Tem causado muita celeuma o empenho quase militante do jornalista Ali Kamel em sua cruzada em O Globo contra a adoção de cotas raciais no ingresso na universidade pública brasileira.
Enfática, facilitada talvez pelo fato de ele exercer um cargo proeminente na maior rede de mídia do país, o que chama mais a atenção na cruzada do jornalista é a incrível contradição entre o amplo espaço de mídia de que ele dispõe e a superficialidade por demais evidente de sua argumentação, atributo no mínimo estranho no texto de um jornalista tão veementemente determinado a expor suas idéias sobre o assunto.
Em seu último – e extenso – artigo sobre o tema, Ali Kamel já começa afirmando assim, sem mais nem menos que, ao adotar as cotas raciais, o Brasil estaria ‘rompendo com a tradição legal de tratar brasileiros sem distinção de raça ou cor’. Ora, qualquer brasileiro medianamente informado sabe que esta referida tradição jurídica só tem, de tradicional, o fato de ter sido, há muito tempo, transformada em letra morta, desmoralizada pelo desuso, como o foram tantos e tantos outros artigos e parágrafos de nossas leis, principalmente quando tratavam de corrigir injustiças sociais históricas, como o racismo, por exemplo.
Logo em seguida, Ali se vale do trabalho ‘Ação afirmativa ao redor do mundo. Um estudo empírico’, de Thomas Sowell, segundo ele ‘um dos mais renomados intelectuais americanos’. Não conhecemos nada sobre Thomas Sowell. Por conta disso não podemos aferir seu alegado renome ou, mesmo, atestar a propriedade de suas idéias contra as ações afirmativas em geral (idéias, a propósito, consideradas ‘demolidoras’ por Kamel). Seria no entanto o caso de se perguntar: que importância tão transcendental poderia ter um estudo, assumidamente empírico, realizado por um estudioso americano sobre matéria tão especificamente ligada à realidade brasileira atual e imediata, em detrimento do tanto que já se escreveu sobre o tema por aqui?
Para início de conversa, a avaliação dos desacertos (onde foram parar os acertos?) de políticas afirmativas ou de isonomia social não poderia ser realizada assim, de forma tão generalizadora. Relembrando Bill Clinton, não se pode ser contra políticas deste tipo só por que se pode ser. Tem gente olhando.
Assim sendo, o que teriam em comum realidades sociais tão diferentes quanto Sri Lanka e Nigéria, Índia, Malásia e Estados Unidos, utilizadas por Kamel (citando Sowell) como base de sua argumentação? Não é tão simples se afirmar peremptoriamente, mas, ao que tudo indica, a essência dos problemas sociais no contexto das eventuais políticas afirmativas empreendidas na Malásia, no Sri Lanka expressa, na maior parte dos casos, a existência de distorções e disputas étnicas, cuja solução ou reparação poderia vir a auxiliar algum tipo de unidade nacional, territorial ou mesmo a realização de aspirações nacionalistas ou separatistas recorrentes. Reflexos de disputas interétnicas, em suma, entre outras complexidades.
O papel do invasor
Aliás, a confusão inexplicável que Kamel faz dos conceitos raça e etnia chega a ficar esdrúxula quando ele evoca o candente exemplo da Guerra de Biafra, na qual, sabidamente, poderosos interesses do colonialismo inglês insuflaram uma cruenta guerra separatista, a partir de divergências étnicas históricas e muito antigas entre os povos haussa, yoruba e ibo. Ora, a guerra na Nigéria nada teve a ver, diretamente, com a questão das ações afirmativas. O que houve por lá, todos se lembram, foi uma guerra. Os então inimigos yoruba (conhecidos como nagôs no Brasil) e ibo (os massacrados biafrenses) são rigorosamente povos da mesma raça (tendo até alguns de seus descendentes entre os protagonistas no debate atual pela adoção de cotas raciais no Brasil).
A única relação que os referidos conflitos na Ásia ou na África poderiam ter com cotas raciais seria talvez o fato de que, em muitos casos, as contradições étnicas ou nacionalistas que elas visavam resolver terem sido insufladas pelos poderosos interesses geopolíticos do maquiavélico colonialismo das potências brancas ocidentais, que inventaram o racismo, este eficiente sistema de cotas ao contrário: divide et impera.
O mais curioso inclusive é que em sua inexplicável simplificação de um fato histórico tão notório Kamel, sabe-se lá por que razão, omite completamente o papel do invasor inglês, pivô evidente de toda aquela tragédia que, se previu algum tipo de cota, foram as contas macabras da fome e do extermínio.
Nem corpo mole nem mão beijada
Falando agora realmente de cotas raciais, o que teria a ver no discurso de Kamel a eventual ascensão social de um pequeno contingente de imigrantes chineses e japoneses na América com o racismo perpetrado pelos brancos americanos contra seus próprios cidadãos negros? Em que dados afinal Kamel se baseia para afirmar, tão categoricamente, que os emigrantes asiáticos na América teriam ascendido socialmente ‘apenas por esforço próprio’, sem nenhum tipo de mecanismo de promoção social que os estimulasse? Aliás, é muito forte e incômoda a sensação de que, ao insistir tão enfaticamente nesta tese de uma eventual eficiência oriental Ali Kamel, por extensão, possa estar sugerindo uma espécie de incompetência ou inferioridade negra, historicamente improvável e, logo, preconceituosa.
Algo parecido com esta perigosa analogia são as ilações que o jornalista faz sobre as cotas raciais nos EUA.
É bom que se recorde que foi muito árdua, complexa e, por que não dizer, controvertida a luta dos negros americanos por seus direitos civis, luta que foi a inspiração mais evidente do moderno conceito de ação afirmativa hoje em voga no Brasil e no mundo.
Não se pode dissociar os enforcados do Alabama, as grandes marchas pelos direitos civis e os assassinatos de Martin Luther King, Malcom X ou dos irmãos Kennedy das ações afirmativas ou leis de cotas que os precederam. Típico caso de ação e reação, causa e efeito, em suma. Desconhecer, subestimar ou ignorar a relação direta entre estes fatos seria o mesmo que tripudiar da história e de suas vítimas. Não houve, há que se frisar, corpo mole nem mão beijada. Nem lá nem aqui.
Intenção protelatória
Ao contrário do que surpreendentemente afirma Ali Kamel em seu artigo, o que fez o número de conflitos raciais crescer na década de 70 na América não foi a adoção das cotas mas, ao contrário, a violenta repressão policial estimulada pelos segregacionistas e demais ferrenhos opositores da integração racial e das ações afirmativas em geral (grupo no qual, infelizmente, Ali Kamel parece que de algum modo se coloca, levando Thomas Sowell de contrapeso).
Aliás, quando trata da questão das cotas nos Estados Unidos, Kamel omite também a enorme e segregadíssima população hispânica (sobretudo mexicanos e porto-riquenhos), além da árabe (sobretudo os muçulmanos, excluídos da vez no pós-11 de Setembro) e para os quais muitas ações afirmativas, por certo, ainda terão que ser empreendidas um dia.
Voltando enfim ao foco principal da questão, sejamos francos: o sistema de ensino no Brasil é, em todos os níveis, excludente em sua própria essência. Excluir, garantir a pouca farinha para o pirão de poucos, esta tem sido a sua principal razão de ser.
Delfim Neto, famoso ex-ministro da Fazenda no auge da ditadura militar, teria afirmado certa vez, acerca da extrema desigualdade na distribuição da renda no país, que era preciso primeiro ‘aumentar o bolo’ para só então distribuí-lo entre os despossuídos. A tese de Kamel de que ‘é preciso primeiro melhorar a qualidade do ensino básico’ para só aí, e pelos meios atuais, autorizar o ingresso de negros e pobres na universidade, vista por este prisma, parece ter esta mesma intenção protelatória.
Excedentes indesejáveis
É óbvio que será necessário melhorar a qualidade do ensino básico, mas uma coisa absolutamente não anula a outra. Há que se intervir radicalmente, e desde já, nos procedimentos de acesso à universidade pública, afim de demolir seus mecanismos de exclusão tão arraigados. Quebrar seus funis.
É óbvio que a adoção de cotas, neste como em outros casos, objetiva a correção de distorções eminentemente sociais. Ocorre no entanto que o fato de os negros serem as vítimas mais evidentes destas distorções faz com que as cotas raciais sejam um critério claramente pertinente, um grande facilitador na implementação destas políticas. O resto é tergiversação.
Sofismas na acepção da palavra, os procedimentos atuais que regulam o acesso ao ensino universitário por exemplo, notadamente os chamados exames vestibulares, são do mesmo modo excludentes por natureza, não representando, a rigor, procedimento de aferição de conhecimento algum que não seja a simples apreensão de senhas, regras e códigos de acesso, decodificados em apostilas.
São portanto o que o seu próprio nome diz: mecanismos ‘vestibulares’, portas reguladoras do acesso para os que tiverem mais ‘bala na agulha’, aqueles que, por ascendência socioeconômica (de certo modo o mesmo que sócio-racial no Brasil), terão o direito á educação plena que o Estado brasileiro não consegue a disponibilizar para todos, necessitando de, por meio destes eficientes mecanismos, excluir os excedentes indesejáveis.
Não compreenderam
Se há tão profundos níveis de desigualdade social no Brasil, é óbvio que semelhante sistema educacional não visa – ou não precisa visar – necessariamente educar, desenvolver país algum. Quem liga?
É por estas e outras que, se formos mesmo rigorosos quanto a isto, veremos que não existem ainda provas realmente cabais de que a universidade pública brasileira é excelente em si mesma. Um oásis de excelência a ser preservado da invasão de bárbaros pé-rapados.
É provável mesmo que, num ranking mundial, não estejamos em posição tão vantajosa quanto poderíamos estar se tivéssemos uma universidade realmente democrática. Como se sabe hoje que raça e condição econômica não são, de modo algum, sinônimos de maior inteligência ou maior aptidão intelectual, é óbvio que estamos utilizando, ainda hoje, mais de um século depois do fim da escravidão, algum tipo de complexo mecanismo de exclusão, que faz com que sejam admitidas na universidade uma maioria esmagadora de pessoas brancas e relativamente ricas, caracterizando um perfeito sistema de cotas raciais, portanto.
Se soubermos o verdadeiro sentido do conceito educação, concluiremos que o que temos no Brasil hoje é um sistema educacional ineficiente, além de doente e anacrônico. A sociedade brasileira está cheia de ‘mecanismos vestibulares’ como este (ações negativas). No serviço público, no esporte, na dramaturgia televisiva, e até no jornalismo, talvez. São estes mecanismos que as ações afirmativas visam demolir, independentemente de quaisquer outras ações que o Estado ou a sociedade venham a empreender em prol da democratização do país.
É isto que pessoas como o jornalista Ali Kamel não compreenderam ainda.
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Pesquisador de música, Rio de Janeiro