Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Livro narra conflitos na Radiobrás

Eugênio Bucci classifica-se como ‘um liberal convicto’. Em alguns setores do Partido dos Trabalhadores, esse adjetivo chega a ser grave acusação política. É natural que ele tenha enfrentado problemas ao participar de um governo liderado pelo PT por quatro anos.


O relato de sua experiência como presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007 está no livro Em Brasília, 19 Horas. O autor acha que tinha o dever desse relato porque se trata de uma história pública, transcorrida em repartições públicas e que, portanto, pertence ao público.


Ele escreve na primeira pessoa do singular tanto gramatical quanto emocionalmente. ‘Usar o ‘nós’ para encobrir o ‘eu’ seria apenas um protocolo demagógico e desinformativo, mais que majestático.’


Anuncia na apresentação que não vai falar bem de si mesmo. De fato, chega até a falar mal de si mesmo. Por exemplo, quando admite ter enveredado ‘voluntariamente pela ambigüidade’ quando assumiu -sem precisar- a responsabilidade de fazer o Café com o Presidente.


A Radiobrás estar à frente desse programa ia contra um dos princípios básicos que Bucci tentou implantar na empresa: o de que à estatal cabia a tarefa apenas de divulgar informações; relações públicas (porta-voz, assessoria de imprensa, propaganda) era função de órgãos do governo, como a Secom.


Por mais que tenha tentado fazer do Café com o Presidente uma emissão de radiojornalismo, Bucci não consegue deixar de admitir mesmo relutantemente que, no fundo, ainda que não ‘rigorosamente’, é publicidade.


Dilemas morais


Essa honestidade intelectual é uma das maiores qualidades de Em Brasília, 19 Horas.
Bucci expõe sem muitas reservas as contradições e dilemas políticos, éticos, morais que viveu nesses quatro anos. Ele e sua equipe conseguiram muito e receberam o reconhecimento da opinião pública pelo o que fizeram. Bucci tinha consciência de que iria tentar ‘o impossível: dar a uma empresa pública de comunicação uma direção apartidária, impessoal, para servir à sociedade, atendendo o direito à informação’. Não alcançou o impossível; mas mostra ter feito o possível.


Lutou contra a mentalidade de que as emissoras estatais devem ser instrumento do governo e, por isso, ocultar notícias que não lhe interessem ou deturpar os fatos à sua conveniência.


Aos que o acusavam de veicular más notícias (greve da Polícia Federal, aumento do preço de gasolina) e ao mesmo tempo argumentavam que a Voz do Brasil precisava se manter obrigatória porque era a única maneira de os habitantes do extremo do país saberem do que ocorria, respondia: como sonegar ao barqueiro da Amazônia a informação de que iria pagar mais pela gasolina e ao munícipe da cidade de fronteira que a PF não iria trabalhar?


Adversários poderosos


Bucci enfrentou adversários poderosos e os nomeia: José Dirceu, Bernardo Kucinski, Ricardo Berzoini. O fato de ter sobrevivido até o fim do mandato pode ser explicado por várias razões: da sua própria habilidade política (da qual a decisão de fazer o Café com o Presidente faz parte) ao apoio que teve da sociedade.


Em quatro anos, não inchou os quadros do funcionalismo público nem o orçamento da sua empresa; aumentou a produtividade e deu aos produtos da Radiobrás mais credibilidade jornalística do que ela provavelmente jamais havia desfrutado antes; manteve -e talvez até tenha ampliado- o respeito que gozava entre os seus colegas de profissão.


Não é pouco. Mas -como é fácil constatar- não é o impossível.


***


Chapa-branca-e-vermelha


Luiz Antônio Novaes # reproduzido de O Globo, 5/4/2008


O jornalista Eugênio Bucci presidia a Radiobrás havia um ano e meio quando recebeu em seu gabinete um envelope branco, lacrado por um selo azul com a inscrição ‘confidencial’. Dentro, encontrou a fotocópia de um bilhete, datilografado em papel timbrado da Presidência da República. Fora-lhe retransmitido pelo ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken, àquela altura um dos três homens fortes do governo Lula. Seu conteúdo, aperitivo das grandes revelações do livro Em Brasília, 19 horas, que Bucci lança, na próxima sexta-feira, em São Paulo, pela editora Record, era o seguinte:




‘Prezado ministro Gushiken, Sou total e radicalmente contrário à proposta do Bucci de não obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil. Só faltava essa. Já não basta a Radiobrás e sua `objetividade´, que na maioria das vezes significa um misto de ingenuidade e na prática mais uma emissora de `oposição´.’


