O boato vem circulando há algum tempo e já saiu até em algumas colunas: as Organizações Globo estariam tentando comprar O Estado de S.Paulo. Se é verdade ou mentira, não faz diferença: a simples divulgação de um boato desse tipo, de uma operação comercial que levaria um grupo jornalístico dominante no Rio a se tornar um dos mais importantes de São Paulo, onde já tem presença, sem que se possa dizer que a operação é legalmente impossível, mostra que as leis que protegem o direito à informação são inadequadas e falhas.
Nada contra as Organizações Globo, mas contra a possibilidade de se cogitar de uma operação desse tipo, que geraria um grupo de comunicações com poder incontrastável e capacidade para esmagar a concorrência. Já se comentou, nesta coluna, a falta de leis que proíbam a propriedade cruzada dos meios de comunicação – a possibilidade de um mesmo grupo econômico possuir, em determinada região, jornal, TV e rádio. A propriedade cruzada é, por definição, anticoncorrencial. E, no próprio caso das Organizações Globo, a força da TV (somada a um jornal muito bem feito e a erros empresariais do concorrente) contribuiu poderosamente para que o tradicionalíssimo Jornal do Brasil mergulhasse na crise.
E daí? Pode-se argumentar que, num regime capitalista, os mais competentes ganham mercado, e os menos competentes são excluídos. Só que isso não é verdade: no mundo inteiro há leis antitruste, de defesa da concorrência. E, no caso da comunicação, não se está lidando apenas com uma mercadoria: exige-se a variedade de opiniões e de enfoques para que o direito à informação seja mantido.
Em Roma, um dos motivos do assassínio de César foi o temor de que, popularíssimo, ele pudesse destruir a República. Em Atenas, berço da democracia, havia um mecanismo muito interessante para evitar que a popularidade em excesso levasse alguém a atentar contra a liberdade: fazia-se uma votação e os cidadãos, numa casca de ostra, escreviam o nome da pessoa que deveria ficar dez anos no exílio (por causa da ostra, surgiu a palavra ‘ostracismo’). Gente ruim era exilada. Mas gente boa também poderia ser perigosa, pelo excesso de poder que poderia acumular, e ia igualmente para o ostracismo.
São exemplos um tanto exagerados: ninguém quer exilar ninguém. Ao contrário: o que se quer é exatamente o oposto: manter os meios de comunicação em seu próprio território, e de preferência sem aliar jornais, revistas, rádio, TV e internet.
A exceção
Aliás, há no Brasil alguns órgãos de defesa da concorrência, como a Secretaria Nacional de Direito Econômico (SNDE) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Em geral, funcionam – mas com uma exceção notável: o setor de cigarros é dominado por uma única empresa, que tem pouco mais de 75% da área. Quando a Colgate comprou a Anakol, teve de retirar a marca Kolynos do mercado, para evitar concentração. A Nestlé está na Justiça, pois os órgãos de defesa econômica vetam a compra da Garoto, que lhe daria mais de 50% do mercado. Mas em cigarro, pode. E por que a imprensa chia pouco sobre o quase monopólio? Talvez uma análise do patrocínio institucional de portais destinados a jornalistas dê uma pista dos motivos de tamanha tranqüilidade.
Fofoca telefônica
A notícia de que a Polícia Rodoviária Federal é a feliz proprietária de um equipamento de interceptação, monitoramento e gravação de telefones foi noticiada discretamente, em geral com algum humor: afinal, para que é que os vigilantes rodoviários precisariam monitorar ligações telefônicas?
Mas há algumas reportagens aí que estão pedindo para ser feitas. Vamos lá:
Quantos pedidos de monitoramento telefônico a Policia Rodoviária Federal fez à Justiça, e apresentando quais motivos? Se há muitos pedidos, os motivos do monitoramento já dão boa matéria. E se não houver pedidos, ou muito poucos? Isso pode significar que a Polícia Rodoviária Federal gastou mal suas verbas, comprando um equipamento caro e desnecessário; ou que o utiliza sem a formalidade de pedir autorização ao juiz.
Dá matérias, e das boas. Ou teremos de esperar que a CPI dos Grampos divulgue seu relatório para oferecer ao consumidor de notícias um resumo chato e sem sal?
Quem gosta de esporte
Entre diversos comentários sobre o novo caderno de Esportes da Folha de S.Paulo, o excelente Mário Magalhães, ombudsman do jornal, faz uma pergunta e já dá a resposta: ‘A Folha gosta de esportes? Às vezes, parece que odeia’.
A Folha deve gostar de esporte, tanto que lhe dedicou um caderno exclusivo. Mas há muitos jornalistas que parecem ter vergonha de fazer cobertura de futebol: preferem as tricas e futricas da CBF, a política do Clube dos 13, os direitos de transmissão que a TV paga aos clubes. Bola rolando, que é bom, quase nada.
Magalhães chama a atenção para um jogo do Santos contra o San José, em Oruro, na Bolívia. Segundo o jornal, o principal adversário do time era a estrada. E tome reportagem sobre os perigos da estrada de montanha que leva aos altos dos Andes. Mas, afinal, quantos jogadores já morreram nessa terrível estrada? Quantos acidentes com delegações esportivas ali ocorreram? Essas informações não estão na matéria.
Aliás, os fatos mostraram que o principal adversário do Santos não era a estrada. Era o San José, mesmo, que o bateu por 2×1.
