Noticiou-se, no mês de junho, um fato que causou espanto, nestes tempos de comunicação eletrônica: um diálogo de dois funcionários da 7ª Vara Cível do Fórum Regional de Santana, em São Paulo, teria ‘saído’ do MSN direto para as páginas do Diário Oficial do Poder Judiciário de São Paulo.
De acordo com o que foi publicado no Diário Oficial, em 25 de junho, André Luis Leoncio e Luciana Pires teriam conversado online sobre assuntos internos em um tom apimentado por supostas queixas contra colegas e superiores hierárquicos. O constrangimento foi grande, sobretudo quando a notícia foi reproduzida por vários veículos em todo o país.
Para apurar o episódio, abriu-se um processo administrativo. No dia 24 de outubro, publicou-se a decisão do juiz Rubens Hideo Arai, que presidiu o processo: afastar Brasilino Soares Miranda, colega de André e Luciana que, conforme a investigação, teria forjado a conversa para prejudicá-los. O juiz também propôs ao Corregedor-Geral da Justiça a demissão de Brasilino, ‘a bem do serviço público’, e o pagamento do valor correspondente ao do espaço utilizado no Diário Oficial:
PROCESSO ADMINISTRATIVO N.º 01/2007 – Tópico final da r. sentença: …’Ante o exposto, julgo procedente a portaria inaugural e proponho à sua excelência o Excelentíssimo Senhor Doutor Corregedor Geral da Justiça a pena de demissão a bem do serviço público do Senhor BRASILINO SOARES MIRANDA, portador da matrícula n.º 311801-4 e RG 15.388.503 SSP/SP, funcionário público estadual lotado na Vara do Juizado Especial Cível do Foro Regional I Santana, Comarca da Capital, Estado de São Paulo por infração dos artigos 241, XII e XIV; artigo 242, I, III, VI, VIII; artigo 243, VII, XI, artigo 256, II; artigo 257, II, IV, VI e XIII, todos da Lei n.º 10.261/68. Nos termos do artigo 248 do mesmo diploma legal, determino seja descontado dos vencimentos do acusado o valor da publicação indevida, R$ 2.282,09 (para agosto de 2007) corrigidos monetariamente pelo índice de atualização do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo desde então, acrescidos de juros de 1% ao mês desde a citação, não podendo exceder a 10ª parte de seus vencimentos. Diante das circunstâncias em que os fatos se deram e que a presença do acusado em cartório compromete a moralidade administrativa ficará o mesmo suspenso cautelarmente pelo prazo de 180 dias a partir da cessão da fruição de seu período de férias ou licença prêmio. ADV. DR. NEWTON AZEVEDO – OAB/SP 38.152.
Este articulista conversou com André Luis Leoncio, considerado pelo juiz uma das vítimas de Brasilino. O entrevistado criticou a cobertura realizada por jornalistas da internet que teriam feito tudo às pressas, sem o cuidado necessário, na base da reprodução desenfreada da primeira notícia: ‘Ou os outros vão repetindo tudo, às vezes mudando uma palavra aqui, outra acolá, ou às vezes nem isso’, disse o funcionário.
Como o senhor soube do que aconteceu?
Todos os dias, em todos os cartórios judiciais, há o seguinte procedimento: verificar se houve, de forma correta, as publicações no Diário Oficial das decisões proferidas pelos juízes nos respectivos processos. Caso tenha ocorrido algum erro de digitação ou coisa semelhante, tal decisão deve ser novamente enviada para publicação na edição subseqüente do Diário Oficial. Pois bem, no dia 25 de junho, uma segunda-feira de manhã, um colega que realizava a tarefa me procurou com um semblante de preocupação, perguntando se eu já havia conferido a imprensa da minha seção. Eu, ingenuamente, disse que não e perguntei se havia uma quantidade muito grande a ser conferida. Então ele me mostrou o jornal na parte da malfadada publicação.
Qual foi o seu primeiro pensamento?
Ao ver meu nome em pleno Diário Oficial, seguido do meu e-mail e aquele texto em formato de conversa, fiquei simplesmente estupefato, sem entender absolutamente nada, o que poderia ter acontecido, o que realmente significava aquilo….
O que o senhor resolveu fazer?
Passado o choque inicial, li o texto com calma e me lembrei de que a Luciana, com quem supostamente a conversa teria se desenvolvido, não era um dos meus contatos do Messenger! Neste instante, cheguei à conclusão de que era tudo uma armação, que alguém forjara absolutamente tudo, e que não haveria nem a possibilidade de terem ‘turbinado’ uma conversa anterior, pois nunca houve conversa nenhuma. Eu e a Luciana somos muito amigos, mas, por ironia do destino, nunca escolhemos esse meio de comunicação. Liguei para ela, comunicando o ocorrido, naquela manhã.
‘Virei uma celebridade negativa’
Qual foi a reação das pessoas?
Os conhecidos mais próximos me apoiaram. Mas nem todos são meus amigos, e aqueles que tiveram seus nomes mencionados na publicação como ‘trastes’ ficaram apreensivos. Felizmente, minha atitude de imediatamente comunicar ao meu superior, Dr. Jeová, o juiz titular, que também foi frontalmente ofendido no texto, ajudou a demonstrar a todos que eu realmente não tinha nada a ver com aquilo e que desejava mais do que ninguém a descoberta da autoria do ato. Por parte dos colegas mais distantes – o Foro de Santana tem mais de 600 funcionários – e que nem sabiam meu nome, virei uma espécie de celebridade negativa. Muitos se dirigiam ao meu cartório só para ver quem eu era.
Qual foi a sua sensação ao ser visto, nacionalmente, como uma pessoa que passou por essa situação?
Péssima. A sensação de virar notícia sem ter feito absolutamente nada é devastadora. Não havia nenhuma atitude minha de que efetivamente eu pudesse me arrepender ou lamentar… Simplesmente eu virava notícia por ato absolutamente alheio.
O senhor usava o MSN…
Sim, eu era usuário esporádico do MSN, apenas na minha vida particular e fora do meu local de serviço, e continuo até hoje. Confesso que perdi um pouco o gosto. Fui adicionado por algumas dezenas de curiosos que viram meu endereço no Diário Oficial ou outros meios de comunicação, e isso me chateou bastante, uma exposição realmente exagerada, desnecessária e indesejada.
Por que o seu colega supostamente teria tentado prejudicá-lo? O senhor pretende tomar alguma medida judicial?
Bem, partindo do pressuposto de que não estamos falando de uma pessoa normal, pois só uma mente diabólica teria o requinte suficiente de simular uma conversa falsa de duas outras pessoas e divulgá-la da forma que foi feita, fica difícil explicar o inexplicável… Este cidadão, Sr. Brasilino Soares Miranda, nunca gostou de mim nem da Luciana, sempre deixou isso muito claro, contudo sempre encarei isso como divergência profissional que nunca chegaria numa atitude tresloucada como a que ele tomou. Pretendo processá-lo por danos morais, mesmo sabendo que dificilmente ele terá um tostão sequer para me ressarcir. Quanto à mídia, no final das contas, graças à rapidez com que tudo foi apurado, tive tempo de expor a verdade no Fantástico, que foi o local de maior exposição de todos. Isto me ajudou bastante e acabou de certa forma ‘consertando’ o estrago feito pelos sites nos dias anteriores. Verdade seja dita, se eu não tivesse conseguido encontrar a verdade até a sexta-feira daquela semana, o mesmo Fantástico que me salvou teria sido o tiro de misericórdia, pois a pauta seria totalmente outra, mostrando dois funcionários do Tribunal de Justiça que conversavam impunemente, por falta de um sistema de rastreamento de conversas. Se a verdade apareceu, não foi graças à competência e ao profissionalismo da nossa imprensa.
‘A regra é copiar a notícia’
O que mais chamou a sua atenção durante a cobertura jornalística?
Vários fatores na cobertura me chamaram a atenção. O primeiro foi a velocidade da notícia. Dado o ‘ponta-pé inicial’, que no caso foi o site Kibeloco noticiar e, em seguida, o UOL, os outros sites simplesmente ‘colaram’ a notícia e a reproduziram de forma atabalhoada. Ou seja, a regra é que, se o primeiro reproduz algo equivocado, parcial, superficial, ou os outros vão repetindo tudo, às vezes mudando uma palavra aqui, outra acolá, ou às vezes nem isso. A outra coisa que me chamou a atenção foi a total falta de tentativa de comunicação comigo, que era o envolvido direto. Saliente-se que trabalho numa repartição pública, ou seja, qualquer cidadão tem livre acesso ao meu setor. Ainda que não possa portar uma câmera ou um microfone, nada impediria ninguém de vir conversar comigo, no balcão, e obter a minha versão dos fatos. Somente na sexta-feira fui procurado pessoalmente por jornalistas do Estado de São Paulo, Jornal da Tarde – sabe-se lá, por conta da proximidade com que essas redações se encontram do fórum – e via telefônica pelo pessoal do G1.
Então a cobertura não foi bem feita…
Não, é óbvio que a cobertura não foi bem feita. O que mais me assustou é que nenhum repórter, em momento algum, me perguntou como é feita a publicação no Diário Oficial, dúvida que todos os cidadãos que deixaram recados em sites, comentando as notícias, tinham sobre o assunto. Perguntavam se não havia revisão de texto, filtro para tantos palavrões ou coisa parecida… A imprensa oficial é feita por todos os funcionários, sendo que cada um tem uma senha e login respectivos que o autorizam a entrar num sistema operacional exclusivo do fórum e a mandar publicações pertinentes ao setor onde estão lotados. Ou seja, um repórter que soubesse disso saberia logo de cara que somente um funcionário poderia ter feito tal ato e que não há nenhum tipo de revisão ou filtro. Prevaleceu na imprensa o prejulgamento de que a conversa realmente tinha ocorrido e que eu e minha amiga éramos culpados, até o momento em que eu pude me manifestar e mostrar a verdade, inclusive os erros grosseiros no texto do falso MSN, que qualquer pessoa um pouco mais inteligente, jornalista ou não, poderia ter percebido com uma leitura mais atenta.
O senhor chegou a ser ridicularizado pela mídia?
Sim, a partir do momento em que fui retratado como funcionário irresponsável e traiçoeiro e por algo que não fiz.
Houve alguma mudança de atitude dos jornalistas, à medida que fatos novos começaram a surgir?
Sim, uma vez provada a fraude, ela passou a ser o foco da notícia, mas com muito menos ênfase. Foi como se o interesse tivesse diminuído sensivelmente. A versão era muito mais interessante que a verdade, que não tinha tanta ‘graça’ assim… Tanto que a Folha de São Paulo, que noticiara a versão tanto no formato impresso como no online, somente colocou a verdade na versão online, e com muito menos destaque.
O senhor se considera vítima apenas de uma pessoa ou também de uma nova era tecnológica?
Acho que tudo o que aconteceu não foi culpa da internet, mas sim uma questão de mentalidade. A internet foi somente o meio por onde tudo foi divulgado, acho que a internet foi só o meio por onde tudo se propagou. Infelizmente fui vítima de um doente mental e tive o azar de cair no redemoinho de notícias que a rede proporciona hoje. Acho que não haveria problema nenhum se a ética e o bom senso regrassem previamente qualquer divulgação de notícia, seja ela qual for…
***
Tentou-se, sem sucesso, até este momento, localizar o funcionário acusado, Brasilino Soares Miranda. Como reza o bom jornalismo, este espaço continuará a buscar a sua versão dos fatos. Por ora, só uma certeza: o que quer que aconteça no cotidiano, ao se disseminar sem apurar, expõe-se, sob imenso perigo de incorrer em erro, a intimidade dos cidadãos e os bastidores das instituições, induzindo o público a conclusões precipitadas, com base em dados incompletos.
Apelar agora é inútil. Em se tratando de calúnia, injúria e difamação, é como o aforismo das penas de travesseiro jogadas do alto de uma montanha: nunca será possível recolher todas elas.
A única apelação eficaz é a dos veículos que não se deram ao trabalho de ouvir a palavra dos envolvidos. Esses, sim, apelaram. Fizeram o que popularmente se pode chamar de ‘jornalismo apelativo’. Há outros nomes para o mesmo modus operandi. Mas a rotina tem sido uma só. E, por mais que protestemos, parece fadada, por arrogância ou irresponsabilidade, a ser assim para sempre.
******
Jornalista