Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um homem e suas contradições

A fórmula instantânea do nescafé não se aplica às biografias. Na velha União Soviética, os humores de Josef Stalin alteravam verbetes e enciclopédias da noite para o dia. Caíam estátuas e erigiam-se reputações com a mesma leviandade que, entre nós, usa-se para dar nomes às ruas. O voluntarismo pode funcionar em política, não serve para a historiografia.

A morte de Leonel Brizola não significa o fim da era Vargas nem o encerramento do século 20 como algumas cassandras apregoaram nestes dias. Periodizações históricas aos tapas, só favorecem os incapazes para lidar com o passado. O varguismo tem inúmeras vertentes, inclusive a totalitária (que a exibição de Olga certamente irá relembrar). Mudanças de séculos não são arbitrárias – ninguém proclamou em 1918, quando acabou a Primeira Guerra, que finalmente começava o século 20.

Brizola foi um feixe de contradições, é isto que o torna fascinante, sempre maior do que os moldes convencionais. Em primeiro lugar, porque há dois Brizola, o gaúcho e o carioca. Eleito prefeito de Porto Alegre com apenas 33 anos, mudou a cara da cidade de forma indelével. O ‘Engenheiro’ não era título acadêmico ou alcunha para um tocador de obras, mas a caracterização de um governante empurrado por um enorme apetite para fazer – aterros, escolas populares, saneamento nas zonas pobres. O governador seguiu na mesma linha, associando o discurso popular ao empenho em criar novas realidades (como as ‘estradas da produção’).

No Rio é que aflorou plenamente o seu lado populista: os CIEPS não conseguiram materializar uma revolução no ensino público, o Sambódromo foi fruto do pacto com os chefões do samba e da contravenção, a Linha Vermelha seria impossível sem a cumplicidade de Collor de Mello isolado em Brasília.

Ego insaciável

O ferrenho defensor do presidencialismo em 1961-62 foi, nos anos 1940, um deputado estadual parlamentarista até a medula. O inflamado anti-americanista em 1977 aceitou o salvo-conduto oferecido pelo governo americano e exilou-se em Nova York. O revolucionário que em 1964 pretendia incendiar o país com os ‘Grupos dos 11’ de origem fidelista, na década seguinte estava perfeitamente à vontade no seio da social-democracia européia.

O intransigente que em 1966 rompeu com o cunhado Jango porque este aceitou formar a Frente Ampla com Juscelino Kubitschek e o odiado Carlos Lacerda, em 1978-79 deixou-se seduzir pela estratégia do general Golbery e aceitou o enfraquecimento do partido da resistência ao regime militar, o então MDB, para criar o seu próprio feudo. Na mesma ocasião entregou de mão beijada o adorado PTB criado por Vargas aos oportunistas que lá estão até hoje.

O carbonário que pedia uma reforma agrária na marra converteu-se em próspero latifundiário no Uruguai. O inimigo número 1 da ditadura militar em 1982 defendeu a ampliação do mandato do último ditador, João Figueiredo, para permitir a própria candidatura à presidência da República quando terminasse o mandato como governador.

Aquele que inflamava as massas também sabia mostrar que ‘mingau se come pelas bordas’, o hábil negociador com freqüência recorria aos sopapos, o que levou Carlos Lacerda (que acabara de receber um ponta-pé) a designá-lo como ‘espécie de centauro, metade cavalo, a outra também’.

Um caudilho? Talvez, mas não o último. Certamente um sedutor: Miro Teixeira, adversário nas eleições para o governo do Rio em 1982, depois de batido, converteu-se em fiel seguidor a ponto de abdicar de um ministério no governo Lula para não deixar o partido. Criador de líderes, César Maia foi um deles, rompeu com todos – queria obediências cegas, não suportava discordâncias.

Ideológico e pragmático, companheiro de Lula e logo depois, rival. Detestava os tucanos mas acertou-se com eles para ampliar a base oposicionista. Sua lealdade regulava-se por parâmetros estabelecidos por um ego insaciável. Seus pesados comentários sobre os hábitos do presidente Lula deram o único suporte para a matéria do New York Times que tanta celeuma provocou. Um democrata que, felizmente para nós, jamais chegou à Presidência.

Um homem e suas contradições. Uma época e suas loucuras. Um país e seus gigantes.