Vale a pena parar para refletir sobre o registro feito pela imprensa (ver, por exemplo, O Globo, 12/6/2004) da sentença em que a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais determina ao pai do estudante Alexandre Batista Fortes, hoje com 23 anos, que pague ao filho uma indenização de 52 mil reais por danos morais, por ter estado ausente do convívio familiar. Apesar de ter pagado sempre em dia a pensão alimentícia, o pai deixara de ver o filho quando este tinha 6 anos de idade. No entendimento da Justiça mineira, a família não é apenas o núcleo econômico e de reprodução, mas também ‘um espaço de amor, companheirismo e afeto’.
Tem razão o advogado do rapaz, Rodrigo Cunha Pereira, ao afirmar ser esta ‘uma decisão histórica, que muda tudo, dando valor ao amor e afeto’. Para ele, ‘é impossível fazer com que o pai tenha amor por um filho, mas a sentença faz com que os homens reflitam antes de ter uma criança sobre quais são as verdadeiras responsabilidades paternas’. Este processo, frisa o advogado, ‘trata das dores da alma’.
Não nos interessa aqui o mérito da questão, mas o fato de que, não apenas a Justiça mineira, mas os juízes brasileiros de um modo geral, decidem cada vez mais sobre toda uma gama de assuntos sociais que tradicionalmente estavam situados fora da órbita jurídica. ‘Danos morais’ é a categoria genérica onde se alojam os mais diferentes conflitos de natureza íntima, afetiva e moral. O professor insinuou algo de ofensivo para o outro durante uma discussão acadêmica pela internet – uma ação de danos morais punirá o exaltado; um jornal acusa precipitadamente de pedofilia os diretores de uma escola infantil – uma ação de danos morais tentará fazer justiça. E assim por diante.
Crise do Direito
Os dois casos apontados mostram, entretanto, uma mesma solução para conflitos de natureza e proporções muito diferentes. É o que acontece freqüentemente nesse tipo de ação: ela está na moda há algum tempo.
Uma pesquisa dada a público no final do milênio (coordenada em 1999 pelo professor Luiz Werneck Viana, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) mostrava o Poder Judiciário no Brasil como foco de uma socialização inusitada: os magistrados são progressivamente convocados a julgar ações que não têm necessariamente a ver com questões de natureza jurídica, e sim com pleitos sociais, existenciais, éticos, etc., não mais subsumidos nas formas habituais de acolhimento do conflito humano. Por meio dos ‘danos morais’, os juízes exercitam a sua nova consciência do social.
Mas essa consciência não é algo que caia direto do céu da ética para o tino terrestre dos que julgam. Há um toque de cinema americano em tudo isso. Como bem sabemos, a sociedade americana parece levar a seus limites, senão ao esgotamento de suas formas, o exercício do poder jurídico. É tradicional nos Estados Unidos que seus cidadãos recorram ao tribunal de justiça por dá-cá-essa-palha: o marido esqueceu de aparar a grama do jardim, é processado pela mulher, já que violou uma cláusula do contrato matrimonial; o chefe roçou a secretária na passagem estreita de um corredor, lá vem o processo por danos morais. É difícil escapar desse sistema.
Mas o que em princípio parecia característica exclusiva de uma sociedade que vive o seu sistema jurídico quase como uma religião, generaliza-se hoje ao mesmo tempo em que se observa um desligamento progressivo da responsabilidade específica de determinados campos do social em favor do campo jurídico. Por trás deste fenômeno, desenha-se, claro, a crise contemporânea do político e das relações comunitárias, mas também paradoxalmente a crise do próprio Direito como instrumento teórico e prático para resolução de conflitos maiores. A ‘jurisdicização’ da vida social pode ser sintoma da falência de outros poderes e instituições tradicionais.
Sentenças idiossincráticas
Este fenômeno tem grande interesse para o jornalismo, porque, com essa progressiva supremacia social do Judiciário, as ameaças de mordaça no exercício da profissão tendem a deslocar-se de seus clássicos pólos (governos e parlamentos) para o do Judiciário. Começa a ressurgir por este caminho da censura prévia. Vale lembrar o embargo na Justiça em 2002, por parte de uma empresa de recolocação profissional, contra uma reportagem da revista Você S.A. que discutia a eficiência dessa modalidade empresarial [veja remissões abaixo]. Uma das empresas, considerando-se prejudicada simplesmente pelo tema, resolveu prevenir-se contra um presumido erro e conseguiu protelar judicialmente durante algum tempo a publicação da matéria.
Se, por um lado, os tribunais representam uma garantia contra abusos jornalísticos – dispõem para isso da Lei de Imprensa, herança intocada do regime militar –, por outro, na medida que começam a decidir invasivamente sobre o social convertido em terreno de ‘moralidade’, constituem um ameaça virtual para o livre debate ou a liberdade de expressão. E as investidas judiciais no setor parecem ter vindo para ficar, principalmente agora que o Supremo Tribunal Federal decidiu abolir o limite de prazo para processos por dano moral.
A investigação jornalística pode colocar as barbas de molho: em tempos de hegemonia da mídia de entretenimento, o jornalismo comprometido com a verdade do social e da política torna-se indesejável para os aparelhos de Estado. Por outro lado, fora do âmbito da imprensa, sentenças idiossincráticas sobre matéria de foro íntimo podem ser tão perigosas – ou pelo menos tão ambivalentes quanto as palavras ‘moralidade’ e ‘afeto’.
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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro