Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como é difícil largar a rapadura

Lá vem o SBT descendo a ladeira. O outrora exuberante ‘campeão absoluto da vice-liderança’, que se ufanava de ter pela frente apenas a onipotente TV Globo e que ironizava a debilidade dos demais competidores no mercado televisivo, agora é líder disparado apenas em más notícias e presságios sombrios. Em todas as faixas horárias, em todas as praças do país, a Record está lhe mordendo nacos substantivos de audiência. Já contratou muitos de seus artistas, produtores e técnicos. E quase todas as semanas leva embora uma de suas emissoras afiliadas, emagrecendo sua rede e minguando suas receitas publicitárias. Agora é a emissora do bispo que se proclama, orgulhosa, ‘a caminho da liderança’. O SBT vai no caminho do buraco.

Como isso é possível? Por que o SBT assiste ao próprio declínio sem esboçar uma reação organizada? Onde estão a velha agilidade e o senso incomum de oportunidade, que lhe asseguraram 26 anos na segunda posição e lhe permitiram aprontar várias vezes com a supremacia da Globo? Será possível um novo pulo-do-gato, um novo coelho tirado da cartola, como tantos nesses anos passados, para surpreender o mercado e conter a concorrência? Qual o problema, enfim, com o SBT?

Nasce um império

Todos os dedos apontam para apenas uma pessoa: Silvio Santos. Que não é apenas o patrão, mas também o fundador da empresa, o estrategista, o articulador, o comandante-em-chefe, além de apresentador do programa mais rentável da casa. Que não é, claro, a única pessoa que pensa em toda a organização, mas é seguramente a única que manda. Que sempre confiou, acima de qualquer consideração, pesquisa ou conselho, no seu próprio instinto e nunca se avexou de tomar decisões mirabolantes. E que agora, ao que tudo indica, não consegue mais manobrar com destreza. Perdeu o toque de Midas.

Esse toque, o carioca de ascendência judaica grega Senor Abravanel adquiriu há mais de 50 anos, em 1956, quando começou na TV Paulista como garoto-propaganda das lojas Clipper e ‘esquentador’ de auditórios. Bom de voz e de conversa, usou as habilidades como camelô, pregoeiro de lojas, locutor de circo e comícios eleitorais, até chegar ao rádio e dele saltar à televisão, sempre acumulando cacife. Que multiplicou-se exponencialmente a partir de 1958, quando o produtor e apresentador Manoel da Nóbrega pediu-lhe que o ajudasse a fechar uma empresa falimentar, o Baú da Felicidade, que comercializava baús de brinquedos de Natal, pagos antecipadamente em prestações por consumidores de baixa renda.

Silvio Santos não apenas evitou a bancarrota como tornou-se sócio da empresa, e depois seu dono. Construiu a partir dela um império, com presença nos setores financeiro, varejista, hoteleiro, industrial e de comunicação, que teve uma receita operacional bruta de 3,2 bilhões de reais em 2006, 10,6% acima da registrada em 2005, segundo levantamento do jornal Valor Econômico.

Cerimônia inédita

Nessa escalada, a televisão sempre foi a ferramenta principal de sedução e mobilização da clientela. No início dos anos 1960, Silvio Santos converteu-se no principal apresentador de programas de jogos e brincadeiras da televisão brasileira, infalíveis máquinas de produzir audiência, consumo popular e faturamento. Caso atípico de artista com grande tino comercial, já em 1963 ele estreava o Programa Silvio Santos, que produzia de forma independente e veiculava comprando horários nas emissoras comerciais. Quem pagava a conta era o Baú da Felicidade, inicialmente, e depois os seus outros negócios, anunciados maciçamente nos intervalos e no interior de seus programas.

Em 1969, com 13 anos de televisão, Silvio Santos já era um dos maiores artistas e empresários do negócio. Dono dos domingos, onde chegou a ficar no ar, ao vivo, das 11 às 20 horas, Silvio Santos sobreviveu na TV Paulista, quando a emissora foi comprada pela TV Globo do Rio de Janeiro e tornou-se a Globo-SP. Mas, a essa altura, ele já tinha ambições de autonomia. Em 1972, comprou os estúdios da extinta TV Excelsior, no bairro paulistano de Vila Guilherme, para fazer ali a sua central de produção. Logo depois, conseguiu a concessão da TV Continental, canal 11, do Rio, e acumulou forças para lançar, em maio de 1976, sua primeira estação, a TV Studios, ou TVS. Também se tornou sócio da família Machado de Carvalho, na antiga TV Record.

O passo seguinte, a constituição de uma rede nacional de televisão, viabilizou-se com a decisão do governo general João Figueiredo, em 1980, de cassar a concessão das emissoras ligadas à Rede Tupi e entregá-las a outros grupos de mídia. Silvio Santos derrubou competidores poderosos, como a Editora Abril e o Jornal do Brasil (então no auge), e lançou em agosto de 1981 o SBT – Sistema Brasileiro de Televisão, numa cerimônia inédita em que transmitiu o próprio ato de assinatura da concessão. Inicialmente com quatro estações (São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belém), a nova rede cresceu exponencialmente, para atingir as declaradas 105 atuais – talvez uma a menos até o final deste texto.

Mudanças de horário

Ao longo dessa trajetória de quase três décadas com o SBT, Silvio Santos demonstrou uma capacidade inegável de enxergar as circunstâncias do mercado e de posicionar a sua empresa para aproveitar as mínimas brechas e chances deixadas pela líder Globo. Jamais permitiu que a concorrente estabilizasse o domínio sobre a audiência dominical. Sempre foi rapidíssimo em trazer para o seu elenco qualquer artista de outra emissora, que despontasse como possível ameaça à sua vice-liderança. Marcou tentos significativos quando atraiu até mesmo nomes globais, do porte de Jô Soares ou Lilian Wite Fibe. Quase fez naufragar o Big Brother Brasil da oponente, quando clonou a fórmula e lançou antes a Casa dos Artistas, de grande sucesso.

Nos últimos anos, entretanto, nada de importante ocorreu no SBT – ao contrário. A Record tomou-lhe o diretor comercial, o competente Walter Zagari, e no último mês de agosto conseguiu ultrapassá-lo na média nacional de audiência. As mudanças constantes na programação, desarticulando o trabalho comercial de suas afiliadas, fez várias delas também bandearem-se para os domínios do bispo: TV Cidade (Fortaleza), TV Itapoan (Salvador), TV Pampa (várias praças no Rio Grande do Sul), TV Pajuçara (Maceió), TV Atalaia (Aracaju), TV A Crítica (Manaus).

O triunfo mais recente, o concurso de calouros moderninho Ídolos, impactou muito menos que os sucessos do passado e a empresa detentora do formato ameaça levá-lo para a Record. Duas estrelas do telejornalismo, contratadas a peso de ouro – Ana Paula Padrão e Carlos Nascimento – padecem na ciranda de mudanças de horário e formato de seus programas, e já amargam uma lamentável invisibilidade. Descontente por ver a imprensa comentando esses fatos, Silvio Santos desativou a assessoria de comunicação por um ano, reorganizando-a apenas recentemente.

Glórias passadas

Se o SBT é dirigido com o mais extremo personalismo, tudo indica, portanto, que Silvio Santos perdeu a mão. Não consegue enfrentar o poderio de Edir Macedo, que, assim como ele, soube integrar e potencializar seus negócios extra-televisivos com a rede que mantém, mas confia muito mais nos colaboradores, da mesma forma como fez Roberto Marinho para construir a Rede Globo.

Com a emissora em situação periclitante (foi o único dos negócios de seu grupo a registrar prejuízo em 2006, sendo também o único dirigido diretamente por ele), Silvio atingiu 77 anos de idade e não consegue promover a sua sucessão. Não por falta de parentes à disposição, se for o caso de uma transferência de comando familiar. Além do sobrinho Guilherme Stoliar, as filhas Cíntia Abravanel e Daniela Beirute trabalham no Grupo SS.

O problema é que Silvio Santos não sabe e nem quer largar a rapadura. Não vê que o tempo passou também para ele, e que é hora de celebrar as glórias conquistadas, abrindo caminho para quem possa projetá-las ao futuro. Enquanto não cair essa ficha – se é que ela vai cair –, o país assistirá ao ocaso de uma grande rede de televisão, que nasceu pela vontade e o esforço de um único homem, e pode desaparecer junto com ele.

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Jornalista