‘Os grandes jornais brasileiros têm prioridades semelhantes, uma ou outra diferença devido ao projeto editorial ou à localização geográfica, mas em geral as pautas são muito parecidas. Uma forma de perceber as prioridades é acompanhar os espaços a elas reservados, a visibilidade que obtêm e os recursos que os jornais despendem para cobri-las.
Essa observação me ocorreu a propósito da cobertura da eleição presidencial na Venezuela. O país vizinho e seu presidente, Hugo Chávez, viraram assunto obrigatório para os jornais brasileiros há muito tempo. Chávez é tratado, em geral, muito criticamente. Basta lembrar o início do editorial da Folha de terça-feira, ‘Tensão na Venezuela’: ‘Não resta dúvida de que a Venezuela estará melhor no dia em que conseguir se livrar do presidente Hugo Chávez (destaque meu), mas é preciso que o caudilho deixe o poder por força do resultado das urnas, e não por meios estranhos à democracia’.
O acompanhamento do que ocorre naquele país ficou mais freqüente depois que Lula assumiu a Presidência. Volta e meia há comparações entre os dois governos, que se pretendem de esquerda. A tensão entre a Venezuela e os Estados Unidos (Chávez e Bush) e o enfrentamento entre Chávez e os partidos de oposição são rotineiramente traduzidos como ameaças à democracia e transportados para a realidade brasileira.
Por todas essas razões, era de esperar que a eleição legislativa ocorrida no domingo passado merecesse uma atenção especial dos jornais. Era uma boa oportunidade para a publicação de reportagens exclusivas e de análises com pontos de vista diversos sobre o que vem acontecendo naquele país nos campos político, econômico e social, sem o filtro das agências internacionais de notícias.
A eleição ocorreu no domingo. As reportagens da Folha nos dias anteriores foram feitas a partir dos despachos das agências. O primeiro relato do repórter enviado a Caracas só saiu no dia da votação. A Folha teve informações próprias apenas durante três dias. Na quarta-feira, o noticiário já era novamente produzido pelas agências.
Nenhum jornal brasileiro tem hoje uma boa rede de correspondentes estrangeiros, e as dificuldades para enviar jornalistas em missões no exterior são comuns a todos. O problema da cobertura das eleições venezuelanas não foi só da Folha. ‘O Estado de S. Paulo’ publicou a primeira reportagem do seu enviado na sexta-feira, dia 2. Mas na quarta-feira voltou às agências. ‘O Globo’ nem sequer mandou repórter para Caracas.
O problema não é só em relação à cobertura internacional. Como já vimos em outras ocasiões, a cobertura fora do eixo Brasília-São Paulo-Rio continua rarefeita. Quando há deslocamento para coberturas especiais, os repórteres chegam atrasados e ficam pouquíssimo tempo.
A distribuição dos jornalistas enviados pela Folha para coberturas especiais entre sábado, dia 3, e anteontem ajuda a entender um pouco as tais prioridades a que me referi no início deste texto: o jornal teve um repórter com passagem rápida por Caracas (eleição venezuelana), três cobrindo jogos finais do Campeonato Brasileiro de futebol (Goiânia e Curitiba), dois em Leipzig (na Suíça) para acompanhar o sorteio da Copa do Mundo de futebol, duas em Montevidéu, para a cobertura da cúpula do Mercosul e uma em Belém, para a cobertura do julgamento de dois acusados pelo assassinato da freira Dorothy Stang.
Ou seja, cinco em futebol, três em coberturas de política e economia internacionais e uma no julgamento da freira.
O caso do assassinato da religiosa revela um outro aspecto das coberturas: a falta de continuidade. Pesquisa feita pelo Banco de Dados da Folha mostra que antes da morte da freira os conflitos na região de Anapu eram praticamente ignorados. Foram encontrados dois pequenos registros em 2004. Ela morre no dia 12 de fevereiro e a cobertura é intensa, com cinco repórteres enviados para a região em momentos diferentes, até o final do mês. Em março, o noticiário começa a rarear e depois que o assassinato completa um mês o assunto some, exceto por uma ou outra notícia esparsa. Volta agora, com o julgamento.’
