Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O resgate dos valores constitucionais

A violência no Brasil é tema de há muito falado. Muitas são as propostas formuladas, principalmente em relação ao aumento das penas e mudanças na legislação penal. Ocorre que as discussões são apresentadas pela imprensa com o intuito de influenciar a conduta das pessoas, que reagem com ódio às atrocidades cometidas em várias cidades, especialmente no Rio de Janeiro.

É certo que, em uma sociedade civilizada, deve haver normas de conduta cuja observância é dever de todos. Deve existir previsão de penas para os que não se comportem com os parâmetros estipulados na Constituição e nas leis aprovadas com o respaldo popular. No entanto, não se pode desconhecer que a Constituição de 1998, apesar de excessivamente analítica, não deixou de disciplinar a segurança pública.

Por outro lado, é certo que o Código Penal e a legislação penal especial também prevêem sanções para os delitos das mais variadas espécies.

Ademais, é certo que, através da chamada filtragem constitucional, a legislação infraconstitucional deve ser lida em consonância com a mesma, de modo a privilegiar a dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. E, dentro deste prisma, a segurança pública é um direito fundamental, com previsão no art. 5º, caput, da CF, devendo, portanto, ser assegurada pelo Estado, pois do contrário não há promoção de vida digna.

Punição para todos

No entanto, a discussão quanto ao aumento das penas e mudanças na legislação penal não merece reflexão a priori. Deve-se deixar para um momento posterior, sob pena de vivermos um direito penal simbólico. Isso porque não adianta aumentar as sanções para dar uma falsa sensação de tranqüilidade às pessoas; o que é necessário, sim, é a efetiva punição.

A imprensa, lamentavelmente, apesar de ser um importante meio de informação, com garantia constitucional, não cumpre o seu papel quando usa de comoção popular para mostrar pessoas vítimas de violência e chamar a atenção para a impunidade, escondendo as reais causas da barbárie, e os meios necessários para combatê-la.

Quaisquer propostas para fortalecer a segurança pública devem ser despidas de emoção e dotadas de racionalidade para que não se cometa nenhuma injustiça, como o tão falado direito penal do inimigo, para usar a linguagem de Günter Jakobs. Não se pode descuidar das garantias do acusado previstas na CF, pois mesmo quem comete crimes é sujeito de direito.

A solução está na efetiva punição e há dificuldade prática de assim proceder. O direito não pode oferecer respostas irracionais. Cabe a cada cidadão lutar pela efetividade da legislação penal. Mas com a consciência de que a punição tem que ser para todos, e não apenas para os pobres e miseráveis.

Tratamento discriminado

Deve-se lutar pela segurança pública como uma valorização do ser humano. Nem se diga que o Brasil é subdesenvolvido. O fato de ser um país pobre não pode ser desculpa para a população querer justiça a qualquer custo, com a cessação dos direitos fundamentais do acusado.

A luta pela segurança pública deve partir de um discurso racional e consciente, de que todo poder emana do povo, e é esse povo que deve cobrar das autoridades estatais a efetiva punição, sob pena de a democracia se tornar, como já se tornou, balela. Não se pode só esperar de políticos; a população deve lutar pelos seus direitos.

E a imprensa não pode tratar de situações de violação de direitos humanos com paixão. Quando um jornal dá ênfase a uma vítima e não reconhece que todos os dias milhares de pessoas também são vítimas de homicídios, latrocínios e outros delitos violentos, utiliza-se da comunicação para chamar a atenção de um fato, dando tratamento às pessoas com discriminação, ao não enxergar que todos que são acometidos pela violência devem ser protegidos.

Satisfação e convivência

Não se pode esquecer que, a violência é latente à própria condição humana. Thomas Hobbes já dizia que ‘o homem é o lobo do próprio homem’. Deve-se lutar para fazer valer a dignidade de todas as pessoas humanas, e não de algumas. Assim, cabe ao Estado reprimir as condutas penalmente ilícitas, em conformidade com as garantias constitucionais e a legislação penal.

Mas para tanto é preciso que a sociedade tome decisões racionais. Nesse aspecto, organizações não governamentais, intelectuais, associações civis e imprensa possuem o papel condutor de mostrar a realidade à população, de modo a fazê-la lutar pelo melhor caminho a ser dado ao seu destino. O Estado, através de seus órgãos, é apenas um condutor das aspirações populares racionalmente aceitas por todos e incorporadas à Constituição como valores que transcendem a política legislativa. Assim, deve-se, em um primeiro momento, lutar pela efetiva punição, de acordo com a legislação em vigor. Após, sim, pode-se pensar em aumento de penas e criação de outros tipos penais.

O que não se pode é desconsiderar o valor humano como fundamento da República Federativa do Brasil, com o conseqüente respeito aos seres humanos, de forma igual, dando ensejo a uma efetiva satisfação e convivência de todos os membros da comunidade.

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Procuradora do município de Campos dos Goytacazes (RJ), mestre em Políticas Públicas e Processo pela UNIFLU/FDC e pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Desenvolvimento Municipal da UNIFLU/FDC