Este estudo bem feito, honesto e oportuno conta a história do Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo nos decênios de 1950 a 1970, registrando a mudança profunda que ocorreu nesse lapso de tempo no jornalismo, cada vez mais voltado para o imediato e o registro rápido. Partindo da boa fundamentação teórica e histórica, a autora analisa com precisão o material disponível, fazendo reflexões pertinentes sobre a função cultural da publicação estudada. Isto lhe permite mostrar qual foi o seu papel no momento e refletir sobre problemas da relação entre jornalismo e cultura. As conclusões são importantes e expostas com visão certeira sobre a natureza da imprensa cultural em nosso tempo.
Creio que Elizabeth de Souza Lorenzotti sentiu bem o significado do Suplemento no complexo cultural paulistano, do qual ele foi um episódio relevante entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a transformação vertiginosa que nos anos de 1960 e 70 faz da cidade uma metrópole, liquidando suas últimas tinturas provincianas.
Nesse processo O Estado de S.Paulo teve papel de alto relevo, como representante da burguesia ilustrada. A sua redação era um fermentário trepidante do qual saíram, direta ou indiretamente, grandes realizações, como, por exemplo, a Universidade e a sua renovadora Faculdade de Filosofia, frutos das idéias e da ação de Julio de Mesquita Filho e Fernando de Azevedo, colaborador do jornal. Outro colaborador, Paulo Duarte, levou as idéias do grupo a um prefeito esclarecido, Fábio Prado, resultando o Departamento Municipal de Cultura, marcado pela atuação profundamente modificadora e criativa de Mário de Andrade.
O Suplemento Literário pertence a essa constelação, e até a nossa revista Clima não lhe é estranha, pois a idéia de fundá-la veio de Alfredo Mesquita. Foi, portanto, um momento feliz da mentalidade liberal, fato que a autora estuda bem, inclusive mostrando a atuação de Julio de Mesquita Filho, sem esquecer a compreensão com que deu ampla liberdade ao Suplemento.
De fato, embora avesso às esquerdas, não discriminava colaboradores por motivo ideológico, aceitando o livre jogo das idéias. A análise da autora a respeito é correta, como é correta a maneira pela qual destaca como fator decisivo as concepções e a atuação de Décio de Almeida Prado, grande intelectual e grande homem de bem, que dirigiu o Suplemento de 1956 a 1966, imprimindo-lhe a marca da sua personalidade íntegra e harmoniosa.
Muito interessante é a análise da passagem do Suplemento Literário ao Cultural, em consonância com a mudança de mentalidade no jornalismo, e ainda aí se destaca o seu cuidado na análise das repercussões que ele sofreu das características técnicas e sociais de um momento de mudanças aceleradas. Neste sentido, assinala a atuação de Nilo Scalzo, sucessor de Décio de Almeida Prado, marcado pela mesma dignidade pessoal e a mesma segurança de critérios.
Em suma, o livro de Elizabeth de Souza Lorenzotti é uma contribuição que vai além do mero valor monográfico, pois constitui uma análise pertinente das relações entre jornalismo e cultura, à luz de um caso que soube estudar com rigor e competência.
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[do release da editora]
Um jornal de perfil conservador convida um intelectual socialista para criar um suplemento literário que conta com colaboradores de esquerda em sua redação. Surge uma publicação independente da linha editorial do jornal. Uma publicação não-jornalística, mas artística e literária inserida em um jornal: tudo isso constitui um desafio ao entendimento do processo histórico do jornalismo brasileiro.
Suplemento Literário: que falta ele faz!, da jornalista e pesquisadora Elizabeth Lorenzotti, resgata a história dessa publicação que se tornou um modelo de jornalismo cultural no país. Editado pela Imprensa Oficial, será lançado no próximo dia 14 de novembro, a partir das 17h30, logo após a abertura do Salão do Jornalista Escritor, no Auditório Simon Bolívar do Memorial da América Latina, em São Paulo.
Projetado pelo professor Antonio Candido de Mello e Souza, e dirigido durante dez anos por Décio de Almeida Prado (1956-1966), o Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, que circulou até 1974, representou uma ponte entre tradição e inovação.
O projeto esteve perdido durante anos e, recuperado, foi cedido por Antonio Candido à autora, fonte primária fundamental para sua dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, em 2002. A oportunidade da publicação de um livro baseado nesta dissertação deveu-se à comemoração, em 2006, do cinqüentenário do lançamento do Suplemento Literário e Artístico de O Estado de S.Paulo.
Projeto
Os jornalistas e pesquisadores sabem que é raro se conservar projetos originais de jornais, e tão detalhados como este, desde a pesquisa de preços até a seleção de colaboradores. Os maiores escritores, poetas, artistas plásticos do país passaram pelas páginas do Suplemento e, segundo o próprio Antonio Candido, pela primeira vez o trabalho intelectual na imprensa teve remuneração condigna.
O trabalho fala também sobre a revista Clima – onde, ainda estudantes, começaram a atuar na crítica cultural Antonio Candido, Décio, Paulo Emilio, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, entre outros, que depois se tornariam colaboradores do Suplemento Literário e de outros jornais.
Ao longo de sua existência o Suplemento esteve sempre atento aos movimentos culturais de importância. Nos seus primeiros dez anos, entre 1956 e 1966, editou 28 números especiais. O livro destaca alguns deles, num recorte que marca a gestão de Décio de Almeida Prado. Há fotos e reproduções de páginas do Suplemento como, por exemplo, o primeiro conto do jovem Francisco Buarque de Holanda, então com 22 anos, ‘Ulisses’.
Um capítulo especial do livro é dedicado à participação de artistas plásticos – já consagrados e/ou então iniciantes – como ilustradores, outro diferencial do Suplemento Literário, que com sua concepção avançada se constituiu em vanguarda nas artes visuais do jornalismo impresso da época.
O livro analisa as transformações sofridas pelo jornalismo cultural a partir dos anos 1950, quando a cultura de massas se impõe e, aos poucos, o espaço de veiculação da crítica é ocupado pela divulgação de produtos da indústria cultural.
Além de tentar contribuir para sistematizar uma experiência e acentuar uma fase importante do jornalismo no país, o trabalho resgata histórias e pincela perfis de personagens envolvidos naquela fase de ouro do jornalismo cultural brasileiro.
Sobre a autora
Elizabeth Lorenzotti nasceu em São Paulo, passou a infância em Poços de Caldas (MG) e vive em São Paulo. É jornalista profissional, graduada e mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalhou, desde a década de 1970, como repórter, redatora e editora de publicações como O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, sucursal paulista de O Globo, Editora Abril, Jornal da USP, imprensa alternativa e sindical. Foi professora do Curso de Pós-graduação Lato-Sensu em Jornalismo Cultural na Universidade Metodista de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação Lato-Sensu em Comunicação Jornalística da PUC-SP. Atualmente dedica-se à pesquisa na área de jornalismo literário.
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Ensaísta, professor universitário e crítico literário