Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caminho é explorar ‘brecha digital’

O jornalista Ignacio Ramonet, diretor do Monde Diplomatique, proferiu a aula inaugural do curso 2007/2008 da Faculdade de Comunicação da Universidade de Sevilha (Espanha), em 26/10/2007, e desafiou os estudantes de jornalismo a explorarem a ‘brecha digital para devolverem o jornalismo ao seu status de quarto poder, a serviço da sociedade, e não contra ela, como vem ocorrendo no mundo globalizado’.

Disse que o jornalismo atual tornou-se uma empresa industrial como outra qualquer com a única diferença de invocar a ‘liberdade de imprensa’ sempre que seus interesses econômico-financeiros são ameaçados. A solenidade de abertura do calendário escolar contou com a distribuição de prêmios a estudantes e comunicadores nas áreas de rádio, televisão, jornalismo impresso, cinema e publicidade e propaganda, sendo presidida pelo decano da faculdade, professor Francisco Sierra Caballero, com ampla cobertura da mídia sevilhana.

Manipulação e mentira

Professor de Teoria da Comunicação em Paris, Santiago de Compostela e em Madri, Ignacio Ramonet começou sua fala magna afirmando que percebe um profundo descrédito da sociedade em relação ao modo como os meios de comunicação estão operando nas últimas décadas em função do processo de globalização. Disse que isto é prejudicial para a democracia:

‘Quando a informação não funciona, é a democracia que sai perdendo. A sociedade já não acredita nos meios de comunicação. O que percebemos, hoje, é que ao sentimento de insegurança social e econômica, provocado pela violência, pelo desemprego e outros males, veio juntar-se, também, um sentimento de insegurança informacional, pois recebemos uma notícia e não sabemos se ela é verdadeira.’

Como exemplo de manipulação da mídia para enganar a sociedade, o jornalista lembrou que uma das maiores tragédias dos nossos dias, ainda em andamento, a guerra do Iraque, foi justificada perante a opinião pública mundial a partir da mentira e da manipulação de informações, pois ficou provado que não havia armas químicas no país e que Saddam Hussein não teve nada a ver com o 11 de Setembro. Lembrou também a pressa com que se acusou um grupo [o ETA] pelos atentados em Madri (em 11 de março de 2004), constatando-se, depois, que a acusação era falsa.

O quarto poder

‘Os jornalistas viraram palhaços. O povo ri do jornalismo praticado em nossos dias’, disse Ramonet. E explicou:

‘O povo tem dois meios para resistir a esse jornalismo constituído de `verdades oficiais´: o rumor e o humor. O rumor é a voz rouca das ruas que tem mais credibilidade do que a mídia. O humor é a capacidade que o povo tem de caricaturar o poder dominante através da bufonaria. Afinal, o povo percebe quando está sendo vítima de `teses construídas´, como ocorreu por ocasião dos atentados do 11 de Setembro, quando se tentou passar a idéia de que tudo fora arquitetado pelo próprio governo norte-americano. O povo não aceita mais tanta palhaçada. Aliás, recentemente estive no México e presenciei um fato curioso: o apresentador do principal telejornal do país resolveu comparecer perante o seu público vestido de palhaço.’

Segundo o jornalista, os meios de comunicação, que antes eram solução para as questões sociais, hoje se tornaram um problema porque não são mais estimulados pelo altruísmo inicial de quando surgiu a comunicação de massa no século 19. Naquela época, reunindo intelectuais preocupados com um mundo melhor e mais justo, a imprensa foi classificada de quarto poder, na França, com a missão de fiscalizar os outros três poderes constituídos no Estado moderno, conforme a visão de Montesquieu: Executivo, Legislativo, Judiciário. Afinal, mesmo nos regimes democráticos podem ocorrer grandes equívocos. Basta lembrar que a primeira democracia da era moderna, os Estados Unidos, aceitou, democraticamente, a escravidão, do mesmo modo que há casos bem conhecidos de erros judiciais que levaram pessoas à morte e depois se comprovou que eram inocentes.

Liberdade de empresa

Por isto havia esse quarto poder para combater os abusos. Mas, com a globalização, os meios não exercem mais esse poder. Agora o primeiro poder é o mercado, o segundo é a mídia e o poder político vem em terceiro lugar. Criticando a concentração da mídia em poucas mãos, Ramonet afirmou:

‘Hoje, os meios de comunicação não estão nas mãos do povo para cumprirem a função de fiscalizar o governo. A globalização criou imenso poder financeiro, estabelecendo-se uma luta permanente entre mercado e Estado, no qual as empresas são os atores principais. Transformando a notícia em uma mercadoria como outra qualquer, os meios de comunicação agora são apenas mais uma empresa e funcionam industrialmente. Antes, havia uma empresa para cada área: uma fazia jornais e revistas, outra produzia programação de rádio, outra fazia TV… Agora, uma mesma empresa faz tudo e além de produzir conteúdos para impresso, som e imagem, também provê conteúdos para a internet porque é uma empresa multimídia. E nesse contexto a notícia é apenas um detalhe. Todos usam as mesmas técnicas; por isto, os jornais agora são todos iguais, não têm mais aquela `cara própria´. Os jornais já não se proclamam `independentes´, mas `globais´.’ [Esta declaração provocou algumas trocas de olhares, pois o principal jornal espanhol, El País, acaba de se definir como jornal global desde a edição do domingo, 21/10].

Lembrou o conferencista que, apesar de as empresas de comunicação invocarem amplamente os direitos à liberdade de imprensa, o que se percebe no jornalismo atual é liberdade de empresa, não de imprensa.

Observatórios de mídia

É essa mercantilização da notícia, essa industrialização da mídia que gera a atual confusão entre ‘jornalismo’ e ‘espetáculo’, pois no afã de obter mais leitores e audiência, os veículos privilegiam o espetáculo, e não o conteúdo. Isto também explica, conforme Ramonet, porque são distribuídos tantos jornais gratuitamente, uma vez que ‘já não se trata de vender anúncios às pessoas, mas vender pessoas aos anunciantes, daí a necessidade de comprovar ampla tiragem, mesmo se as notícias são superficiais, incompletas, sem apuração’.

A transformação do jornalismo em programas de entretenimento, especialmente no rádio e na televisão, tem, na avaliação de Ignacio Ramonet, um componente ideológico através do qual o sistema capitalista desvia a atenção das pessoas. Mas desvia de quê?

‘A simplificação do mundo, a falta de contextualização, a notícia apressada formam o aparato da globalização para distrair o povo daquilo que é essencial, da conscientização. A mídia atua como o Grande Irmão, sempre repetindo que `globalização é modernidade´. O que nós sabemos é que todo esse processo não se concretiza sem pregação ideológica. Vejamos o exemplo histórico da conquista da América. Ela se fez pelas armas, mas não só pelas armas. Boa parte foi feita pela igreja que tratou de convencer os povos sobre as vantagens da modernidade.’

Além de transformar tudo em espetáculo, a mídia também é arrogante, pois não admite críticas, segundo o conferencista. Ele citou o recente caso da Venezuela, em que se deu o primeiro golpe midiático do mundo, a ponto de um grupo de empresas de comunicação colocarem um preposto no poder por 48 horas. Isto revela que a mídia não apenas renunciou ao seu papel de quarto poder, de fiscalizador, mas que gostaria de ser o primeiro poder, tanto assim que muitas empresas de comunicação são dirigidas por estrategistas de mercado, e não por jornalistas.

Concluindo sua aula, Ramonet conclamou os jovens estudantes de jornalismo a aproveitarem a brecha das novas tecnologias, notadamente a internet e os meios digitais, para criar um contrapoder, pois a sociedade está sem defesa. Ele ensinou como fazer:

‘É preciso criar um movimento que mobilize a sociedade. Professores universitários e intelectuais deviam criar Observatórios de Mídia para denunciar todo o desserviço, toda matéria incompleta ou manipulada, toda a falta de ética. Também é preciso apoiar a mídia alternativa, os meios comunitários Os jovens devem apoderar-se do corte tecnológico, dessa brecha da internet, para não fazerem mais jornalismo como se vem fazendo. É preciso sair desse trilho. Uma nova comunicação é possível.’

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Professor de Jornalismo na Unesp/Bauru, está em Sevilha (Espanha) fazendo pós-doutorado em ‘Comunicação para o Desenvolvimento’