Duas semanas depois, outro bilhetinho-bomba, como os classifica Bucci:




‘Prezado ministro Gushiken, Você está acompanhando os problemas da Radiobrás? As notícias da mídia e a crise com o sindicato do Chico Vigilante? Você está a par da posição pública do Eugênio pelo fim da Voz do Brasil? Você tem acompanhado o conteúdo do noticiário da Radiobrás?’


À frente de Bucci, ‘um probleminha de nada’ 


O irritado signatário das duas mensagens era um só: o ministro chefe da Casa Civil da Presidência, José Dirceu, então considerado o ‘capitão’ do time de Lula. Era junho de 2004. Quatro meses antes, Waldomiro Diniz, ex-assessor de Dirceu, fora flagrado, em vídeo, pedindo propina para donos de bingo, no Rio, onde presidira a Loterj durante o governo Garotinho. A denúncia, embora sobre fato anterior ao mandato de Lula, foi a primeira a abalar o primeiro governo de esquerda do país. Viera a público em reportagem da revista Época assinada por Andrei Meirelles e Gustavo Krieger – este último, conhecido repórter de Brasília que, no ano anterior, por escolha de Bucci, chefiara o departamento de jornalismo da Radiobrás.


Em seu inconfundível estilo, o ‘curto e grosso’ recado de Dirceu tornava mais agudo o que Bucci até então chamava, ironicamente, de ‘um probleminha de nada’: convencer os novos ocupantes do poder da necessidade de retirar a Radiobrás da trilha do chapa-branquismo em que fora jogada desde a sua fundação pela ditadura militar em 1976. Na tentativa de darlhe características de uma verdadeira empresa pública de comunicação, Bucci vinha enfrentando resistências de parlamentares, assessores de ministérios e funcionários da própria estatal, que atribuía aos hábitos e costumes, à força da inércia.


Ao condenar o jornalismo na Radiobrás, o ministro que cuidava da articulação política revelava a Bucci, no entanto, que a cultura da propaganda e do partidarismo tingia-se de vermelho e sobrevivia no coração do governo petista. Uma herança maldita.


Informação, direito fundamental, versus propaganda 


Bucci não era de oposição. Chegara ao governo como jornalista com larga experiência na chamada grande imprensa, respeitado teórico da comunicação – com título de doutorado e livros publicados sobre o tema –, professor universitário e colaborador assíduo do PT. Fato raro entre as gerações de jornalistas que se formaram a partir da década de 80, ele era um quadro, ao mesmo tempo, do moderno jornalismo brasileiro e do partido que ajudara a fundar na juventude, quando ainda estudante da USP. Primeiro editor de Teoria & debate, revista do PT produzida pelo diretório regional de São Paulo, participara da elaboração do programa de comunicação com que Lula enfrentara as urnas em mais de uma campanha eleitoral, inclusive na vitoriosa. A convite de Gushiken e do próprio presidente já eleito, aceitara mudar-se para Brasília.


Bucci não era ingênuo. Observador atento dos dilemas éticos da comunicação, com críticas contundentes à presença cada vez maior da publicidade nas esferas do jornalismo e da política, levara para a Radiobrás o seu pensamento de que a informação é um direito tão fundamental quanto a educação, a saúde ou a moradia. E trabalhou para que a produção dessa informação, mesmo financiada por R$ 95 milhões do Orçamento da União, fosse isenta e transparente. Além de dinamizar e cobrar os preceitos clássicos da objetividade jornalística, seu projeto previa o fim da transmissão obrigatória da embolarada Voz do Brasil, nascida na ditadura Vargas – uma oportunidade de propaganda eleitoral gratuita até hoje adorada não só pelos governantes, mas também pelo chamado baixo clero do Congresso.


 


Os sinais de alergia à opinião pública


A Voz do Brasil era vista como símbolo da Radiobrás, mas, com apenas cinco jornalistas, representava pouco numa empresa que empregava cerca de 1.100 funcionários. Em seus tempos áureos, a estatal chegara a contar com 42 emissoras, que foram minguando na exata medida em que, na década de 80, o ex-presidente José Sarney concedia, por decreto, concessões de rádio e TV para políticos-empresários ou empresários-políticos. 


