Ainda há o que dizer acerca do insólito encontro entre Pagu, no lixo, e Selma Morgana Sarti [ver remissão abaixo]. A imprensa gosta de qualificar in media res as pessoas que cita. Idade e profissão. Assim, as matérias sobre o tema traziam a idade de Selma (42 anos) e a profissão (catadora de papéis).
Outro clichê veio na embalagem que envolveu o escândalo. Cassiano Elek Machado, na Folha de S. Paulo (30/7/04, p. E1), abriu sua matéria assim: ‘Musa do modernismo brasileiro, Pagu acabou no lixo de São Paulo’.
Quanto às primeiras ‘exigências’ na qualificação das pessoas, não seria bom ponderar que, em troca, o autor da matéria declinasse também sua idade e qualificação? O leitor teria alguma luz adicional.
Outra coisa: se Selma Morgana Sarti é qualificada como ‘catadora de papéis’, por que, por exemplo, Luis Favre é caracterizado apenas como franco-argentino? Por que de uns se escancara o ofício e de outros se omite? Talvez pela mesma razão que leva a imprensa a ser descuidada dos direitos dos pobres e ciosa dos direitos dos ricos. Utilizando as metáforas de Elio Gaspari, dá-se o seguinte. Para o andar de baixo, a patuléia, a choldra, a escumalha, que desconhece ervanários e vive desamparada pela viúva, a linguagem é uma. Para o andar de cima, é preciso muito cuidado.
Quem foi que inventou que Pagu foi ‘musa do modernismo’? Musa aos 12 anos! Pagu nasceu em 1910! O Modernismo foi adiado de 1922 para a década seguinte, ao menos, para dar tempo de ela tornar-se musa?
Mais uma pequena lembrança. Em 1993, a Editora da Universidade Federal de São Carlos, graças à confiança em nós depositada por Geraldo Galvão Ferraz, relançou o romance Parque industrial, então há 60 anos fora das livrarias. Nos anos oitenta saiu uma pequena edição, alternativa, que quase não circulou. No mesmo ano (1993), graças ao interesse da UFSCar, saiu a primeira edição em inglês do romance, pela editora da Universidade de Nebraska (EUA). A edição brasileira de 1993 não teria sido possível sem a parceria da Editora Mercado Aberto, de Porto Alegre.
Sem ‘erramos’
Primeiro diretor da Editora da UFSCar, peguei o livro debaixo do braço e saí pátria afora, orgulhoso do feito. Despachei dezenas de exemplares para todo o Brasil. Saíram pequenas notinhas aqui e ali. Nada semelhante à escala retumbante que Pagu obteve agora, no lixo. Parece que nas estantes Pagu não era interessante. Em resumo, a imprensa não quis saber da reedição de um romance que é um dos poucos, senão o único, contraponto urbano do movimento literário conhecido como o romance de 1930! Pagu ressuscitada em todo o esplendor interessou pouco. Pagu no lixo, sim, é que foi bom!
Não quero negar a pertinência da matéria de agora. Mas pergunto aos leitores deste Observatório: não acham estranha esta obsessão de nossa imprensa pelo tropeço, pelo que não dá certo? Sim, é notícia. Mas a notícia boa, a do lançamento, não foi boa, não era notícia, não interessava aos leitores?
Uma última pergunta: a imprensa interessou-se em saber se quem recebeu a preciosa documentação que dona Selma Morgana Sarti (ah, os nomes! Morgana, pois não? Fada!) lhe entregou, tomou alguma providência para remunerar a generosa contribuinte de nossas letras e de nossa História?
Confessar os pecados dos outros, que bom! Para a imprensa reconhecer os próprios tropeços e omissões, basta, como se sabe, no máximo um ‘erramos’ em letras bem pequenas! E, agora, até o momento, nem isso!