Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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TV & FILOSOFIA
Claudio Tognolli


Vacina Frankfurt?, 16/12/05


‘Na semana que corre, a polêmica continua midiática. Há dez dias, era a resposta que o velho e bom Bonner mandou para este escrevinhador sobre como ele via o bom e velho Simpson (veja coluna anterior). Agora é uma autêntica filha espiritual da universidade que ataca o cânon crítico mais famoso gerado pelos corifeus acadêmicos: a Escola de Frankfurt


Ao encerrar o IV Simpósio Nacional de Ciências da Comunicação, na tarde do dia 10 de dezembro de 2005, no auditório da Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, em Bauru (interior de São Paulo), a Profa. Dra. Anamaria Fadul, presidente do Conselho Curador da INTERCOM, criticou os professores de comunicação que incutem nos seus alunos ‘interpretações equivocadas’ do pensamento da Escola de Frankfurt, causando ‘desmotivação profissional e gerando inapetência cognitiva’.


O professor José Marques Melo, papa brasileiro da comunicação, remete e-mail a este escrevinhador em que relata que ‘Anamaria Fadul exortou os estudantes e professores dos cursos de comunicação a superar o comportamento de menosprezo acadêmico pelas indústrias midiáticas, muitas vezes agravado pela hostilidade ideológica, o que vem contribuindo para a formação de novos agentes midiáticos que se sentem inapetentes ou desmotivados para atuar no ambiente profissional’.


Diz o papa Marques Melo que ‘ela atribuiu esse pessimismo militante à ‘herança maldita’ cultivada pela geração que, em nosso país, vem interpretando equivocadamente a crítica de Adorno à indústria cultural, na medida em que deixa de correlacionar e contextualizar as reflexões do filósofo alemão nas décadas de 40 (condenação ao nazifascismo instaurado por Hitler e Mussolini) e de 60 (recusa do neofascismo evidente nas rebeliões estudantis de maio-68). Trata-se, na sua análise, de idéias fora do lugar e defasadas no tempo’.


Só para lembrar: quem patrocinava a Escola de Frankfurt era Felix Weil, filho e herdeiro de um judeu alemão que fez fortuna com especulação monetária. Tanto bastou que a direita acadêmica furiosa, até hoje, usasse dessa passagem para dizer que Frankfurt nascia sob o signo da mea culpa de uma elite rica, ávida por ter um duto crítico por onde extravasar sua culpabilidade. Theodor Wisengrund Adorno, por exemplo, talvez o mais famoso avatar da escola, volta e meia dizia que nossa sociedade de consumo nos desbastava moralmente num mundo de ‘entretenimento do algodão doce que imbeciliza a humanidade’. As críticas de Adorno, como se sabe, não pouparam nem ao jazz, ao qual ele chamava de ‘vitória da massificação e do automatismo sobre a atividade artística genuína’. Pena que o velhaco e vetusto Adorno não tenha ouvido a genialidade de Miles Davis, cuja vida está genialmente interpretada no site do escritor Alex Antunes (clique para ler).


O pessoal de Frankfurt acreditava piamente em arte e mídia degeneradas e degenerantes. A crônica filosófica deles acertou muita coisa e errou mais ainda. O crítico Jotabê Medeiros, do Estadão, acha que Nelson Rodrigues sintetiza isso melhor que ninguém ao dizer ‘nós, da crônica, por um funesto hábito adquirido, escrevemos que qualquer jogo foi tecnicamente falho. Se existisse tal rigor na crítica literária, Shakespeare seria uma pomposa mediocridade e Dante, um poeta de segundo time’.


Adorno também gostava de dizer que ‘ciência, lei, governo, língua viraram instrumento com o qual o homem ocidental reduziu a diversidade à igualdade, a espontaneidade à uniformidade, a diferença a objetos multiformes para controle, como as borboletas pintadas numa jarra chinesa’.


Vamos agora pensar nas baixarias da TV, no João Kleber etc. Seria Frankfurt uma vacina que os professores ministrariam aos alunos ávidos por aparecerem na telinha, tentando dizer-lhes que TV é coisa de marketing, Homer etc? Com certeza. Muitos cânones de Frankfurt estão desatualizados. Adorno louvava o dodecafonismo de Schoenberg, que, com sua técnica de composição, desconstruía genialmente a harmonia tradicional. Vejamos o rap: genialmente desconstruiu a melodia. O que Adorno falaria do rap? Diria que é tão ruim quanto o jazz. O que torna, nesse ponto, Adorno moral e esteticamente indefensável.


Mas Frankfurt acertou na mosca ao atacar as torrentes de mídia que geraram a televisão e as baixarias subseqüentes. O pesquisador João Freire Filho apresentou um paper genial no XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação, em Campo Grande (MS), em setembro 2001.


Ele contava como já nos anos 60 Nelson Rodrigues, como um Adorno brazuca, metia a boca na TV.


‘Para Nelson, a unanimidade contra a TV não era burra – era irreal e hipócrita. Havia, segundo ele, certas coisas que um grã-fino só revelava num terreno baldio, à luz dos archotes, na presença inofensiva de uma cabra vadia. Outras não dizia nem no terreno baldio. Por exemplo: o grã-fino só admitiria que gostava de televisão ao médium, depois de morto (Rodrigues, s/d, 67; ver, também, Rodrigues, 1996, 234).


A condição social de ‘pequeno burguês’ – ‘sem nenhum laivo de grã-finismo’ ou ‘pose de intelectual’ (Nelson gostava de apresentar-se como um intuitivo) – dava ao cronista, em contrapartida, ‘descaro bastante’ para confessar de peito aberto não só que assistia à televisão brasileira, como gostava dela, com todo o seu tão característico e discutido mau gosto (Rodrigues, s/d, 87). A chiadeira contra a má qualidade da TV no Brasil ganhara força no finalzinho da década de 60, quando o veículo se consolidava como um típico meio de comunicação de massa – só para se ter uma idéia, o número de aparelhos em uso no país saltou de irrisórios 2 mil, em 1950, para 760 mil, em 1960, e 4 milhões e 931 mil, em 1970 (Mira, 1995, 30)’.


João Freire Filho relata que ‘o novo dispositivo audiovisual cresceu rodeado de suspeitas por todos os lados: muitos palpitavam que ‘a máquina de fazer doidos’ – na definição de Sérgio Porto – seria responsável por toda uma geração de enfermos sexuais, mentecaptos ou deficientes visuais (os terríveis raios catódicos, lembram-se?). ‘Fábrica de psicopatas, segundos os psiquiatras, e transmissora de subcultura, vendida como bem de consumo, segundo os sociólogos, a TV carioca está ameaçando de entorpecimento e alienação total cerca de 2 milhões de pessoas que a vêem diariamente…’.


Quem abrisse o Caderno B do Jornal do Brasil, na manhã de 16 de junho de 1968, era brindado com mais uma extensa reportagem sobre os poderes luciferinos da televisão. Em meio às previsões agourentas colhidas pelo autor da matéria, Israel Tabak, destacam-se as palavras do psiquiatra e psicanalista Leão Cabernite: a televisão – preveniu o alienista – estava tornando-se a nova ‘bolinha’; seu ‘vício’ começava a criar o problema da dependência física. Após acentuar a péssima qualidade da programação, Cabernite alertou que ‘a continuar desta maneira, em bem pouco tempo a nossa televisão poderá transformar-se numa imensa e eficiente fábrica de psicopatas’. Para reverter esse processo, era preciso, primeiro, ‘uma competente legislação’, depois, ‘uma competente polícia sanitária’ que garantisse o cumprimento da lei. Dos cerca de 2 milhões de telespectadores ‘colados’ diariamente aos 600 mil aparelhos ligados no Rio de Janeiro em 1968, 1 milhão e 400 mil eram pobres ou muito pobres (favelados), registrou Tabak.


E ao que assistia diariamente esse público das classes C e D (de acordo com a nomenclatura do Ibope, o ‘grande ditador de programação’)? Basicamente novelas e programas de auditórios. De acordo com o sociólogo Chaim Katz, então professor de Fundamentos Antropológicos e Psicológicos da Comunicação da UFRJ, os folhetins televisivos funcionavam como uma espécie de ‘tranqüilizante’, de ‘sedativo’. Já o estupendo sucesso dos programas que exploravam ‘o deboche, o sadismo e coisas afins’ somente podia ser compreendido com o auxílio da ‘psicopatologia social’: ‘Quem trabalha o dia todo sem perspectivas, explorado, ganhando mal, (…) ridicularizado o dia todo, agora se compraz em ver os outros sendo ridicularizados. Ele debocha também e sente necessidade de debochar, mas não sabe que no fundo está debochando de si mesmo’.


Vejamos este trecho que engraçado:


‘Reza a lenda que a primeira-dama D. Cyla Médici caiu em transe, enquanto assistia ao programa (Costa et al., 1986, 249). Foi nesse contexto conturbado que Hygino Corsetti fez o pronunciamento que avinagrou o humor de Nelson Rodrigues. O ministro chegou a ventilar a hipótese de cassar a concessão das emissoras que insistissem com o ‘sensacionalismo’ e a ‘baixaria’; no final, limitou-se a anunciar que o governo pretendia acabar com as transmissões ao vivo na televisão brasileira (com ou sem a presença de público no auditório), e que seria nomeada uma comissão interministerial com a responsabilidade de fixar, no prazo de um mês, normas de condutas para as emissoras (‘Cassação’, O Estado de S. Paulo, 10/09/1971, 9; ‘TV perde programas ao vivo’, O Estado de S. Paulo, 11/09/1971, 9).


Antecipando-se às medidas governamentais, Globo e Tupi assinaram um protocolo de autocensura cuja validade se estenderia até a entrada em vigor do ‘Código de Ética da Televisão Brasileira’, em estudos na área federal. Segundo o então diretor da Central Globo de Produções, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o acordo firmado entre as duas emissoras com intuito de ‘eliminar os espetáculos de mau gosto’ permitiria que impusesse ‘uma nova mentalidade aos programas de nível popular’ (O Estado de São Paulo, 03/09/1971, 3; ‘Diretor da Globo anuncia outra mentalidade na TV’, Jornal do Brasil, 04/09/1971, 5).


‘Mas, o que queriam, afinal, os iracundos opositores da televisão brasileira?’, questionava Nelson Rodrigues. Uma TV anti-público, igualzinha à Rádio MEC, solitária, despovoada, abandonada à própria sorte? ‘Se há uma emissora que precisa de uma média de Aristóteles, Goethe, Marx, é exatamente essa’, sustentou o cronista. ‘Mas, para isso, para que cheguemos a um nível tão desejável, temos que esperar uns três milhões de anos. Daí para mais. Enquanto o mundo esteja nivelado por baixo, seremos fervorosos telespectadores’ (Rodrigues, 1996, 233).


Numa linha de argumentação que já soa bastante familiar, Nelson costumava dizer que a televisão era o espelho do nosso povo. Havia, no seu dizer, uma ‘reciprocidade’ entre o nível de um e de outro: ‘A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem’ (Rodrigues, s/d, 119). Logo, o furor contra a televisão tinha dois gumes: ‘E se a televisão perguntar: – ‘O nosso nível é baixo. E o de vocês?’. Sim, e o nosso? (…) De que é que vive a televisão? Da audiência, sim, da santa e abnegada audiência. Muito bem. E essa audiência é constituída de quê? De esquimós, tiroleses, congoleses, chineses, pequineses, patagônios? Não. De brasileiros, meus amigos, de brasileiros’ (Rodrigues, 1996, 233).’


Com tudo isso fica a pergunta: precisamos de novas vacinas como Frankfurt ou não?’


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