (?), e com os BRIC, os emergentes Brasil, Rússia, Índia e China. A China está em reforma há 30 anos, lembrou alguém, e só há cinco anos a mídia se lembrou dela. Ainda bem. Mas este foi o nosso mais espetacular salto sobre o continente europeu. A África continua preterida em todos os saltos.
A Europa precisa levar aos jornais assuntos que dizem respeito ao dia-a-dia e ter impacto na vida das pessoas, como tráfico de mulheres, de drogas, invasão de fronteiras—é a opinião de alguns. Biscoitos para a massa. Outros acham que para a Europa ter o direito de virar assunto tem de ser hard news.
Enquanto isso acontece o tal biscoito fino cultural fica de lado, e a reflexão, a discussão, a inserção vai se afastando na mesma proporção em que o euro se distancia (para cima) do real. E quem quiser ter uma visão completa do mundo em que vive, ora, assine, em euros ou dólar, a boa imprensa estrangeira, porque esta trata de tudo. Menos do Brasil, mas isso nós temos de sobra.