Há outros bons exemplos. No dia de um grande clássico do Campeonato Paulista, a reportagem reclamava da falta, nos times, de jogadores nascidos na capital de São Paulo. Qual o torcedor que se importa com isso? Algum corintiano reclamou que o grande Dida era baiano? Algum palmeirense estará insatisfeito com a escalação do chileno Valdivia pelo carioca Vanderlei Luxemburgo?
Futebol é bola na rede. E não se deve transformar a side-story na matéria principal.
O longo caminho
O Daily Express, de Londres, pede desculpas publicamente aos pais da menina Madeleine, aquela que desapareceu em Portugal sem deixar vestígios. Os pais da menina chegaram a ser apontados, pela polícia portuguesa, como suspeitos de assassínio; a imprensa inglesa (como a brasileira) deu amplo destaque à suspeita, chegando a transformá-la em fato consumado.
E, quando a polícia portuguesa retirou oficialmente os pais da condição de suspeitos, a imprensa inglesa deu uma notinha bem pequenininha (a brasileira, nada). Mas, processados, os jornais ingleses tiveram de pagar indenizações e publicar reportagens com pedido de desculpas – não como aqueles direitos de resposta que de vez em quando são concedidos no Brasil, incompreensíveis e, tanto tempo depois, sem relação clara com os fatos ali desmentidos.
Falhas na imprensa ocorrem nos paises mais desenvolvidos. A diferença é que, lá, as falhas têm um custo e os prejudicados têm direito a resposta.
Questão de fé
As suspeitas sobre os pais de Madeleine surgiram na imprensa inglesa porque os repórteres confiaram nas informações da polícia portuguesa. E a missão dos repórteres, definitivamente, não é confiar: é, sempre, desconfiar.
Os erros da encrenca
O escritor Deonísio da Silva, estudioso da Língua portuguesa, autor do excelente De Onde Vêm as Palavras, já em 14ª edição, e colaborador do Observatório da Imprensa, corrige esta coluna: aponta uma série de outras possibilidades para a palavra ‘encrenca’, que o colunista considerava originária do ídiche ‘ein kranke’, uma doença. Diz Deonísio:
‘E N C R E N C A: de origem obscura, pode ter vindo da forma arcaica encreo, designando o herege, em geral o judeu, perseguido duramente pela Inquisição. Ser encreo, atualmente grafado incréu, era meter-se em sérias dificuldades, daí o significado para o qual a palavra tomou. O famoso humorista e homem de televisão Jô Soares, autor do romance O Xangô de Baker Street, descobriu outra explicação para a origem do vocábulo. Estaria numa frase pronunciada por prostitutas alemãs que atuavam na antiga zona de meretrício do Rio de Janeiro no começo deste século. Ich habe ein kranke, elas diziam, furtando-se a programas com homens que não as pagariam pelos serviços sexuais prestados. Em desjeitoso alemão, variante de Ich bin kranke (eu estou doente), a frase significaria literalmente `eu tenho uma doença´. Os clientes conformavam-se: meter-se com elas traria complicações, numa palavra, era encrenca na certa.
‘Entretanto, Silveira Bueno, apoiado em Joan Corominas, dá outra explicação. Encrenca seria variação de enclenca, do espanhol enclenque, muito fraco, enfermo. Há indícios de que esta seja a hipótese mais provável, pois o occitano tem clenc, doente, e o provençal tem cranc, coxo, impotente, decrépito, e encrancat, aborrecido, com dor nas costas. Poderia ter havido cruzamento entre o genitivo do latim cancer, cancri, câncer, caranguejo, por causa do andar vacilante, e a forma dialetal do francês antigo esclenc, esquerdo, com vinculações no alemão antigo Slink. Para aludir à prostituta enferma, os fregueses diziam que tinha clenque ou clanco. Esta última forma passou a ser pronunciada cancro, fixado assim também no português. O étimo de enclenque é o mesmo do latim clinicus, clínico, que tinha a variante inclinicus no latim vulgar’.
E eu com isso?
Este colunista já mandou reportagens inteiras por telefone, por rádio (o que era ilegal), por telex, por teletipo, por avião, até mesmo por telegrama da Western – não havia outro meio, mas obviamente não chegou a tempo. A internet mudou tudo.
Mudou tanta coisa, aliás, que uma notícia de portal noticioso tem o seguinte título: ‘Geólogo descobre cratera feita por impacto de meteoro pela web’. Até os meteoros já vêm pela rede!
E a internet nos permite, claro, ter acesso àquelas notícias que só existem porque existe a internet. Digamos:
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‘Atriz Suzana Vieira colocou silicone no bumbum, diz coluna’**
‘Britney Spears exibe pernas com celulite durante passeio’**
‘Mel Lisboa é vista com namorado’**
‘Príncipe da Dinamarca perde anel de casamento mergulhando na Flórida’Os grandes títulos
Excelentes espécimes, excelentes espécimes. Veja:
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‘Xerife reclama de namorado de mulher na privada’Deve querer dizer alguma coisa, com certeza.
Outro:
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‘Mordomo teria pegado anel de Diana’É um título notável: já começa informando que não há certeza alguma sobre a notícia que vem abaixo.
Um brilhante:
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‘Reação química resulta em água de cor paradisíaca na Costa Rica’É fácil explicar (vendo a fotografia): a tal ‘cor paradisíaca’ é aquela que nós, jornalistas, costumamos chamar de ‘azul’.
E, finalmente, o melhor título da semana:
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‘Nokia põe usuários para trabalhar enquanto toma Web’Claro como água de cor paradisíaca! Alguém, um dia, chegará a decifrá-lo.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados