Se, com muita freqüência, o real petrifica os seres, os transfigura em coisas, em objetos, os solidifica mineralizando-os como esqueletos, é porque eles se abandonam a eles mesmos, consentindo tornarem-se pesados, espessos. (Michel Onfray)
Todo aprendizado potencializa vontades subjetivas. E, através daquilo que nem sempre se explica, cria-se uma vinculação prazerosa com a descoberta de novos caminhos. Nem é uma questão menor de provocação, mas de capacidade de elaborar sonhos e utopias, que hoje nos mata a todos. Ora, se a TV ‘aberta’ cultua o naturalismo como representação do real, mistificando-o e faturando com isso, é preciso questioná-la, pois sendo uma concessão pública não é desta ou daquela família, mas do povo brasileiro. Deveria existir para formá-lo melhor e servi-lo. A sua raiz é o país que precisa avançar para formar oposições mais consistentes que as que temos aí.
Por que a história, a memória, a política, a criatividade e o espaço poético não podem ser trabalhados pela televisão ‘aberta’, que é uma concessão pública? Será que o público é só composto de idiotas? Pode a ignorância restaurar significados a um país melhor? Quem está ganhando com essa regressão à barbárie que tanto tem servido às religiões, ao diabo e à TV? E com todos faturando muito… E se ousarmos dizer que a TV canaliza a barbárie com refinamento apurado no Pentágono? Que na sua desleitura do real cerca-se de razões duvidosas para vender-nos medos e quinquilharias que servem à idolatria do espetáculo do horror, tipo Linha Direta ou Superpop? Mas é para isso que serve a TV?
O sublime do ver/ouvir deveria ser o de nos fazer pensar. Usar a imaginação para sonhar, estudar, militar e até criar, se necessário for. A nosso ver, Malhação, Jornal Nacional, Xuxa, Charme de Adriana Galisteu, Tela Quente… mesclam a interiorização do espetáculo do horror com a produção e o consumo de inutilidades para o mercado. Torna-se impensável procurar alguma importância na TV ‘aberta’. Mas, e por que isso? Ora, o que justifica seus constantes combates abertos ao saber? A TV ‘aberta’ é só um bom negócio duvidoso ou o negócio do horror?
Arma para o poder
A TV tanto pode estar ligada num restaurante de senhores engravatados e suados, como numa favela no Amazonas. Mas é tudo a mesma coisa? Como arrancar do pequeno reacionário formado pela TV o seu ‘saber’ brutalizado pela soma das tantas e tantas inutilidades do mundo da informação, ao tempo que cresce assustadoramente como arma de poder o exército inútil de ‘astros’ televisivos? E que em seus automatismos de ‘celebridades’ nos vendem a sua superioridade (duvidosa, não é?), por fazerem parte de uma tropa de elite composta de pilantras, canastrões, piranhas e vedetinhas, cujo valor máximo está em suas capacidades de venderem caretas, peitos e bundas? Ou seja, valem pelo que têm. Não pelo que pensam. Mas pensam? Qual a diferença do fascismo?
Ou seja, a TV ‘aberta’ maneja com vigor os seus marionetes. Muitos já enferrujados e obsoletos. Mas ainda podem ‘representar’ vovôs e vovós no incentivo à zona. O importante é potencializar bufões aptos a defender seja lá o que for, de Malhação à Tropa de Elite. O ato de fortalecer o horror é uma indústria rendosa e lucrativa, especializada em vender o espetáculo aperfeiçoado por Hollywood. Todas as televisões abertas do mundo se parecem no autoritarismo de uma programação burra e na irresponsabilidade frente ao saber. Ora, por que aqui seria diferente? Logo nós, pervertidos por um capitalismo enlouquecido e monstruoso.
É preciso repensar a TV ‘aberta’ para que possamos lapidar sua espontaneidade criadora ruim e a qualificarmos tanto para grandes realizações como para a poesia e experimentações. Ou seja, disponibilizar o seu uso tanto para uma verdadeira análise da informação formadora, como colocá-la nas mãos dos que ainda têm o que dizer no mundo da arte. Tirá-la do mal-estar planejado de hoje para a epopéia dos grandes compromissos com a memória e a história do país.
A televisão ‘aberta’ não pode continuar sendo uma clara ausência de importância, um vazio, pois sua degeneração não só debilita a nação, como serve de arma para o poder, que sempre odiou ter de defender o saber e a sensibilidade. E muito por isso foi sempre ocupada por antas truculentas, para que nada se modifique. E como seria então a nova TV Pública que o governo tanto alardeia? Como poderá ser diferente dos malefícios da TV ‘aberta’?