Em janeiro de 2003, quando Bucci levou para lá profissionais de mercado e não militantes do PT, a Radiobrás ainda tinha quatro estações de rádio – entre elas a mítica Rádio Nacional do Rio –, duas emissoras de TV e uma agência de notícias na internet: uma estrutura de comunicação nada desprezível para os defensores do aparelhamento da máquina pública


Do bilhete à Carta: futricas ao pé do ouvido 


Sete meses depois dos bilhetinhos, Bucci constatou, já sem nenhum bom humor, que as pressões contra seu projeto não só cresciam como haviam chegado ao pé do ouvido do presidente. Seu probleminha tinha virado um problemão. Atendia pelo nome de Carta crítica, documento confidencial sobre a cobertura de mídia, repórteres e empresários de comunicação, produzido diariamente pelo veterano jornalista e professor Bernardo Kucinski, outro antigo colaborador do PT, destinado a Lula e seu círculo mais íntimo.


Sem que Bucci soubesse, pois não fazia parte do grupo que tinha acesso à Carta, Kucinski, requisitado à USP pela Presidência da República, também alimentava o presidente com ‘caracterizações doutrinárias’ sobre a Radiobrás, de cujo Conselho de Administração fazia parte.


Numa de suas edições, lidas por Lula durante seu café da manhã, Kucinski acusava o jornalismo da Radiobrás de se omitir na cobertura da atuação de tropas brasileiras no Haiti, fazendo o jogo da oposição. Ao tomar conhecimento do ataque, Bucci achou que era hora de reagir


Autoritarismo e alergia à opinião pública 


‘Algumas das manifestações mais explícitas da mentalidade autoritária que tentou sitiar o nosso projeto entre 2003 e 2006, eu as li nas edições da Carta crítica‘. Indignado com a ‘futrica’, Bucci produziu uma devastadora análise, batizada de os sete pecados ‘capitais’ do pensamento autoritário ou os sete ‘segredos’ do autoritarismo de esquerda (veja quadro acima). Reproduzida no capítulo 17 do livro (‘A decupagem do sintagma obscuro’), a peça, escrita com rigor acadêmico e exuberante ódio criativo, utiliza expressões como ‘apologia do aparelhismo’ e ‘ódio à imprensa’ para caracterizar o arsenal de recursos de seus adversários.


‘Como um médico legista de crendices fossilizadas, dissequei-lhe as juntas verbais e ali identifiquei os sinais de alergia à opinião pública’. Para quem já viu o PT se render a tanta coisa que execrava, chegou a hora, com a leitura do livro de Eugênio Bucci, de meditar sobre a acomodação de seus principais dirigentes ao processo que levou o partido a trocar a política pelo marketing e a comunicação pela propaganda. ‘É o muito novo em simbiose com o muito velho’, diz Bucci, ao definir o fenômeno, não exclusivamente brasileiro, que mistura, em benefício dos governantes, técnicas ultramodernas de marketing com práticas patrimonialistas ainda existentes no Estado.


Cabos eleitorais disfarçados de assessores de luxo 


Depois dos atritos com Dirceu e Kucinski, ‘veio junho de 2005 e com ele o horror’, relata Bucci, referindo-se ao terremoto do mensalão, provocado pelas denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson. Na crise, segundo o livro, o desagrado com a cobertura da Radiobrás chegou ao auge. Entre dezenas de auxiliares diretos ou indiretos de Lula que foram obrigados a se demitir, a avalanche arrastou Dirceu e Gushiken. Por outras razões, Kucinski deixaria o Planalto em junho de 2006, um ano e meio depois dos desentendimentos com Bucci.


Órfão de detratores e defensores, o presidente da Radiobrás, que já colocara o cargo à disposição logo após os bilhetes-bomba de Dirceu, pensou de novo em ir embora. ‘Um sentimento me segurou (…) Eu tinha um trabalho de que teria de tomar conta, e não iria abandoná-lo às hienas, aos oportunistas reconvertidos à utilidade pública da Voz do Brasil, aos cabos eleitorais transformados em assessores de luxo’, justifica no livro. Avisou que sairia quando o primeiro mandato acabasse, mas ficou até abril de 2007, para defender, ‘não dos críticos, mas dos vermes’, um governo que ainda considerava seu. Pouco antes de sair, entregou ao jornalista Franklin Martins, novo secretário de Comunicação da Presidência, a quem a Radiobrás passaria a se subordinar, o projeto que gostaria de ter implantado e para o qual a estatal já estaria madura: a sua fusão com a TVE do Rio numa terceira – e única – empresa. Franklin Martins, segundo Bucci, aprovou a idéia. Quase um ano depois, no mês passado, ao fim de uma longa batalha entre governo e oposição, o Congresso autorizou a criação da TV Brasil, a polêmica TV pública – da qual Bucci, seu primeiro inspirador, não se considera padrinho.


