As duas revistas semanais mais vendidas do país dedicaram nesta semana amplas reportagens sobre corrupção. Na Veja, o assunto rendeu capa, com a manchete ‘Por que eles não ficam presos’, e o subtítulo ‘Nunca se investigou tanto a roubalheira, mas condenar corruptos ainda é coisa rara no Brasil’. São 13 páginas contendo, além da matéria principal, seis perfis de acusados de corrupção, um box dedicado à atuação do Ministério Público e uma reportagem sobre Law Kin Chon, ‘tido como o maior contrabandista do Brasil’, nas palavras do semanário da Abril.
Já na concorrente, editada pela Editora Globo, o assunto mereceu uma chamada de capa (‘Impunidade – como a caça aos corruptos pode ficar mais difícil’) e cinco páginas, incluindo aí uma pequena entrevista com o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.
As duas revistas trataram do mesmo assunto, na mesma semana, mas com focos diferentes. A matéria de Época é na verdade uma peça de defesa da atuação do Ministério Público nas investigações de casos de corrupção. O semanário parte da apresentação do caso do deputado federal Remi Trinta (PFL-MA), acusado de desviar verbas do Sistema Único de Saúde, que recorreu ao Supremo Tribunal Federal pedindo que os juízes considerem inválidas as provas obtidas contra ele justamente por elas terem sido obtidas pelo Ministério Público Federal, e não pela polícia.
O julgamento do recurso do deputado no Supremo está por acontecer e a revista aproveitou o gancho para defender a tese de que se o STF der ganho de causa a Remi Trinta, o combate à corrupção no Brasil terá sofrido uma grande derrota – já que a partir da decisão apenas as polícias terão o poder de investigação. Apesar de defender essa tese, a revista não se furtou a apresentar argumentos contrários na reportagem e ainda ofereceu um box para um especialista do porte do professor Reale Jr. explicar as razões pelas quais é contra a investigação dos promotores.
Não deixa de ser curioso notar que Época defende uma instituição que tem lhe garantido boas matérias. Foi por intermédio do Ministério Público, como revelou este Observatório, que a revista obteve em primeira mão as fitas que renderam matérias de capa sobre o ex-assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz. As fitas foram vazadas por um procurador supostamente ligado ao PSDB, partido que tinha óbvios interesses políticos no surgimento de escândalo de grandes proporções que afetasse a credibilidade do governo Lula.
O preconceito da Veja
Já a reportagem apresentada na revista Veja é o que no jargão jornalístico se chama ‘matéria fria’. Poderia ser publicada nesta semana ou há alguns meses. Em um texto rebuscado e cheio de floreios – marca da revista –, a reportagem mostra que há corruptos presos e outros que estão soltos. Revela o caminho das pedras que os corruptos ricos normalmente utilizam para se livrarem das grades e põe a culpa da impunidade nos pobres dos portugueses, que nos legaram um código processual inspirado no direito lusitano…
Como costuma ocorrer em matérias da Veja, o ponto forte não é a profundidade da reflexão, mas a forma como a reportagem é apresentada, cheia de fotos e perfis de famosos que foram acusados de crimes de colarinho branco, tudo acompanhado de um texto fácil de ler. Até um infográfico com tubarões – talvez a analogia mais rasteira para corruptos – a revista preparou.
Tudo somado, não há fatos concretos para provar a tese da matéria (‘nunca se investigou tanto a roubalheira’) ou responder a questão da capa (‘por que é difícil prender corruptos’). Além disso, a retranca destinada a Law Kin Chon é escandalosamente preconceituosa: a revista o chama por diversas vezes de ‘o chinês’, quando na verdade ele é naturalizado brasileiro, e aposta no clichê ‘negócios da China’, como se naquele país qualquer transação comercial necessariamente passe por algum grau de corrupção. O próprio título da retranca – ‘Corruptor de policiais’ – é uma temeridade, pois o senhor Chon até agora não foi condenado pelo crime que a revista lhe imputa. De fato, Law Kin Chon foi preso em flagrante por tentar corromper um deputado federal, o que já é suficientemente grave, mas, até agora, como está escrito na própria revista, o que existe são suspeitas e indícios contra ele, e não provas. Não se trata de defender o ‘maior contrabandista do Brasil’, como quer Veja, mas de cobrar da imprensa que tenha o cuidado de não promover linchamentos morais.
Ao fim e ao cabo, as duas matérias sobre corrupção das maiores semanais são, cada qual a seu modo, insuficientes. O debate sobre a corrupção no Brasil precisa ser travado não na superfície, mas em profundidade. Época, em que pese a defesa de seus próprios interesses, levantou uma questão importante – a do papel do Ministério Público. Veja nada de novo apresentou, apenas reforçou estereótipos – do chinês malicioso e violento ou o da infelicidade de o Brasil ter sido colonizado por um país atrasado como Portugal (e não pela Inglaterra, como provavelmente gostariam muito os proprietários da Abril).
O debate sobre corrupção é muito mais complexo e passa, como qualquer estudioso do assunto está cansado de saber, pela imensa desigualdade econômica vigente, que fornece os elementos básicos para que a corrupção aflore. Afinal, é a partir da imensa riqueza de poucos e sobre a desalentadora miséria de muitos que surgem as oportunidades para a corrupção ganhar o padrão endêmico que tem no Brasil. E sobre esses aspectos da questão, Época e Veja, como era de se esperar, se calam.