Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O vazio político na Globo

Troca de farpas entre parlamentares de partidos da base do governo federal, acusações de incompetência entre antigos aliados de centro-direita, promessas inexeqüíveis e federalização de questões municipais. Esse, grosso modo, pode ser o resumo do primeiro debate entre os cinco principais candidatos à prefeitura do Rio, promovido pela Rede Globo na manhã de quinta-feira (1º/7).

Os embates eleitorais na televisão têm condicionantes bastante conhecidos. Investidas do papel de instância máxima de representação da atual esfera pública, as emissoras sobredeterminam a forma e condicionam o conteúdo do que será discutido. O esvaziamento do discurso político, preterido por uma fala gerencial, é a garantia de legitimação de quem organiza o espetáculo. A mídia, para ser fiadora de um processo teatralizado, precisa depurar a política de suas contradições. Zela pela saúde de um cadáver sorridente. E com hora marcada para deixar o proscênio.

Dessa vez, no entanto, a TV Globo se superou. Marcado para as 11h da manhã, o debate mais assustou o público infantil do que atraiu eleitores. No lugar dos personagens de desenhos animados assomaram à tela Jorge Bittar( PT), César Maia (PFL), Luiz Paulo Conde( PMDB), Marcelo Crivella (PL) e Jandira Fegahali (PC do B). Certamente um menino jamais se esquecerá do prefeito, candidato à reeleição, pedindo dez segundos de silêncio em homenagem ao ex-governador Brizola, mas sem dúvida deve ter se decepcionado com a falta de superpoderes dos atores políticos. O anedótico do mundo institucional não transpõe tão facilmente o senso crítico de uma criança.

Registros secundários

Era de se esperar portanto que os telejornais reproduzissem trechos do debate a que poucos cidadãos assistiram.Não foi o que aconteceu – e é nesse ponto que gostaríamos de levantar algumas questões que podem servir de norte à reflexão do leitor deste Observatório. Por que a TV Globo não noticiou o conteúdo de um produto fabricado por ela própria? Será zelo excessivo para não ser acusada de, na edição, favorecer uma candidatura ? Uma espécie de ‘trauma collorido’? Ou, num exercício exemplar, mostrou o que é notícia dentro da política do espetáculo; e qual a ordem hierárquica vigente no campo jornalístico televisivo.

A notícia,definida como ‘relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante e este, de seu aspecto mais importante’ (Nilson Lage, Ideologia e Técnica da Noticia) contém critérios ideológicos que não podem ser ignorados. O noticiário , tanto da edição noturna do telejornal local RJ-TV quanto do Jornal Nacional, não deixa dúvida. A política deve ser vendida decantada de sua substância vital: discursos que explicitem uma práxis. Necessita ser apresentada como amenidade que não angustie o telespectador com contradições ideológicas. Um não-cidadão que vez por outra vira investigador imaginário de telenovela

Na edição de 1/7, o Jornal Nacional descrevia o clima dos debates realizados em 11 capitais:

‘Os flashes estouram. Registram. Mas nem tudo. Existe a linguagem oculta dos candidatos. Os sinais. Os dedos que apontam. As mãos que se torcem. A prece disfarçada. Até aquecimento de dedos. O copo d´água alivia a boca seca. É melhor dar mais uma olhada nas anotações. Tudo tem que estar perfeito. Nem o banco pode sair do lugar’.

É o cenário de um show. Os atores não são de nenhum núcleo do Projac. Seus diretores de cena também não. Mas que não paire nenhuma dúvida quanto ao script. Ele é propriedade da TV Globo e não tem qualquer compromisso com ação democrática. Os atores políticos são fragmentos que só adquirem logicidade numa estética exterior ao seu campo de origem.

