No Observatório da Imprensa na TV (terça-feira, 01/04) o tema discutido foi a pesquisa de opinião realizada entre pessoas que vivem em favelas. O trabalho foi encomendado pela Central Única de Favelas ao Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS). Os convidados de Alberto Dines foram os jornalistas Vera Araújo (O Globo) e Antonio Rocha Filho (Agora São Paulo), além do antropólogo Júlio César Tavares.
No editorial, o programa repetiu o tom da reportagem do Globo, que divulgou os resultados da pesquisa com exclusividade: mitos teriam sido derrubados pelos números, que representariam nua e cruamente a ‘Voz da favela’ (título da matéria de 23/03, um domingo). O principal deles, que foi destacado pelo jornal, foi o apoio de 47,9% dos entrevistados ao uso do Caveirão. Assim como o Globo afirmou nos subtítulos que ‘a maioria apóia o uso do Caveirão’, todos os convidados do OI na TV repetiram o mantra: ‘Sim, esse foi um resultado surpreendente.’ E, a partir daí, passaram a analisar e a interpretar.
Entretanto, havia um dado crucial que os debatedores não enxergaram: o índice mais elevado desse apoio ao Caveirão foi constatado entre moradores de favelas que raramente – ou nunca – sofrem com a ação do carro blindado, sobretudo na Zona Oeste, que puxou a média para cima (61,4%), enquanto na Zona Norte, onde as incursões são muito mais freqüentes, o apoio foi de apenas 33,6%. Essa informação foi publicada – sem destaque – na própria reportagem do Globo.
Cobertura ‘sensacionalista’
O fato de um veículo das Organizações Globo manipular números e fatos de acordo com seus interesses político-econômicos e ideológicos não surpreende. A história recente do Brasil é fértil em exemplos, desde a manchete do Globo de 44 anos atrás (‘Fugiu Goulart e democracia está sendo restabelecida’), passando pela tentativa de fraudar as eleições para governador no Rio em 1982, a omissão na campanha das Diretas em 1984 e a manipulação do debate entre Lula e Collor em 1989, apenas para ficar nos exemplos mais famosos. Entretanto, surpreende que um veículo com a proposta do Observatório da Imprensa simplesmente omita esse dado fundamental para a compreensão da realidade. A partir dele, poder-se-ia questionar quantos moradores da Zona Oeste e quantos da Zona Norte foram ouvidos e, a partir daí, chegar a uma média ponderada para se ter uma noção mais precisa da opinião de quem vive em favelas. E, sinceramente, é muito difícil encontrar alguém que apóie um carro de guerra que avisa por um megafone que ‘vai roubar sua alma’, sobretudo depois de viver esse susto. Nas favelas em que entrei e perguntei a respeito, todas na Zona Norte, ainda não encontrei.
A pesquisa revela ainda dois outros números deixados em segundo plano pelo Globo, mas que foram muito bem enfatizados pelo professor Júlio César Tavares durante o OI na TV. São 65,4% os entrevistados que afirmam que a cobertura da imprensa (jornal, rádio e televisão) dos fatos que ocorrem dentro das favelas é ‘sensacionalista (distorce os fatos e usa preconceitos)’. Esse dado, em que os entrevistados identificam a manipulação da mídia, por exemplo, simplesmente não aparece no texto da reportagem. É relegado a um quadradinho entre outros oito iguais a ele, perdendo, assim, o impacto que poderia causar.
Um novo debate
Outro item da pesquisa que teve a importância minimizada foi a afirmação de 73,2% dos entrevistados de que ‘a imagem que a sociedade tem da favela como ‘reduto de marginais’ é completamente distorcida, pois a grande maioria dos favelados é gente honesta’. Essa questão está ligada à anterior, pois quem distorce essa realidade, em grande parte, são as corporações de mídia.
Esses dois pontos não mereceram destaque na primeira página do jornal e nem nos subtítulos das páginas internas, embora tenham sido mais expressivos que aqueles escolhidos pelos editores: ‘legalização das drogas, com 60,5% contra, e apoio ao uso do Caveirão e das Forças Armadas, com 47,9% e 48,9% respectivamente’. Assim, abandonam-se dados extremamente impactantes para dar lugar a outros de menor impacto, mas que reforçam a linha editorial pretendida.
A divulgação dessa pesquisa, com esse grau de manipulação, é particularmente perigosa no atual momento pré-eleitoral. Há sempre a possibilidade de as Organizações Globo estarem trabalhando para pautar os candidatos de acordo com seus interesses – não seria um fato novo. Além disso, pode-se detectar uma tentativa de moldar a opinião dos moradores de favelas aos desejos desse grupo empresarial.
Seja como for, o fato é que os telespectadores do Observatório da Imprensa merecem um novo debate que contemple este outro aspecto da pesquisa – uma prova, inclusive, de que aqueles (e outros) mitos seguem firmes, de pé.
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Editor do Fazendo Media