Previsíveis como o noticiário sobre a oferta de pescado na Semana Santa e o preço das flores nos Finados, as pesquisas eleitorais mais uma vez se derramam pelas páginas políticas neste começo de temporada de busca do voto.
Mas, se o pesquisismo da mídia é inevitável, as folhas não precisavam – de novo – aproveitar para relaxar e gozar do pobre do leitor. Pois outra coisa não parece a forma como diante dele são despejadas as sopas de numerinhos e letrinhas sobre a cotação dos candidatos.
Elas são o que se queira, menos o que deveriam ser – nutritivas. Pois é como se fossem editadas sob a inspiração do Chacrinha, o que veio para confundir, não para explicar.
A receita é de um esquematismo atroz: porcentagens às pencas com uma gota de contexto, duas pitadas de interpretação instantânea e uma colher de aspas dos candidatos. Sem falar nas agressões ao português dos clichês que infestam as matérias acompanhantes, como ‘oscilou negativamente’, para dizer que, de uma sondagem para outra, o candidato perdeu pontos percentuais.
Em São Paulo, os números mais noticiáveis mostram que o tucano José Serra lidera e que a petista Marta Suplicy vai mal das pernas. Mas, no caso da prefeita, as letras das avaliações andam tão ou mais trôpegas.
A culpa pode nem ser dos intérpretes – o punhado de cientistas políticos e analistas de pesquisas muitas vezes entrevistados em cima da hora e de cujas tentativas de dar um sentido ao vaivém dos candidatos se publicam raciocínios truncados que fazem os seus autores parecer fabricantes de banalidades.
É verdade que alguns deles são mesmo chutadores eméritos, mas as dúvidas confessadas dos que se recusam a imitá-los sobre o que as pesquisas mostram – ou melhor, escondem – raramente chegam ao leitor. Ora, onde já se viu citar sabichões não sabem das coisas?
Resumo da ópera
Comparem-se as explicações em flocos sobre o caso de Marta nos jornalões paulistanos com o texto que ocupou parte da coluna semanal da jornalista Maria Cristina Fernandes, editora de política do Valor, na sexta-feira passada.
Começa assim:
‘A última pesquisa Ibope ouviu 243 pessoas que moram na cidade de São Paulo e têm renda de até dois salários mínimos. É neste conjunto de eleitores e não na antipatia, na rejeição feminina ou no trânsito caótico [algumas das explicações mais freqüentes na mídia] que está a chave para se compreender o declínio da prefeita Marta Suplicy nas pesquisas.’
O que ela fez foi somar 2 com 2. Tendo verificado que, de um ibope para outro, com apenas uma semana de intervalo, Marta perdeu 14 pontos naquele segmento da amostra, Maria Cristina se perguntou o que havia acontecido de impactante no país nesses dias. Não deu outra: passou o salário mínimo de 260 reais. Ou, como resume o título da coluna, ‘Marta encolhe à sombra do Planalto’.
É a verdade, toda a verdade e nada além da verdade? Não dá para saber. Mas, hipótese por hipótese, essa tem uma consistência calcada numa situação específica. Está, com perdão da palavra, ‘contextualizada’.
Não é preciso muito mais do que isso, em publicações que no dia seguinte servem para embrulhar peixe, para permitir que o leitor tire dos números não o pretensioso ‘tudo sobre’ de que se fala nas redações, mas uma ou duas pistas sobre o andar da carruagem eleitoral. Algo que lhe permita ir além das aspas dos políticos no noticiário da campanha.
Mas não. A idéia é saturar o coitado de ar quente, fazendo-o crer que se refestelou com um banquete. Exemplo disso foram as 22 tabelas que emolduraram a página A 6 da Folha de S.Paulo de 1º de julho. Elas trazem as qualidades e defeitos atribuídos aos candidatos a prefeito da cidade pelos entrevistados do DataFolha, com base em quesitos fechados do tipo ‘quem é o mais democrático’ (ou autoritário, honesto, antipático, realizador, experiente, moderno etc).
Depois, o DataFolha ‘procurou quantificar o peso de 14 atributos na definição do voto’ – o que exigiu, por sua vez, a publicação de mais dois gráficos, restritos a Maluf, Marta e Serra, representados por um quadrado, um triângulo e um círculo, enquanto um losango denotava ‘importância’, além de um espesso ‘entenda o gráfico ao lado’, de 28 linhas de coluna.