Mais à frente, o casal de jornalistas que apresenta o telejornal de maior audiência da emissora concluía em tom ameno:

‘Durante os debates pelo Brasil, os candidatos fizeram perguntas entre si, falaram sobre temas predeterminados, escolhidos por sorteio, e também debateram assuntos de livre escolha. Ficar de pé tanto tempo cansava e, na hora das respostas, cada segundo contava. Para fechar o debate, cada candidato falou diretamente aos eleitores. Era mais um passo no processo democrático brasileiro’.

Nunca a desinformação transitou com tanta desenvoltura por uma redação. A não-notícia deu o tom do mais importante telejornal da Rede Globo. O que foi dito pelos candidatos, em que divergiram e quais pontos julgaram mais relevantes são registros absolutamente secundários. Mas há quem possa argumentar que, pelo número de cidades envolvidas, isso certamente caberia às edições dos telejornais regionais.

Táticas do jogo

No RJ-TV, logo após a novela Cabocla, o debate foi relatado de forma similar. Como ilustração, transcrevemos um trecho do noticiário local:

‘ Os candidatos e seus assessores começaram a chegar à Central Globo de Produção duas horas antes do debate. Estavam sorridentes, cumprimentaram funcionários, e foram direto para os camarins. Marcelo Crivella, do PL, sentou-se logo na cadeira de maquiagem. Aproveitou para fazer aquecimento das cordas vocais. Luiz Paulo Conde, do PMDB, chegou antes do paletó que usaria no debate. Mas não parecia preocupado com o atraso e deu até gargalhadas. Ele mostrou em primeira mão o novo par de óculos. E foi por ter perdido os óculos que a candidata do PC do B, Jandira Feghali, teve que mandar ampliar a letra dos documentos que trouxe para o debate. ‘Botei um corpo maior na letra porque a distância eu não enxergo mesmo’, revelou Jandira. Ela não largou os papéis nem durante a maquiagem. Jorge Bittar, do PT, chegou comentando futebol, da Europa. ‘Portugal ontem fez três gols não é verdade’, disse Bittar, errando no resultado do placar do jogo entre Portugal e Holanda pelas semifinais da Eurocopa, que terminou 2 a 1 para os portugueses. Depois, Bittar mostrou a pasta com recortes de jornais e documentos, base de eventuais perguntas para os outros candidatos’.

Cordas vocais aquecidas, óculos perdidos, candidato que precede a chegada do paletó e outro que erra no total de gols de um jogo da Eurocopa. Eis as informações sobre a chegada dos contendores. Nada sobre idéias, programas ou planos

E quanto ao conteúdo? O que disseram, afinal?

‘Durante o debate, os cinco candidatos fizeram perguntas entre si. Em dois blocos, temas predeterminados foram escolhidos por sorteio. Em outros dois blocos, os candidatos puderam fazer perguntas sobre qualquer assunto. No último bloco os candidatos deixaram suas mensagens para os eleitores. Para todos, o resultado foi positivo’.

Pronto, a TV Globo se esmerou em suspenses folhetinescos. Depois de semanas perguntando ‘quem matou Lineu?’, o telespectador deve estar intrigado com mais esse mistério: o que foi dito no debate?

Na edição do jornal O Globo de sexta-feira (2/7), todas essas perguntas estão respondidas. E, pelo texto impresso, percebe-se que uma abordagem isenta nos telejornais seria perfeitamente plausível. Houve, de fato, uma preferência pelo espetáculo que leva à inação e apatia no veículo que conta de fato no jogo hegemônico: a televisão. O que fazer ante esse quadro?

Talvez seja o caso de repetir as palavras do ministro Tarso Genro em ensaio publicado na CartaCapital de 2 de junho: ‘É preciso reconstruir uma esquerda capaz de, por dentro da política do espetáculo, dele sair para uma ação democrática de longo prazo’.

Aguardemos o próximo debate que será realizado na noite de 30 de setembro. O show não pode parar. Nós podemos. Pelo menos para refletir sobre as táticas a empregar no jogo político. Isto requer engenho – e muito.

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Professor-titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio