Desde que, há dois anos, tornou-se absolutamente claro para pelo menos dois terços dos eleitores americanos que a Guerra do Iraque havia sido um completo fiasco e os níveis de aprovação pública do presidente George W. Bush atingiram níveis historicamente baixos, a maioria dos analistas que acompanham a política americana vem dando como certa a vitória do candidato da oposição nas eleições presidenciais de novembro próximo.
O Iraque era o grande tema da pré-campanha e os aspirantes à Casa Branca que de alguma forma eram tidos como aliados do presidente Bush nesse assunto foram considerados cartas fora do baralho. Entre eles, principalmente, John McCain, o senador por Arizona, que, no entanto, já tem a maioria dos votos de delegados para a convenção nacional do Partido Republicano e será o candidato do governo no pleito.
A ressurreição de McCain, que nas pesquisas de intenção de voto agora aparece em empate técnico ou um pouco à frente tanto de Hillary Clinton quanto de Barack Obama – os dois pré-candidatos que ainda disputam a indicação do Partido Democrata – é o mais ostensivo indício de que o Iraque deixou de ser o ponto principal da preocupação dos americanos.
Por um lado, vários outros temas ocuparam a agenda pública do país, em especial a longa crise econômica, que se iniciou com a falência de diversos planos de hipoteca imobiliária para famílias de baixa renda e agora ameaça algumas das principais instituições de crédito dos EUA, o que afeta direta ou indiretamente quase toda a população.
Por outro lado, embora o cenário da ocupação do Iraque não tenha sofrido nenhuma melhora estrutural significativa, diminuiu nos últimos meses o número de atentados terroristas em zonas ocupadas pelos militares americanos – provavelmente devido a um acordo tácito e de curto prazo entre EUA e Irã – e, em conseqüência, também o de suas baixas.
Mas uma pesquisa divulgada pelo Projeto pela Excelência no Jornalismo mostra que outro fator pode ter ajudado a operar essa mudança no comportamento dos cidadãos: os meios de comunicação de massa simplesmente passaram a cobrir o Iraque com intensidade muito menor (ver ‘Guerra desaparece do noticiário americano‘).
Máquina eficiente
De agosto de 2007 até março deste ano, o número de matérias sobre o Iraque reduziu-se a um quinto da média observada até julho do ano passado. É evidente que o principal motivo para o declínio tem a ver com os dois pontos abordados antes: outros problemas, mais urgentes e imediatos, tomaram o interesse do público e incidentes de violência no Iraque passaram a ocorrer com menos freqüência.
No entanto, também há outras razões: o risco e os custos, altíssimos, de enviar e manter correspondentes e enviados especiais no Iraque e os orçamentos cada vez menores alocados para as redações de jornais, revistas, emissoras de TV e rádio sites da internet.
Só o New York Times está gastando cerca de 3 milhões de dólares por ano no Iraque; boa parte dessa verba vai na contratação de segurança privada para sua equipe. Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas, em 2006 e 2007 morreu um profissional da mídia a cada oito dias no país.
Embora sem muitos defensores, ainda há a tese de que os meios de comunicação deixaram intencionalmente de cobrir o Iraque para, assim, favorecer as forças políticas e ideológicas que concordam com a intervenção americana naquele país.
O fenômeno remete para a velha discussão sobre o papel da mídia na formação da agenda pública. Embora boa parte das pessoas ainda atribua aos veículos de comunicação uma função fundamental no processo pelo qual a sociedade escolhe suas preocupações e pensa a seu respeito, a verdade é que há uma realimentação constante entre eles, a própria sociedade e outros agentes que atuam sobre ela.
A cobertura da Guerra do Iraque pelos principais meios de comunicação dos EUA esteve longe de merecer elogios por imparcialidade ou correção. Ainda sob o efeito da onda avassaladora de patriotismo em que a nação quase se afogou após os atentados de 11 de setembro de 2001, o jornalismo americano se distanciou muito da independência em relação ao Estado que marcara a sua atuação nos conflitos militares da segunda metade do século 20, em especial o do Vietnã.
A eficiente máquina de comunicação do governo Bush, operada pelo publicitário Karl Rove, atuou com grande vigor na disseminação de informações off the record acriticamente incorporadas por alguns dos principais repórteres do país, como Judith Miller, do New York Times. Muitas das justificativas – depois comprovadas falsas – que ajudaram a convencer a opinião pública sobre a necessidade de invadir o Iraque foram corroboradas por ícones da imprensa dos EUA.
Versões governamentais
O mais escandaloso desses incidentes foi o de 7 de setembro de 2002, quando o presidente Bush e o premiê britânico Tony Blair citaram aos jornalistas que os entrevistaram em Camp David que um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica afirmava que o Iraque estava em condições de construir uma arma nuclear em seis meses.
O relatório simplesmente não existia, mas nenhum jornalista, com a exceção de Karen De Young, do Washington Post, checou com a AIEA a veracidade da informação divulgada pelos dois chefes de governo. Todos os meios de comunicação de massa deram grande destaque ao que Bush e Blair disseram, sem contestação. Mesmo no Post, a informação obtida por De Young junto à AIEA de que nenhum relatório da entidade havia sido elaborado com aqueles dados saiu sem destaque.
As reportagens publicadas pelos jornais passaram a ser usadas pelo governo como comprovação da veracidade de suas acusações, num jogo de retroalimentação quase kafkaniano. Rove e seus subordinados, que haviam provido os jornalistas com os dados falsos, passaram a usar os jornais como prova da acurácia desses dados.
O mesmo comportamento acrítico fez com que a maioria dos meios de comunicação embarcasse nas celebrações de vitória após a queda de Bagdá e a detenção de Saddam Hussein. Pouquíssimos deram espaço de destaque às previsões de que a guerra de fato começava – em vez de ter terminado – com aqueles episódios.
De novo, a responsabilidade não pode ser inteiramente jogada sobre os ombros dos jornalistas. Outros atores – universidades, think-tanks, ONGs, sindicatos, igrejas, legislativos estaduais, o Congresso Nacional – tampouco davam importância ao que poderia ocorrer após a invasão e preferiam cair no engodo das versões governamentais. Jornalismo e sociedade influenciam-se reciprocamente o tempo todo, sempre sob o efeito dos fatos que, estes sim, são poderosíssimos.
Tema rotineiro
O tom da cobertura da Guerra do Iraque só começou a se alterar quando os fatos demonstraram que a condescendência anterior era injustificável. O aumento exponencial do número de mortos e feridos entre os solados americanos, a escalada do conflito inter-étnico e inter-religioso, a evidência de que não seria possível pôr fim à ocupação no curto prazo, tudo isso fez com que os veículos de comunicação e as outras instituições sociais mudassem de atitude. E o consenso a favor da guerra inverteu-se.
Uma lei imitável do jornalismo é que a novidade vale mais do que o conhecido. A terceira missão Apolo, com homens explorando a superfície lunar, saiu quase nos rodapés das páginas dos jornais que deram edições especiais e manchetes colossais aos pioneiros da Apolo XI, ocorrida apenas meses antes.
O mesmo ocorre no Iraque. Quando há uma data a ser celebrada (como o quinto aniversário da invasão, celebrado este mês) ou um número simbólico (como a ultrapassagem do quarto milésimo americano morto em ação, também este mês), o assunto ressurge com um pouco mais de força. Mas, quando não há nada de dramático, o tema é rotina. E cai no esquecimento.
Para a sorte de John McCain…
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Jornalista