Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem acredita nas cartas do leitor?

Na década de 1950, seria muito difícil que a opinião de qualquer leitor chegasse a um jornalista ou editor de alguma publicação brasileira. Não havia e-mail, nem era comum o uso do telefone – e o cargo de ombudsman, embora inaugurado no Japão em 1922, chegaria bem mais tarde no Brasil. Foi nessa época que apareceram por aqui as primeiras seções de cartas de leitores, trazidas pelos jornais Folha da Manhã e O Estado de S.Paulo.

Meio século depois, sofridas todas as mudanças e ajustes naturais (inclusive seu breve silêncio entre as décadas de 70 e 80), elas ainda estão aí. Tão consolidadas que, no caso da Folha de S.Paulo, por exemplo, estão no espaço nobre de opinião do jornal – a pagina 3 do primeiro caderno. No alto da coluna, nem se fala em ‘cartas’, mas sim em ‘contribuições’, o que confere um status de gênero jornalístico a essas missivas. É um detalhe bastante significativo.

Mas, se julgarmos pela atenção dispensada ao assunto, vamos ser levados a acreditar que as seções de cartas de leitores em jornais e revistas são mera ficção. Além das empresas que o publicam, quase mais ninguém tem os olhos voltados para o espaço pelo qual parece ser possível ouvir a voz do leitor. Os pesquisadores das Ciências Sociais não dedicaram ao assunto mais do que artigos esparsos publicados em periódicos raros – não há nenhum livro sobre o assunto. E revistas, jornais e sites especializados na crítica da imprensa também parecem ignorá-lo na maior parte das vezes.

Troca de influências

Entretanto, nem sempre é assim. Há quem, a despeito de ser considerado ingênuo, acredite em alguma utilidade do espaço do leitor. Em primeiro lugar, ele próprio. No exato momento em que surge a motivação de escrever para uma publicação, o leitor não somente ganha uma nova designação – leitor-missivista, é como se costuma chamá-lo –, mas expressa também o desejo de romper as barreiras comunicacionais, interagindo com a esfera de produção da mensagem. Não é, portanto, um agente passivo e em permanente inação, como via de regra é concebido.

Eles podem parecer poucos, mas não são. A revista Veja, que tem tiragem média de 1.250 mil exemplares, recebe 1.700 cartas por semana. ‘É muita coisa para uma semana! Mas esse mesmo número vira um grão de areia se o compararmos à média de leitores por semana de Veja‘, diz Eduardo Tedesco, coordenador da seção Cartas da revista. De qualquer forma, a repercussão das missivas não tem relação direta com esta proporção.

As cartas enviadas pelos leitores não são uma mera resposta ao emissor, na medida em que são reproduzidas e tornadas públicas. Não podem ser consideradas como um feedback, porque são transformadas em novas mensagens e veiculadas, delineando um círculo de estímulo/resposta que, no limite, é evidenciado por correspondências que tratam de outras correspondências anteriores.

Exatamente aí as coisas começam a se tornar perigosas. É quase consensual a percepção de que grande parte dos leitores de qualquer publicação é inevitavelmente por ela influenciada, por notícias, artigos e reportagens. O que dizer, então, da reação de um ‘leitor-comum’ frente à mensagem de um ‘leitor-missivista’, com quem ele potencialmente se identificaria?

Com críticas

Em vez de ser um espaço para participação e interação efetiva, reproduzindo a presumível pluralidade e divergência de opinião do leitorado, acaba sendo utilizado como um instrumento poderoso para legitimação da opinião e da linha editorial da própria publicação. Conforme Manuel Chaparro, ‘no processo industrial de comunicação, carta é uma concessão ao leitor, administrada em proveito do jornal, em cujas mensagens o leitor só acidentalmente interfere’.

As observações do boletim Além da Notícia, produzido pela Prefeitura de São Paulo, por exemplo, corroboram a hipótese de Chaparro. Analisando manifestações de leitores em jornais, chegou até mesmo a cunhar a expressão ‘super-leitor’ para falar daqueles ‘sortudos’ que não raramente são abrigados nas grandes páginas. Ele apurou que durante 2003 o médico D.N., por exemplo, teve 33 cartas publicadas nos jornais do Grupo Estado (Jornal da Tarde e O Estado de S.Paulo) e 11 no Painel do Leitor da Folha. No Diário de S.Paulo, foram quatro mensagens em 15 dias.

O que o editor do boletim, Lino Bocchini, nota de curioso é que todas as cartas do médico fazem críticas pesadas ao Partido dos Trabalhadores e seus governos municipal e federal. ‘É o tipo de leitor que só chama a prefeita de ‘Dona Marta’, classifica os CEUs de ‘obras faraônicas’ e faz repetidas menções às eleições de 2004, sempre nessa linha de raciocínio’, escreve ele.

Algo que não é exclusividade dos jornais. A pesquisa ‘Cartas à Redação: O leitor entra em cena’ observou quatro edições de três revistas de informação diferentes, escolhendo como tema os comentários dos leitores sobre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Em CartaCapital, quatro correspondências citavam o ex-presidente da República. Todas com críticas.

Marcando posição

Em Veja, havia um leitor elogiando FHC, e mais criticando Lula ferozmente: ‘O homem é um bicho, tal qual o camaleão. Furta a cor, muda de idéias, muda de roupa e a transfigura de acordo com as oportunidades para alcançar o suposto ideal, o suposto poder’, diz um deles. O equilíbrio só foi encontrado em Caros Amigos, onde leitores manifestam-se diferentemente sobre a postura de Lula. Deixando de lado o juízo de valor sobre cada uma das posições, a tendência geral que se percebe é que a linha editorial da revista também está presente no espaço de opinião do leitor, o que se consegue através da seleção e edição da correspondência.

Segundo o coordenador da seção de cartas de Veja, ‘não há muito segredo’ nesse tipo de procedimento. ‘Temos os conhecimentos jornalísticos e seguimos a linha editorial e os critérios adotados pela direção da revista’, diz ele, que parece não negar o fato de existirem realmente inclinações outras que não pluralidade, debate, reflexão e crítica.

Uma análise das seções de cartas de leitores não vai mais longe, portanto, da constatação de sua própria inocuidade enquanto instrumento para a prática da opinião e o exercício da cidadania. Se, em vez de dar voz ao público, uma publicação ‘faz falar’ por ela um leitor construído, qual a possibilidade de não pensar nestes fóruns como simples espaços de cristalização de um determinado ponto de vista?

Achar que a carta do leitor é um caso perdido, entretanto, é muito fácil – e é o que geralmente se tem feito. Difícil é pensar verticalmente sobre ela. Se 50 anos depois de surgir ela ainda existe e tem lugar consolidado, isso é o que se deve – e talvez o máximo que se pode – fazer. Mesmo sabendo que será confinado a algumas linhas, o leitor ainda se dispõe espontaneamente a marcar uma posição, talvez esperando o momento em que todas as páginas da imprensa sirvam efetivamente a ele. E isso não se pode ignorar.

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Pesquisador do PIBIC-CEPE (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica-Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão) da PUC-SP