Entre os principais relatos feitos até agora por ex-colaboradores da administração petista, a ‘crônica de aldeia’ de Bucci, como modestamente o trata, é o mais bem escrito, e de longe, o mais corajoso e ousado.


Produto de um espírito livre que não se furta a reconhecer derrotas, dúvidas e frustrações, Em Brasília, 19 horas – A guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula chega às livrarias com toda a pinta de clássico. No título escolhido por Mário, filho caçula que seguiu a profissão do pai, Bucci evoca o tempo em que, embalada pelo Guarani, de Carlos Gomes, a Voz do Brasil, encenação radiofônica do poder político, anunciava aos rincões que a noite havia chegado. Um tempo que ficou para trás, mas que resiste e luta para não ir embora.


 


Dois cafés e o presidente


Eugênio Bucci queria o governo longe da edição do noticiário da Radiobrás: talvez por isso não recebesse as Cartas críticas de Kucinski que, segundo ele, ‘envenenavam’ o café da manhã e a relação do presidente com a imprensa. Mas Bucci era recebido por Lula aos sábados ou domingos, no Palácio da Alvorada ou na Granja do Torto, para a gravação do Café com o presidente, conversa radiofônica que ia ao ar nas manhãs de segunda-feira.


Foi assim durante quase três anos, à exceção do período eleitoral, quando programas desse tipo são proibidos pelo TSE.


Muitas vezes tensas, as gravações eram preparadas por mais de uma hora de debate sobre o que seria melhor dizer – ou não dizer – nos microfones. Bucci confessa que, nestes encontros, desdobrava-se em dois: ‘Às vezes, Lula olhava para mim e via um jornalista distanciado, indiferente aos seus dramas. E tinha razão.


Outras vezes, ele me encarava e via um quadro político ao seu dispor. De novo, tinha razão.’ Como explicar que, no governo, Bucci tenha sido, ao mesmo tempo, o jornalista em cruzada contra a bajulação e o conselheiro do presidente? No livro, ele admite que, consciente dos perigos, enveredou-se voluntariamente pelo terreno da ambigüidade, pois achava que um Café com o presidente bem feito fortaleceria a Radiobrás e seu projeto de autonomia. Conta que Lula jamais pediu para que a empresa deixasse de dar uma notícia, mas não descarta que os efeitos propagandísticos do programa de rádio tenham ajudado no apoio que mereceu do presidente durante todo o primeiro mandato.


Bucci pára por aí, mas faz sentido: o presidente que concedeu uma única entrevista coletiva em quatro anos pode ter visto no Café da Radiobrás um poderoso antídoto contra as críticas externas. Produzido na forma de entrevista – mais jornalístico do que um pronunciamento, mas, ainda assim, sob controle oficial – o programa era retransmitido por mais de mil emissoras em todo o país e gerava notícia para jornais e sites. Exatamente o que Lula se negava a fazer no embate direto com os repórteres credenciados no Palácio do Planalto.


Confrontado por dois professores de comunicação em litígio, Lula soube tirar proveito de ambos. No café da manhã, digeria as lições de Kucinski sobre como desconstruir a imprensa; no Café servido por Bucci nos fins de semana, construía seu discurso, sem a intermediação da imprensa.


Tal comportamento pragmático em matéria de comunicação, ao que tudo indica, vem de outro mestre, aparentemente o verdadeiro professor de Lula: o publicitário Duda Mendonça.


Em busca da popularidade (e da audiência) jamais perdida, Lula seguia – e continua seguindo –um dos princípios que, no livro, Bucci mais critica nos governantes: na era do marketing, governar é fazer campanha eleitoral permanente, é fazer publicidade de obras a inaugurar, recéminauguradas ou nem mesmo existentes. Para isso, há que se ter, sempre, um bom e competente palanque. Mesmo que apenas eletrônico.


***


Livro revela pressões de Lula, Dirceu e Berzoini sobre Radiobrás


Daniel Bramatti # reproduzido do O Estado de S.Paulo, 5/4/2008


No dia 15 de junho de 2004, o então todo-poderoso ministro José Dirceu mandou um bilhete para seu colega Luiz Gushiken para se queixar de que a Radiobrás, empresa de comunicação do governo, havia se transformado em um órgão de ‘oposição’. Um ano depois, também por escrito, o mesmo Gushiken recebeu de Ricardo Berzoini, então ministro da Previdência, uma reclamação semelhante: na cobertura de uma paralisação de servidores federais, a estatal estaria fazendo ‘propaganda’ de um movimento ‘puxado pelo PSTU e PFL’.