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‘Olhos estrangeiros’, copyright Folha de S. Paulo, 11/12/05.
‘O jornalista Matías Molina foi diretor da ‘Gazeta Mercantil’ e correspondente em Londres, é diretor de análise de informação internacional da Companhia da Notícia e escreve, desde 7 de outubro, uma série de reportagens no suplemento ‘Eu &’, do jornal ‘Valor’, a respeito dos principais diários do mundo.
No primeiro texto da série, ‘A leitura diária da elite mundial’, ele resumiu os aspectos comuns que encontrou em jornais como ‘The New York Times’, ‘Financial Times’, ‘The Wall Street Journal’, ‘Le Monde’, ‘El País’ e outros do mesmo padrão no Japão, na Alemanha e na Itália.
‘O mais importante é que são lidos por uma elite, cuja opinião ajudam a formar e, por sua vez, são influenciados por ela. Alguns são considerados porta-vozes de uma burguesia esclarecida e outros contribuem para o debate intelectual. Mas todos eles respeitam a inteligência do leitor e mostram um grande interesse pelos assuntos internacionais, os negócios globais, as questões culturais, e uma preocupação pela coisa pública. Suas opiniões são bem elaboradas. Têm uma apresentação gráfica sóbria, sofisticação lingüística e apelo cosmopolita (…). Tentam apresentar um quadro dos eventos, não um mosaico confuso. Mas, apesar de sua influência, os melhores jornais mantêm um salutar distanciamento dos governos do dia e resistem à tentação de sentir-se parte do poder. A imprensa de elite sempre teve uma relação tensa com o poder, e o poder político mantém uma atitude ambivalente com ela. A relação vai da desconfiança ao respeito e passa com freqüência pelo medo e pelo desprezo. Mas uma coisa que o poder não faz é ignorar a influência desses jornais.’
Quis saber de Matías Molina como avalia os maiores jornais brasileiros em relação a esta elite mundial. Sua observação se fixou num ponto, a rede de correspondentes.
‘Um detalhe, na comparação dos jornais brasileiros com os grandes jornais do mundo, é o emprego de correspondentes. Nos anos 1970 e começo da década de 1980, a imprensa brasileira tinha correspondentes próprios em diversas capitais. Isto mudou. O Brasil vê hoje o mundo através de olhos estrangeiros. Isto em parte, é inevitável, dado o custo de manter uma rede própria, mas colocar alguns jornalistas de alto nível em pontos estratégicos ajudaria a imprensa a ter uma visão própria dos grandes temas, não apenas uma visão traduzida.’
O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva tem avaliação crítica semelhante em relação à Folha. Ele acaba de lançar o livro ‘Mil Dias: Seis Mil Dias Depois’ (Publifolha) e no prefácio faz uma retrospectiva do ‘Projeto Folha’, do qual participou ativamente na sua implantação, entre 1984 e 1987.
‘O carro-chefe do grupo, a Folha, não tem passado imune pela tormenta. Dos grandes anos da década de 1990, muitas das conquistas editoriais foram abandonadas. Por exemplo, a rede de correspondentes internacionais, que vinha sendo característica marcante do jornal desde a segunda metade dos anos 1970 e que chegou ao seu auge no início da década de 1990. Quando eu fui para Washington, a Folha tinha sete correspondentes nos EUA, outros tantos na Europa, além de diversos mais em outras partes do mundo. A cobertura internacional independente foi uma das primeiras áreas drasticamente afetadas pelos cortes de custos que reduziram equipe e gastos durante muitos anos e que tiveram provavelmente seu momento mais traumático em meados de 2004, quando muitos dos melhores jornalistas do grupo que havia dado partida ao ‘Projeto Folha’ 20 anos antes foram desligados da equipe pela imperiosa necessidade de conter despesas.’’