Dentre as primeiras manchetes publicadas no início de novembro, uma merece destaque: ‘O número de internautas residenciais no Brasil ultrapassou 20 milhões’. A nova marca foi divulgada na última quinta-feira, 1o de novembro, pelo Ibope NetRatings, empresa que analisa, entre outros dados, a ‘audiência’ da web brasileira. O positivismo subjetivo contido no aumento de 47% do volume de internautas, em comparação ao mesmo período de 2007, agradou muito. Na verdade, agradou tanto que, instantaneamente, a grande mídia se apropriou do contexto e concebeu uma sagaz máscara cor-de-rosa para tal informação.
Para ser sensacional, o fato, divulgado nas revistas de classe média, nos jornalões e nas rádios dos ouvintes (pseudo) intelectuais, tratou de fazer a ponte entre o ‘Brasil Em Desenvolvimento’ para o ‘Brasil Globalizado’. Pouco importa a realidade da abordagem, a profundidade dos fatos ou a compreensão holística do significado da mensagem. O único fator relevante, para os jornalistas, para as empresas de mídia e para os próprios consumidores é absorver algo que remeta ao status quo da auto-compreensão. Ou seja, a versão 2.0 da caverna de Platão, do Simulacro de Baudrillard, do Espetáculo de Debord.
Deste modo, é óbvio que a notícia não será: ‘O número de internautas domiciliares brasileiros atingiu pela primeira vez a marca de 20,1 milhões no mês de setembro de 2007’. Mas algo bem melhor, bem mais positivo e empolgante como: ‘Brasil: Cresce o número dos incluídos digitais’, ou ‘Brasil entra para a Era da Informação ao atingir a marca de 20,1 milhões de usuários na rede mundial de computadores’. Há ainda, algo mais bombástico: ‘Brasileiros passam 22 horas/mês na internet e ultrapassam os norte-americanos, com 18 horas e 54 minutos/mês’.
Reescrever a história?
É inquestionável que, conectado à internet, qualquer indivíduo terá a oportunidade de mergulhar em um universo democrático como meio de comunicação, de acesso à informação, de produção de conteúdo e de integração global. Porém, para que haja tal uso antropofágico é preciso muito mais do que um carnê, com 20 parcelas de R$ 100, para adquirir o computador popular.
Existem vários fatores, de natureza sociológica e antropológica, que precisam ser analisados em profundidade, como por exemplo: o descontentamento e a falta de perspectiva no mundo físico estaria conduzido as pessoas a dedicarem horas de imersão em atividades virtuais dentro de sua própria casa?; o relacionamento familiar teria desmoronado a ponto dos membros de um núcleo optarem por interagir com estranhos, mediados por imagens (muitas vezes falsas) e códigos binários, a conversarem e trocarem experiência com seu próximo?; em uma sociedade imagética, na qual só o que é bom aparece, ter o seu lugar no orkut, no myspace, no youtube, no fotolog seria uma maneira legitimar a existência?
Porém, a grande mídia, sem memória, simplesmente não correlaciona dados importantes e recentíssimos, fornecidos pela mesma empresa-fonte da manchete deste novembro. Ou será, que como em 1984, livro de George Orwell, o importante é sempre reescrever a história? Há nove meses, no final de fevereiro, o Ibope NetRatings divulgou a categoria que obteve maior crescimento de unique vistors no Brasil. Na ‘Era do Apareço Logo Existo’, o aumento dos acessos residenciais registrados em 158% nos compartilhamento de vídeos é algo compreensível e previsível.
‘Britney Spears’ e ‘David Beckham’
De acordo com os dados divulgados, o número de acessos em portais como Videolog e Youtube atingiu 5,5 milhões de unique vistors, que gastaram 25minutos/mês, assistindo ou inserindo vídeos nos mesmos. Vídeos que, na maioria das vezes, agregam o nada a coisa alguma. Produtos da mídia digital que proporcionam o apogeu da função narcotizante. Exemplos ilustrativos bem claros são vídeos como este (acessado por 3.825.292!), e este.
Na época, o Ibope NetRatings também divulgou os sites em que o internauta residencial brasileiro permanecia por mais tempo. Já que estamos em novembro de 2007, em um país de ‘incluídos digitais’, deveríamos reescrever (à la 1984) como resultado ideal uma lista de sites de: universidades, institutos de pesquisa, planos de ações globais e projetos sociais. Mas (ainda) o Brasil não atingiu esse patamar tecnológico, ou talvez ideológico.O resultado apontou os portais de relacionamento em primeiro lugar, detendo 4horas e 8minutos/mês do tempo dos internautas residenciais brasileiros. E para aqueles que acham que tais comunidades são uma alternativa para a pluralidade e para o debate de idéias múltiplas, vale a pena analisar minuciosamente o elaborado conteúdo dessas discussões, com 981.940 membros. Assustador.
Talvez, dada a obsolescência do ínfimo período de nove meses na ‘Sociedade do Instantâneo’, seja apropriado citar algo mais recente. No mês passado, setembro de 2007, o Google divulgou a palavra mais procurada pelos brasileiros em seu mecanismo de busca: ‘sexo’. Ou seja, pode-se dizer que o resultado não tem muito a ver com a essência da ‘inclusão digital’. Outro fato interessante de cunho sócio-cultural esplêndido, de que o Brasil também faz parte: a América Latina lidera as buscas pelos termos ‘Britney Spears’ e ‘David Beckham’.
Atrofia e morbidez
Para que o Brasil possa se apropriar do termo com legitimidade, seria necessário percorrer um longo caminho. O primeiro passo, certamente, implica na adoção nacional do software livre. Contudo, a ação-decisão rompe o perímetro da disputa Windons versus Linux. A questão permeia princípios éticos profundos de liberdade para criação e execução. Ou seja, o software livre confronta algo maior: os direitos suprimidos desde Canudos.
Na edição do mês de outubro de 2007 da revista Caros Amigos, o repórter Marcos Zibordi explicitou as dificuldades sofridas pelo único curso superior de Tecnologia em Software Livre oferecido no Brasil, que corre o risco de ser fechado. Pelo andar da carruagem, e graças às diretrizes burocráticas do MEC, as máquinas que deveriam libertar, continuarão a alinear convenientemente. Como afirma o sábio Eric Hobsbawm: ‘Um povo sem saber, é um povo sem poder’. No ano 2000, o escritor italiano Umberto Eco, durante uma entrevista ao Libération, afirmou: ‘Para permitir que todos atinjam a inclusão tecnológica e digital é preciso aprender a programar, e não apenas a usar o software.’ Ou seja, a ‘inclusão’ é uma farsa, que não deve ser aceita como verdade – e muito menos multiplicada, como informação verossímil.
Antes que houvessem vestígios da globalização, em 1854, Henry Thoreau escreveu em sua obra Walden sobre a necessidade intrínseca que afligia o ser humano: a comunicação. Sob a perspectiva de Thoreau, o homem sempre almejaria conhecer outras realidades, outras pessoas, mesmo que não tivesse o que dizer. Hoje, a tecnologia aliada aos interesses supressores do livre-mercado possibilitou a realização deste sonho antigo. Porém, contraditoriamente, parece que o mais sublime dom do ser humano, a razão, encontra-se em processo de atrofia e morbidez. E assim, caminhamos para inclusão nesta realidade global.
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Jornalista com especialização pela Faculdade Cásper Líbero em Jornalismo Multimídia na Pós-Modernidade