Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Os novos impérios e suas vítimas

Acompanho as peripécias chinesas no Tibete há décadas. No princípio da década de 1990, li a graciosa autobiografia do Dalai Lama. Confesso que fiquei fascinado pela prosa do monge, bem como pela cultura daquele país tão distante geográfica e culturalmente do Brasil.

Quando estourou na mídia a disputa em torno da entronização do Panchem-Lama, acompanhei as notícias pelos jornalões, pois a internet ainda era ficção científica para os brasileiros. Só para refrescar a memória dos que não lembram, recontarei o episódio.

No budismo tibetano, o Panchem-Lama é quase tão importante quanto o próprio Dalai-Lama. Os budistas do Tibete acreditam que o Panchem-Lama também é um ser iluminado que sempre reencarna para cuidar do bem-estar espiritual dos tibetanos.

Após a morte do antigo Panchem-Lama, os monges identificaram o menino Gedhun Choekyi Nyima como sendo a reencarnação dele. O Tibete já estava sob domínio chinês e, para tentar evitar uma comoção política no país e o indesejado reconhecimento do governo tibetano no exílio, os chineses resolveram entronizar como Panchem-Lama o garoto chamado Gyaincain Norbu. Aquele que seria o verdadeiro reencarnado foi preso.

Na época, não pude deixar de notar uma contradição. Os comunistas chineses se dizem ateus. Mesmo assim consideram-se autoridades budistas em matéria de reencarnação.

Histórias horripilantes

Quando os monges tibetanos estiveram na cidade de São Paulo, assisti à apresentação deles. A preleção do lama francês que os acompanhava, sobre os tormentos impostos ao povo tibetano, me causou repugnância. Tanto que a primeira coisa que fiz quando comecei a usar a internet foi me vincular a um website norte-americano que faz campanha pela desocupação daquele país.

Alguns meses depois passei a receber diariamente centenas de spams do referido website. Como ainda era ingênuo em matéria de internet, enviei uma mensagem aos organizadores do mesmo pedindo que retirassem meu e-mail de sua lista de mensagens e finalizei a mensagem de maneira irônica desejando prosperidade à grande China.

Nos dias que se seguiram, aprendi uma valiosa lição sobre cibercultura. Após ter respondido ao website que me mandava os spams, passei a receber dezenas de mensagens diárias oriundas de vários países (EUA, Canadá, França, Dinamarca, Inglaterra etc.).

Os autores das novas mensagens eram tibetanos e simpatizantes da libertação do Tibete Muitos explicavam que hackers chineses haviam invadido o servidor do website e estavam administrando a conta de e-mail do mesmo usando-a para enviar milhares de spam para os donos dos e-mails cadastrados. Alguns dos tibetanos contavam histórias horripilantes sobre o que havia ocorrido com seus parentes no Tibete e me cobravam por ter desejado prosperidade á China.

Os vários imperialismos

Pedi desculpas às pessoas que se sentiram ofendidas e passei a tomar mais cuidado. Afinal, queria atingir o autor dos spams, em imaginar que o website havia sido violado. E mais, sem querer ofendi centenas de pessoas para as quais o hacker chinês reenviou minha mensagem.

A invasão do Tibete é lamentável. Em tudo semelhante à invasão do Iraque. Os dois episódios são demonstrações claras de um neo-imperialismo extrativista.

Segundo a estratégia empregada,o imperialismo pode ser classificado como:

** tradicional: ocupação militar garantida pela supremacia tecnológica, separação racial ou cultural entre dominantes e dominados com a preservação de uma elite local que permite ou facilita o controle político da população (Inglaterra na Índia; EUA no Iraque);

** genocida: ocupação territorial militar seguida do extermínio da população local para o estabelecimento de colônias (Alemanha nazista no leste europeu; Israel nas áreas palestinas – as autoridades israelenses já falam em praticar um holocausto palestino);

** sino/russo: ocupação militar com brutais e massivos deslocamentos populacionais de maneira a garantir supremacia étnica ou cultural no novo espaço (URSS nos satélites da Rússia, China no Tibete).

** lusitano: ocupação militar, miscigenação, imposição da língua e da religião, uso da violência contra os grupos hostis, coação contra os indiferentes e cooptação em relação aos simpatizantes com a preservação de alguns hábitos dos povos conquistados (ex; Brasil colonial).

Apesar das diferenças aparentes, as ocupações do Iraque e do Tibet são empreendimentos claramente imperiais.

Dois pesos…

Muito embora prefiram o uso da estratégia tradicional, os norte-americanos foram ao Iraque por causa de sua riqueza mineral. Paul Wolfowitz, secretário-adjunto de Defesa no primeiro governo de George W. Bush, chegou a admitir publicamente que os norte-americanos invadiram o Iraque por causa do mar de petróleo que existe sob o país.

Os pretextos para a invasão norte-americana do Iraque foram dois: as armas de destruição em massa (que não existiam); e a necessidade de libertar o povo daquele país do regime de Saddam Husseim (um ex-aliado na época da contenção da revolução islâmica no Irã).

Os chineses invadiram o Tibete por causa do urânio e de outros minerais que existem nas montanhas daquele país. A China também alegou motivos humanitários para ocupar o vizinho (desde a ocupação, há cinqüenta anos, a população chinesa no Tibete aumentou a tal ponto que já supera a tibetana). O exército popular comunista teria como missão salvar os pobres tibetanos do atraso e da pobreza impostos pela dominação medieval do regime lamaísta.

Como vimos, os dois impérios (EUA e China) usaram a força para obter o controle do que desejavam (petróleo e urânio) e justificaram suas ações com discursos humanitários. No fim, a culpa das invasões do Tibete e do Iraque foi dos próprios iraquianos e tibetanos. Se eles não apoiassem os monges ou os membros do Ba’ath, certamente seus países não seriam invadidos. Mas agora, que os chineses e norte-americanos já gastaram tanto para ‘democratizar’ o Iraque e o Tibete (democratizar, neste caso, é um sinônimo para ocupar e explorar as reservas minerais), as populações locais não têm o direito de se opor às ocupações.

Os empreendimentos imperiais dos EUA e da China obrigam a mídia ocidental a duplipensar. A reação das populações locais não é encarada da mesma forma. A violência dos iraquianos é sempre deplorável (fruto de sua tendência natural ou religiosa ao terrorismo). As lamentáveis cenas de violência produzidas pelos tibetanos foram consideradas perfeitamente compreensíveis (sua indignação contra o agressor externo é justa).

No meu dicionário, ocupação é sempre ocupação; resistência à ocupação também é resistência à ocupação. Violência também é sempre violência. Como defensor da não violência, o Dalai-Lama tinha toda razão ao desautorizar as condutas dos seus próprios conterrâneos. Fico me perguntando se a mídia ainda aprenderá alguma coisa com o líder tibetano…

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Advogado, Osasco, SP