Silêncio e cumplicidade
Ainda somos brasileiros, o que ainda nos tem sido permitido, e gostaríamos de pensar uma TV Pública como sempre pensamos o Brasil, a partir de sua multiculturalidade à procura de um destino. Mais ainda, as TVs são concessões nossas, de nosso povo, de alguma coisa que pensamos possuir. O que concedemos então, até aqui, com nossa introjeção do que somos ou pensamos ser, se ainda pensamos, às portas de sua inauguração e sem concessão? Não concedemos, fomos usurpados. TV Pública, uma opção! Pensamos claro, uma televisão bem Brasil. E com a diferença de sentidos nesta época de terrível opressão velada e falta de sentido.
‘Não existe época para a poesia A poesia é a origem de todas as épocas Pensar é viver Viver é pensar A morte da poesia é a mudez da linguagem.’ E uma boa televisão pública deverá ser como a poesia. Não temer a repressão. E muito menos as dificuldades. Como a poesia, denunciando sua própria origem. Ora, é público e notório que a televisão no universo das mídias eletrônicas tem sido a principal responsável pelo controle da indústria da consciência e da nossa analfabetização secular.
Este Continente é rico em tudo, mais ainda em sua multiculturalidade tão essencial a esta poesia que nos faz sobreviver, renascendo a todo instante. Mas a televisão vem se tornando hegemônica pela anulação do pensar e da compulsão desejosa de ser, antes de qualquer destruição. Esta indústria da consciência tem sido a maior produtora dos robôs clonados do horror. E como um dos meios de produção e de seu controle, antecede todos os produtos, matando antes a consciência. Ela impõe, vigia e pune. Mais dura do que as religiões porque, além da culpa, oferece, estimula, comparando e fazendo explodir as compulsões, com a produção de Sísifos.
No lugar de opressão e falta de liberdade, quando falamos tanto de independência e autonomia, como nas lutas e disputas para a reitoria de uma universidade, gostaríamos de falar da nova televisão do Brasil como um local, um espaço para tudo o que representa a poesia: alguma afetividade, alguma crítica, um espaço de Brasil, de produtos e de sujeitos resguardando a linguagem, na expressão e na expressividade de um país, não só pelas figurações, mas também pela realidade, confirmando as metáforas. Imagens de um mundo ainda possível como forma mais limpa de expressão.
Nosso medo pode estar contido nestas palavras de Neil Postman, pensando a cultura como alguém ainda não reduzido ao silêncio e à cumplicidade com o sistema que tem nos ameaçado enquanto não nos devora: ‘Quando uma população deixa que sua atenção seja desviada por trivialidades, quando a vida cultural é redefinida como uma série interminável de entretenimentos, quando a discussão pública se torna uma fórmula de comunicação infantil, quando, resumindo, um povo se transforma em espectador e seus assuntos públicos em números de variedades, uma nação se encontra em perigo’.
Outro mundo possível
E o mundo da televisão, como uma coisa nossa, uma concessão pública, não pode se tornar uma agressão de que ninguém escapa, uma cultura popularesca e sem a menor significação, despojando sujeitos, exilando-nos, para se transformar em uma cultura popular perversa e maldita contra seu povo, que se tornou produto. Robôs clonados do horror pelo controle que se exerce sobre ele. De manhã à noite, e em todos os lugares. Uma liquidação do tempo real. Tempo clonado pelo virtual.
O que se espera de uma TV Pública é outra coisa. É uma outra escola, um campo de trabalho cujos serviços deverão ser inversamente proporcionais a essa maldita realidade que nos exila e externaliza, e onde ela, inevitavelmente, já nasce inserida. E cujo reconhecimento neste mundo sem diferenças não será fácil. Essa TV, para se tornar pública e brasileira, deverá ser como um bom professor ainda não analfabetizado pela ordem de trabalho a que está sendo forçado, e que luta por uma causa, aparentemente perdida, mas sustentada pela crença de que outro mundo é possível, pela força de uma cultura como a nossa: múltipla, interativa e resistente. E que não deverá ser transgredida, mas construída com a nossa cultura.
******
Respectivamente, diretor de cinema (Assuntina das Amérikas, Crônicas de um Industrial e O Santo e a Vedete, entre outros), escritor e artista plástico; co-diretor, ao lado de Braz Sediak, de Navalha na Carne e Dois Perdidos Numa Noite Suja