Terminou domingo (11/11) a 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, iniciada dia 26 de outubro. Desta vez o patrono foi o professor e escritor Antônio Hohlfedlt, que foi vice-governador do Rio Grande do Sul – o titular era Germano Rigotto – até a ascensão da atual governadora Yeda Crusius, a primeira mulher a ser eleita para o cargo naquele estado.
No Rio Grande do Sul, para o bem e para o mal, as letras e a política sempre tiveram ligações muito próximas, por força da reconhecida politização dos gaúchos. O ex-governador circulava ao lado do patrono, sendo cumprimentado por muitos, enquanto nos arredores da Praça da Alfândega, onde se realizava a Feira, a atual governadora era duramente criticada em megafones da CUT por suas propostas de aumentar impostos. Segundo os críticos, na campanha ela propusera justamente o contrário.
Logo na abertura, dia 26/10, aparecia a dimensão internacional da Feira, que tem procurado, desde os fins das ditaduras na América Latina, aproximação com vizinhos como Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Assim, certas ações da Feira eram realizadas simultaneamente com algumas da 27ª Feria Internacional del Libro de Santiago.
Voltando da Feira do Livro de Porto Alegre, vou lembrando de quando conheci a pessoa que liderou sua fundação, Maurício Rosenblatt. Estávamos na casa de Josué Guimarães, era o ano de 1977. A Feira estava então em sua 23ª edição.
De ascendência judaica, era baixinho, simpático, estava sempre sorrindo. E soube que tinha sofrido muito no passado. Maurício Rosenblatt – todos que ouvi falarem seu nome, sempre o pronunciavam completo, ainda que fossem seus amigos – faleceu em 1988.
Fio de voz
Quando o conheci, ele presidia, já por quatro biênios seguidos, a Câmara Rio-Grandense do Livro. Depois dizem que reeleição não presta. Não presta se o sujeito não faz uma boa gestão. Se faz, deixemos que repita, como se fosse uma boa sobremesa.
No avião que me traz de volta ao Rio, vou memorando as perdas. Quem mais eu encontrava na Feira e que agora não encontro mais? Para mim, a falta mais doída é a de Josué Guimarães.
Meu Deus, o tempo passa, como diria o locutor esportivo Fiori Gigliotti: ‘Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo’, dizia ele antes de iniciar a narração de qualquer jogo, para concluir: ‘Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo’. Quando informava o tempo decorrido é que dizia ‘o tempo passaaaaaa’. Em minha memória de menino ficou para sempre o aviso ‘o tempo passaaaaaaa’.
Na casa de Josué havia um gato branco grandão, chamado Senador. Nydia, esposa do escritor, é quem dava o nome completo do gatão: Senador Paulo Brossard de Souza Pinto.
Paulo Brossard brilhava no Senado, em altas polêmicas com Jarbas Passarinho, em embates de alto nível, grande retórica e refinamento vocabular.
Quem mais não está na Feira? Meu querido professor Guilhermino César, poeta e prosador, o único professor que mereceu um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado ‘O Seqüestro de Guilhermino César’: ‘Refocilávamos em orgias/ com a ninfa de espuma e seios-orquídea/ chamada Literatura/ nosso maior amor e perdição’.
Moysés Velinho também não está. Quando o cineasta Sylvio Back e eu o entrevistamos para o roteiro do longa-metragem República Guarani (prêmio de melhor roteiro no Festival de Cinema de Brasília, em 1982), ele estava com um frágil fio de voz. Era o ano de 1979. Morreria no ano seguinte. Ao chegar ao estúdio, um técnico modulou aquele fio de voz, que virou tonitruante como se falasse Júpiter ou rugisse o leão da Metro.
Acesso à leitura
E sabem que também não está? Caio Fernando Abreu, que nasceu em 1948. O tempo passaaaaa. Caio morreu em 1996. Teve uma coragem danada. Estava com Aids e proclamou em sua coluna no ‘Caderno 2’ do Estado de S.Paulo que tinha a doença. Todos elogiaram a sua coragem.
Mário Quintana, que numa das feiras se apaixonou por Bruna Lombardi, também não está mais, desde 1994. Barbosa Lessa, fundador dos CTGs, Centros de Tradição Gaúcha, partiu em 2002.
Quem não está mais também é o historiador Décio Freitas. Quando ele faleceu, em novembro de 2004, Voltaire Schilling escreveu:
‘Ativista da imprensa gaúcha e brasileira por bem mais de meio século, consagrou-se como um notável e erudito historiador das insurgências populares do Brasil colonial e imperial, especialmente da revolta de Zumbi dos Palmares. Manteve uma das mais freqüentadas colunas do jornal Zero Hora de Porto Alegre, com a reputação de ser um dos maiores intelectuais brasileiros em atividade’.
Ainda segundo o mesmo Voltaire…
‘Décio Freitas foi acima de tudo um indignado, um intelectual sinceramente tocado pelas desgraças humanas. Apaixonado pelas coisas do Brasil, enfurecia-o a nossa complacência com a desigualdade, com a pobreza e com a miséria que nos cerca’.
Havia novos intelectuais indignados nesta 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, mas sua indignação dificilmente foi além da mídia gaúcha, pois a mídia nacional tratou aquele importantíssimo evento como se fosse algo para ser pautado num jornal de bairro, ignorando por completo o que ali se passou.
Foi uma pena, pois a relação de escritores, leitores e livros com editoras, distribuidores, livreiros, internet, especialmente os blogs, foi tema de debates incandescentes sobre os novos lugares de escritores e leitores num Brasil que aparentemente democratizou o acesso à leitura, pois tudo está na internet, mas não para todos.
Ninguém sabia
A mídia poderia ter feito da 53ª Feira do Livro de Porto Alegre um momento privilegiado de discussões que ampliariam as perigosas ligações que os letrados têm tido com a reorganização do poder que se processa no Brasil, especialmente depois de um quase iletrado, Luiz Inácio Lula da Silva, ter derrotado o letrado mais bafejado pela mídia, o professor Fernando Henrique Cardoso, que antes o derrotara duas vezes, com o famigerado recurso da reeleição, tão criticado depois no outro, que não fez mais do que repetir o antecessor.
Padres e letrados estiveram na origem de nossa formação como país, nação, império, república. O processo continua, mas os perfis mudaram muito. Enquanto a mídia não levanta questões tão prementes para o debate, escritores eleitores contemplam desolados a lista dos mais vendidos: não há um único romancista, contista, poeta ou ensaísta referencial nessas listas. E as seções literárias, com raras exceções, seguem dirigidas por quem assegura não estar acontecendo nada de relevante e por isso não pauta nada!
Já fizemos este filme em outras seções, em outros tempos. Quando caiu o Muro de Berlim, ninguém sabia de nada também! Outros muros estão ameaçados, mas outra vez pela mídia jamais saberemos de nada! E revistas e jornais querem leitores. Para quê?
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br