Em dezembro de 2005, o próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, manifestou – não pela primeira vez – sua contrariedade com a Agência Brasil, órgão oficial cujas chamadas estariam ‘piores que as manchetes dos jornais que mais criticam o governo’.


O alvo das pressões era o presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, que desde 2003 se dedicava a uma tarefa tão complexa quanto inusitada: combater, nas entranhas de uma empresa do próprio governo, o chamado jornalismo chapa-branca – governista, de tom bajulatório e promocional – e promover, em vez disso, o apartidarismo e a impessoalidade na produção do noticiário. Para Bucci, a Radiobrás deveria atender não às autoridades, mas aos cidadãos e ao seu direito à informação.


Apoiada por Gushiken, a iniciativa foi bombardeada por outras estrelas da cúpula do PT e por pelo menos um dos especialistas em comunicação do partido, que assessorava o próprio Lula. Era vista, no mínimo, como ‘ingênua’ por petistas que viam a prática de jornalismo crítico como um reforço para o arsenal dos adversários.


Mas Bucci manteve o rumo. Diferentemente de muitos de seus detratores, permaneceu no cargo durante todo o tempo que quis – quatro anos e meio – e indicou o sucessor. Ele relata as resistências que encontrou e os avanços que pôde promover no livro Em Brasília, 19 horas (Editora Record), que chega às livrarias nos próximos dias e tem como subtítulo A guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula.


O ex-presidente da Radiobrás afirma que Lula dava apoio ao seu projeto ao manifestar, em repetidas ocasiões, que o que é verdade tem de ser publicado. ‘Nunca o presidente pediu que a Radiobrás deixasse de dar alguma notícia, nem sugeriu que direcionássemos o noticiário para proteger as autoridades.’ Mas o próprio livro mostra que o petista reclamava de notícias verdadeiras que incomodavam o governo.


‘Pô, Eugênio, como é que a Radiobrás foi dar aquela declaração do Nilmário? (…) As pessoas vêm reclamar comigo, me perguntam se não tem ninguém lá de confiança que olhe isso.’ Foi assim que Lula reagiu, no final de 2003, a uma dessas notícias incômodas.


O presidente se referia a uma entrevista de Nilmário Miranda, então secretário de Direitos Humanos, na qual ele atribuía o aumento do trabalho infantil no início da gestão Lula ao ajuste econômico promovido pelo governo. Publicadas pela Agência Brasil, as declarações logo repercutiram. ‘Ponderei que, se a Radiobrás tivesse de manter em seus quadros equipes para avaliar a pertinência da fala de ministros, uma sandice ganharia institucionalidade’, relata o autor no livro.


Por ignorar o lobby pela instalação de um ‘filtro governista’ na estatal, Bucci poderia ter caído em desgraça, mas manteve seu prestígio no Planalto. Em setembro de 2004, foi convidado a escrever o discurso que Lula leria em um evento da Associação Nacional de Jornais. Com uma enfática defesa da liberdade de imprensa, o discurso repercutiu positivamente, na avaliação do governo. No dia seguinte, o presidente telefonou a Bucci para agradecer.


No livro, o ex-presidente da Radiobrás dá uma possível explicação para sua sobrevivência, apesar de ter vivido ‘sob fogo cerrado do governo’ – título de um dos capítulos da obra. ‘Tenho absoluta consciência de que, se me mantive no cargo até 2006, devo isso à constância do presidente, que não cedeu a pressões que tinham por objetivo me destituir e quebrar a coluna vertebral da minha gestão. No fim das contas, não descarto a hipótese de o Café com o Presidente, epicentro da ambigüidade em que tive de navegar, ter ajudado na sustentação que acabei por merecer.’


O Café com o presidente é um programa semanal de rádio produzido pela Radiobrás e veiculado em diversas emissoras. Seu conteúdo costuma repercutir em jornais e TVs. Lula é entrevistado no programa, mas a pauta é previamente discutida – só fala o que quer, quando quer.


‘O prestígio (junto ao Planalto) gerado pelo Café não decorria dos seus alegados méritos jornalísticos, mas dos seus efeitos propagandísticos. Com isso, ele valorizou a Radiobrás, mas, ao mesmo tempo, contribuiu para que ela fosse vista como parte da máquina de propaganda do governo’, reconhece Bucci no capítulo intitulado ‘O cafezinho da ambigüidade’.


Para implantar seu projeto, Bucci não enfrentou apenas pressões políticas. Foi preciso mudar os padrões de apuração e redação de notícias e convencer os funcionários de que sua função não era servir as autoridades – um processo nada simples, já que, ‘aos olhos da direita e da esquerda, era assim porque sempre tinha sido assim’. Nas palavras de Bucci, o governismo era uma ‘cultura ancestral tão pesada quanto um continente’. Na semana passada, uma das manchetes no site da Agência Brasil era líder do PSDB quer explicações de Dilma sobre autoria do dossiê. Ou seja, a agência de notícias do governo chama de dossiê o que o próprio governo nega ser dossiê – sinal de que algo mudou na ‘cultura ancestral’.


 


Assessor queria destacar ‘pautas positivas’


Eugênio Bucci tem uma teoria para explicar a difícil convivência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a imprensa no primeiro mandato – período em que deu poucas entrevistas coletivas, ameaçou expulsar o correspondente do New York Times e foi acusado de tentar cercear a atuação dos jornalistas ao propor que a profissão fosse fiscalizada por um conselho.


Para o ex-presidente da Radiobrás, a ‘dieta informativa’ servida ao presidente todas as manhãs colaborou na formação de um clima de animosidade. ‘Ela se chamava Carta Crítica e consistia num documento confidencial de aproximadamente duas páginas em papel ofício. A pretexto de analisar o noticiário do dia, lançava reprovações severas aos métodos dos repórteres, ao pensamento dos colunistas e aos donos de jornais’, descreve Bucci.


O relatório, encaminhado a Lula de 2003 a 2006, era produzido por Bernardo Kucinski, militante do PT e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Criticava não apenas o noticiário da ‘grande mídia’, mas também o produzido pela Radiobrás. Segundo Bucci, que teve acesso a algumas edições da Carta Crítica, ela continha ‘algumas das manifestações mais explícitas da mentalidade autoritária’ que se opôs ao projeto de tirar o tom governista do jornalismo da empresa.


No final de 2004, Bucci teve acesso a uma Carta Crítica que censurava a Agência Brasil por não cobrir a chegada de reforços para as tropas brasileiras no Haiti – omitindo o fato de que a agência vinha dando extensa cobertura à atuação dos militares brasileiros no país. O relatório também criticava a agência por ter noticiado a ida de uma delegação do PT ao Haiti, o que teria dado ‘munição’ para que a imprensa estrangeira especulasse sobre uma suposta tentativa do Brasil de trazer o país para a órbita da esquerda latino-americana. No livro, Bucci rebate as acusações e se inspira nesse exemplo para descrever o que chamou de ‘sete pecados capitais do autoritarismo de esquerda’.


Em julho de 2005, Kucinski enviou a Gilberto Carvalho, assessor de Lula, uma carta para manifestar seu desagrado com a ‘postura editorial equivocada’ da Agência Brasil e mostrar como deveria ocorrer a edição. Segundo a receita, o ideal seria dar destaque a ‘quatro pautas positivas’, que ‘quebrariam o enquadramento negativo da mídia nacional do que se passa no país’. E acrescentou: ‘Registre, para todos os efeitos, que a direção da Radiobrás imprimiu uma determinada direção à cobertura da Agência Brasil, chamadas por eles de jornalismo público, que, além de executada de modo incompetente e não atender nossas necessidades de comunicação, nunca recebeu mandato explícito do governo’. Procurado pelo Estado, Kucinski não quis se manifestar.


 


Os pecados capitais do pensamento autoritário


1. O esquecimento proposital


Sonegar a história e ocultar os fatos que não convêm ao argumento.


2. O coletivo compulsório


Dizer ‘nós’ para impor obediência e intimidar a divergência.


3. A futrica instrumental


Semear a intriga palaciana para prejudicar os que pensam diferente.


4. A apologia do aparelhismo


Promover – abertamente ou, se necessário, de forma dissimulada – o uso dos meios de comunicação públicos para fins do grupo de governo.


5. O ódio à imprensa


Banir a reportagem e profetizar que todo jornalismo será castigado


6. A arrogância sem substância


Desdenhar do outro para desqualificá-lo.


7. Condenar a priori


Acusar pelas costas, na escuridão, sem provas e sem tolerar o direito de defesa.