A mídia americana é cheia de surpresas e momentos surreais. Um deles foi protagonizado pelo crítico de mídia do Washington Post, Howard Kurtz, e o editor-executivo do jornal, Leonard Downie Jr., no domingo (20/11). Diante de milhares de telespectadores, o repórter interrogou seu próprio chefe. O assunto? Bob Woodward, é claro.
Antes que alguém pense que Kurtz perdeu a cabeça e resolveu perder o emprego, explica-se: além de trabalhar no Post, ele é também funcionário da CNN, onde apresenta o programa de debates Reliable Sources. Seu chefe no jornal foi seu convidado na TV. O debate contou com outros dois convidados, um dos quais atacou Woodward. O repórter-estrela, por sinal, foi convidado, mas preferiu ir ao programa de Larry King, na mesma emissora.
Segundo informações de Katharine K. Seelye [The New York Times, 21/11/05], Kurtz fez duras perguntas a Downie Jr. por pelo menos oito minutos. Os dois então discutiram se Woodward ‘joga com regras diferentes’ dos outros funcionários da redação, como criticou a ombudsman do jornal, Deborah Howell, em sua coluna de domingo.
Múltiplas funções
Mais surreal do que o debate é o fato de o próprio Kurtz ter uma agenda tão cheia quanto a de Woodward. A – no mínimo estranha – atitude do repórter que se sagrou no caso Watergate de esconder seu envolvimento no polêmico caso Valerie Plame foi analisada por críticos como um reflexo da liberdade e prestígio de que Woodward goza no Post. Além das reportagens no jornal, ele ainda é escritor, comentarista de TV e palestrante.
Já Kurtz, além de fazer reportagens e ter uma coluna semanal de crítica de mídia no Post, escreve diariamente no blog do jornal, participa toda segunda-feira de um bate-papo online com leitores, apresenta um programa na CNN, aparece como comentarista de mídia em programas de TV e rádio, já escreveu quatro livros e ainda é pai de uma criança de um ano de idade. Seus críticos – além de provavelmente se perguntarem como uma só pessoa faz tanta coisa – afirmam que há claros conflitos de interesse na rotina de Kurtz.
O jornalista não aceita a acusação e diz que a prova de sua independência é evidente em seu trabalho. ‘O maior conflito que enfrento é escrever sobre o Post, que faço periodicamente e, acredito, agressivamente. Eu não acho que você possa encontrar um escritor de mídia neste país que tenha levantado tantas vezes questões tão difíceis sobre sua própria organização’, defende-se.
Contratos com outras organizações de mídia não violam a política do Post. O diário tem, de fato, regras bastante liberais quanto a trabalhos extracurriculares feitos por seus repórteres e editores. Downie Jr., também bastante criticado na semana passada por causa da revelação de Woodward, afirmou recentemente, em um bate-papo online, acreditar que ‘é valoroso deixar que nosso melhor jornalismo chegue ao maior número de pessoas possível através de nosso jornal, deste sítio, da televisão, rádio e por meio de livros’.