Em tempos de conspurcação de valores, mais do que um meio de sobrevivência, a malandragem parece ter ganho cunho oficial. Sim, pois provavelmente ‘nunca antes na história deste país’ mentiu-se, falseou-se, ludibriou-se tanto como desde que Lula – por uma infeliz coincidência ou não – assumiu o poder. E isso, indistintamente, cumpre reconhecer, já que a desfaçatez dos flagrados com a chamada boca na botija passou a ser um denominador comum em nossa sociedade. Inclusive no que diz respeito à imprensa.
Com o uso disseminado de ardis e da negação descarada das evidências mais deslavadas em voga, perde-se cada vez mais a real dimensão dos fatos, já que a proporção dos delitos e ilicitudes vão se diluindo em meio a manipulações de toda espécie. Processo agravado, no âmbito governamental, pela resignação popular adoçada pelos bons números da economia, que permitem a Lula e seus incansáveis aloprados passarem ao largo de mazelas que em outras circunstâncias poderiam ser funestas, como já aconteceu em passado recente. Afinal, sabe-se bem hoje em dia que Collor caiu muito mais pela desastrosa gestão econômica do que por escândalos que na era lulista viraram rotineiros.
Num cenário em que a leniência e a complacência popular não só servem de anteparo para as mais desavexadas empulhações como incentivam a malandragem, mesmo as chamadas reservas morais da sociedade às vezes acabam contaminadas. Como na própria imprensa, cujos interesses e concessões em nome da sobrevivência têm freqüentemente comprometido seu desempenho. Comprometimento que vai de uma linha francamente chapa-branca, como a praticada pela CartaCapital, cujo alinhamento com o governo petista é assumido por sua própria chefia, ao antagonismo explícito de Veja, que voltou a fustigar o governo com a publicação do tal dossiê dos gastos do ex-presidente FHC. Ambas, por isso mesmo, distantes dos ideais de lisura e isenção que se esperam do bom jornalismo.
Sob as saias da ministra
Também aí a malandragem é patente, com o fingimento de uma integridade para inglês ver. Como é acreditar nas boas intenções dos que suspiram pelo esquerdismo retrógrado, encarnado por um petismo emasculado e impostores como Hugo Chávez, ou mesmo no idealismo de araque postulado por uma revista cujos podres, corajosamente revelados pelo jornalista Luis Nassif, ninguém minimamente politizado pode ignorar.
Acusações que Veja, sintomaticamente, tem evitado comentar, preferindo ater-se às vias judiciais, o que parece lógico mas não deixa de soar como uma espécie de confissão de culpa. Afinal, não foram acusações superficiais e evasivas, e sim, uma longa série de relatos minuciosamente detalhados por um jornalista respeitado na praça. Sim, pois mesmo não se gostando do que Nassif escreve, tudo indica que a maior parte de suas denúncias são irrespondíveis. Daí, a revista ter optado pelo silêncio, mantendo as focinheiras até de seus notórios pitt-bulls.
Enfim, como bem lembrou a comentarista global Miriam Leitão, dia desses, nada acontece no Brasil que não seja rapidamente eclipsado por fatos novos. E por suas respectivas versões, é claro. E eis que a própria Veja dá uma espécie de volta por cima com o furo da divulgação do tal dossiê elaborado sob as saias da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Dossiê, como bem enfocou a revista, obviamente produzido para inibir qualquer iniciativa da oposição no sentido de trazer ao conhecimento público os gastos presidenciais. Algo que a ministra, favorita de Lula para a sucessão presidencial, procurou negar sob a malandra alegação de que o levantamento destina-se a atender a uma solicitação do Tribunal de Contas da União. Como se este já não tivesse examinado e aprovado as contas de FHC há muito tempo atrás.
‘Companheiros injustiçados’
Como não poderia deixar de ser, a trapalhada caiu do céu não só para Veja, que como nos bons tempos voltou a ser centro das atenções, como para a própria imprensa em geral, ultimamente amaciada pela série de eventos positivos oriundos do governo. Nada de novo, em resumo, com a economia no prumo blindando o prestígio de Lula, cujos índices de popularidade, segundo a mais recente pesquisa do Ibope, nunca estiveram tão altos.
O que confirma que seu eleitorado não está nem aí para as turbulências políticas, como também finge não ver sua falta de escrúpulos ao elogiar figuras execradas da vida pública, como Severino Cavalcanti e Renan Calheiros, citados por ele em discursos como ‘companheiros’ injustiçados. Companheiros, vá lá, até faz sentido. Mas, injustiçados, francamente: só mesmo como exemplo de malandragem oficializada.
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Jornalista, Santos, SP