Quando assumiu a direção da Radiobrás, em 2 de janeiro de 2003, Eugênio Bucci começou a escrever uma nova história da comunicação pública no Brasil. Com uma idéia na cabeça – lutar pelo direito à informação – munição intelectual e alguns poucos mas fiéis soldados, invadiu o Planalto Central brasileiro ciente de que sofreria vergonhosa derrota. Ao fim e ao cabo, deixou a guerra quando quis, como quis, o que só ocorre com grandes estrategistas. Venceu.
Recolheu as armas e iniciou seu périplo de retorno ao Planalto Paulista em 20 de abril de 2007, deixando para trás uma empresa transformada, um trabalho reconhecido por parte da população e as bases da reforma que o governo agora promove com a transformação da Radiobrás e da Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) em Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Em seus quatro anos, três meses e vinte dias de Brasília, pelejou, acertou, errou, de forma destemida, consciente que estava dos riscos.
O compilado das batalhas foi reunido em uma obra de 294 páginas que leva o nome de Em Brasília, 19 horas – A guerra entra a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula, da Editora Record. Uma ‘crônica de Aldeia’, no dizer do próprio autor, honesta e profunda, em que Bucci dialoga não apenas com os iniciados no debate da comunicação – muito embora o livro seja obrigatório para comunicadores em geral –, mas potencialmente com todos os brasileiros que querem conhecer como o governo Lula se processa.
É o melhor dos livros publicados, até agora, sobre os bastidores de Brasília pós-2003 – não porque faça revelações bombásticas, mas porque descreve verdades. Algumas delas incômodas, com valor de notícia, o que ficou comprovado no último fim de semana, quando o livro chegou às páginas dos principais diários do país. No sábado (5/4), Em Brasília, 19 horas mereceu uma resenha sensível e bem apurada de O Globo, uma página bem feita de O Estado de S.Paulo e uma leitura da Folha de S.Paulo, escrita pelo apresentador do Roda Viva, da TV Cultura, Carlos Eduardo Lins da Silva [ver aqui].
No trabalho, Bucci reproduz bilhetes de José Dirceu, então ministro da Casa Civil, e de Ricardo Berzoini, ex-ministro e atual presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), narra as reações do ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação (Secom) e do próprio presidente da República, e torna pública as ações subterrâneas do assessor de comunicação da Secom, Bernardo Kucinski. Sem essas histórias, não estaríamos diante de uma obra veraz. As contrariedades, disputas e pressões fizeram parte do cotidiano do presidente da Radiobrás. Mas elas são tratadas, no decorrer do texto, com extrema naturalidade – afinal, guerras pressupõem, no mínimo, dois lados contrapostos. E essa não foi uma guerra diferente de qualquer outra.
‘(…) Todas as minhas críticas sobre o equívoco editorial da Radiobrás já foram feitas por escrito e oralmente ao Gushiken, ao Bucci, ao Garcez, ao Dieguez, mais de uma vez. Além disso ofereci as soluções, por escrito, também mais de uma vez. Acho que um dos problemas do nosso governo foi a forma como deixamos setores vitais em mãos despreparadas e principalmente não dispostas a ouvir. Demiti-me do Conselho da Radiobrás por causa disso e o Lassance se demitiu há pouco por causa disso. Betty [sic] Carmona também se demitiu. Registre, para todos os efeitos, que a direção da Radiobrás imprimiu uma determinada direção à cobertura jornalística da Agência Brasil, chamada por eles de jornalismo público, que além de executada de forma incompetente e não atender as nossas necessidades de comunicação, nunca recebeu mandato explícito do governo.’ (Trecho de carta de Bernardo Kucinski, enviada a Gilberto Carvalho, chefe do gabinete de Lula, com críticas à gestão da Radiobrás, especialmente da Agência Brasil).
A face humana da guerra
Mas há muito mais que revelações de bastidor no livro. Em Brasília, 19 horas descreve o trabalho cotidiano de engenharia republicana que ocorreu na Radiobrás durante o governo Lula. Um esforço bélico de lapidação de conceitos, parâmetros editoriais e compromisso público realizado por personagens até então desconhecidos (entre os quais eu me incluo) e que são generosamente apresentados pelo autor-general.
Durante o tempo em que esteve à frente da Radiobrás, Bucci imprimiu – como ele mesmo afirma na introdução – o melhor de ‘sua personalidade para construir a impessoalidade’. Esse seu movimento foi assimilado por sua equipe, configurando uma gestão radicalmente partidária do apartidarismo, da objetividade, da pluralidade e da transparência. O resultado imperfeito – e muito aquém do necessário – a que se chegou é fruto das nossas limitações, não da falta de empenho.
O livro de Bucci também tem o mérito de contar a história da Radiobrás, uma empresa criada durante a ditadura militar e bancada há 30 anos pelo dinheiro do contribuinte ao custo médio de 100 milhões de reais por ano. Absolutamente desconhecida da maioria dos brasileiros – a não ser por ser a produtora dos 25 minutos destinados ao poder executivo em A Voz do Brasil – a Radiobrás é o óvulo da nova Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que será responsável pela TV Brasil, a imberbe TV Pública brasileira.
Conhecer de que trompas se origina a nova comunicação pública brasileira é fundamental, por um lado, para que os atuais gestores não repitam erros do passado e, por outro, para que os cidadão ampliem sua capacidade de fiscalizar os produtos editoriais da nova empresa, que será melhor à medida que mais e mais brasileiros dela se apropriarem. Tomar contato com o passado de servilismo e governismo imemorial pode impedir que retrocessos ocorram.
‘Em suma, apesar do período em que ficou encarregada da promoção de civismo autoritário, a Radiobrás jamais teve a seu cargo qualquer outra função que não fosse a de informar o público, e nisso baseou sua gestão iniciada em janeiro de 2003. Com base na lei, e no que entendíamos ser o espírito da lei no transcurso do tempo, reforçamos a objetividade impessoal dos noticiários e pusemos cada vez mais para longe os resquícios de promoção governamental que subsistiam dentro da organização. De novo, a dificuldade não era tanto a lei, mas os condicionamentos internos de profissionais, herdados de traumas profundos.’ (Em Brasília, 19 horas, pág. 85)
Em nome da liberdade
Outro ponto alto do livro é a defesa radical que Bucci faz da liberdade, para ele um valor inegociável. Homem de esquerda, o autor não é um liberal clássico, como afirma Lins da Silva em sua resenha da Folha – se fosse, não haveria nenhum problema, mas essa é uma afirmação falsa.
No capítulo ‘Um caso de bem-estar entre o presidente e a empresa’, Bucci recupera sua trajetória de militante iniciada no movimento estudantil, durante a ditadura militar, para demonstrar que sempre foi integrante de uma corrente de pensamento que via como ‘falso dilema’ a oposição entre liberdade e igualdade. Em seu raciocínio, a liberdade é uma causa universal, ‘mais que burguesa, mais que liberal’. Uma defesa libertária.
‘Entre janeiro de 2003 e janeiro de 2007, quando pude conversar com o presidente da República sobre imprensa, falei como um liberal convicto, embora o liberalismo não tenha sido propriamente a minha escola. A bandeira da liberdade pertence a todos, não apenas aos liberais que gostam de ostentar pedigree. Não há outro caminho: é preciso cultivar e cultuar incondicionalmente a imprensa livre, ou melhor, a imprensa, sem adjetivos – se ela não é livre, não é imprensa. Sem medo de excessos retóricos, digo que só ela pode iluminar a casa da liberdade.’ (Idem, pág. 225-226)
Ao empunhar a bandeira da liberdade, pressuposto para a existência e efetivação do direito à informação, Bucci apontou um novo caminho para a comunicação pública, tema que sequer figurava na agenda da democracia brasileira quando ele acordou presidente da estatal Radiobrás, cinco anos atrás. A guerra empreendida contribuiu para modificar esse cenário. No início do segundo mandato de Lula, se discutiu comunicação pública como jamais. Em Brasília, 19 horas é mais uma contribuição a esse debate, que ainda está longe de terminar.
Leia também
Livro narra conflitos na Radiobrás – Carlos Eduardo Lins da Silva, Luiz Antônio Novaes e Daniel Bramatti
Por dentro da máquina oficial de comunicação – Eugênio Bucci
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Jornalista, foi editor-chefe da Agência Brasil em 2006 e 2007 e redator-chefe da mesma Agência em 2004 e 2005; é integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; www.savazoni.com.br