Trecho:
‘Os valores de cada candidato são calculados subtraindo a taxa dos que mencionaram o candidato da taxa dos que não o mencionaram (ou seja, dos que escolheram outros candidatos), adicionando 100 ao resultado. Por isso o índice varia 0 a 200’.
Disso tudo deu o que está no título ‘Para eleitor, Maluf é o mais ‘preparado’ e mais ‘corrupto’’.
Quem conseguiu reter as outras informações de todos os quadrinhos ficou sabendo também que, para os paulistanos:
**
Maluf é o mais autoritário, o mais realizador, mais preparado para cuidar do trânsito, mais preparado para cuidar da habitação, mais preparado para cuidar da limpeza, o que mais defenderá os ricos, o mais corajoso, o mais desequilibrado emocionalmente, o mais antipático, o que mais faz promessas que não pode cumprir e o mais inteligente.**
Serra é o mais democrático, mais preparado para cuidar da saúde, mais preparado para cuidar da educação, o que mais defenderá os pobres, o mais honesto e o mais simpático.**
Marta é mais preparad(a) para cuidar do transporte, (a) mais indecis(a), mais modern(a) e inovador(a).Muito bem. Palmas. Mas qual é a moral da história, o resumo da ópera, a serventia desse tour de force para o leitor que justifique o tempo, o dinheiro e o espaço consumidos pela enquete? Roga-se a quem souber que escreva para este Observatório.
Gato da madame
Do que este leitor tem conhecimento, a única utilidade desse quem-é-mais-o-quê foi inspirar a seguinte tirada da colunista Dora Kramer (Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo):
‘Pesquisa DataFolha (…) mostra José Serra em primeiro lugar no quesito simpatia. Donde se conclui que a prefeita Marta Suplicy, quando quer e se empenha, consegue até o impossível.’
Ainda não acabou. Na página seguinte, a Folha informa: ‘Um quarto dos paulistanos prefere obras a honestidade’.
A fonte do título são duas pesquisas do DataFolha, uma de março de 2000, outra de junho último. Abaixo, um gráfico mostram que o fator ‘proposta de governo’, que há quatro anos importava pouco mais apenas do que o fator ‘pessoa do candidato’ (44% a 40%), hoje pesa 23 pontos mais (54% a 33%). A mudança foi destacada no subtítulo.
O segundo gráfico, de onde o título foi puxado, mostra que 74% em 2000 e 71% agora preferem um prefeito que seja ‘totalmente honesto, ainda que faça menos’. E que 22% em 2000 e 25% agora preferem um prefeito ‘que faça muita coisa, mesmo que roube um pouco’.
Ponto número 1. Qualquer primeiranista de estatística sabe que tais variações são ‘ruídos’, ou, como o público aprendeu, estão ‘dentro da margem de erro’. Rienachangé, como diria Luis Fernando Verissimo.
Ponto número 2. Qualquer primeiranista de jornalismo sabe (façam figa) que 71 é menos do que 74 mas é muito mais do que 25. Logo, se disso deveria sair o título, o certo seria ‘Sete em 10 paulistanos preferem honestidade a obra’.
E o certo certíssimo seria ‘Propostas valem mais que pessoas dos candidatos’, porque aí sim há uma mudança acentuada na mentalidade do eleitorado diante de um tema importante – sobre o qual o texto nada teve a declarar, limitando-se a reproduzir os números, além de usar duas vezes o pedregoso verbo ‘priorizar’ (que devia fazer companhia aos funestos ‘disponibilizar’ e ‘direcionar’ no fundo do mar mais profundo).
É como na história do gato da madame de Millôr. A madame passou a vida tentando ensinar o gato a falar. Um dia o gato gritou, de repente: ‘Madame, foge que o prédio está pegando fogo!’ A madame deslumbrada, ficou repetindo: ‘O meu gatinho fala, o meu gatinho fala!’ O gato pulou da janela. Na rua, vendo o prédio todo em chamas, filosofou: ‘Pois é, fez de tudo para eu falar. Quando falei, não prestou a menor atenção.’
A Folha vive atrás de resultados interessantes de pesquisas. No dia que lhe entregam um, não presta a menor atenção. [Texto fechado às 16h40 de 3/7]