Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Tolerar a desigualdade é submissão’

‘Todo povo é tão ruim quanto a desigualdade que ele tolera’, afirmou o sociólogo Leonardo Mello, especialista em orçamento público e indicadores sociais, que se despediu nesta segunda do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), onde atuou desde 1991.

‘O elemento-chave é a desigualdade social, eu sou a favor da desigualdade, sou e sempre fui a favor, e tenho a impressão de que todo mundo é. A dificuldade é de entendermos de que desigualdade estamos falando e de que tipo’, ressaltou o sociólogo em sua palestra nesta segunda-feira, dia 31, ao abordar o tema ‘A desigualdade social no Brasil e os processos de formulação das políticas públicas sociais compensatórias’, na Disciplina e Curso de Extensão Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, uma realização do Programa Acadêmico do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência – Netccon da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI).

Leonardo Mello parte do princípio de que a desigualdade no Brasil não permite que as pessoas vivam plenamente. Para ele, são fatores muito difíceis de medir e é preciso estar atento à mudança de paradigma entre a desigualdade baseada em um juízo de valor e uma atenção diferenciada por parte do Estado.

Procure um racista…

‘O que me incomoda é a ausência dos direitos. A nossa desigualdade não é da tolerância – é da submissão, e não do respeito. Este debate sobre a percepção da desigualdade e do que foge à norma é um objeto de juízo de valor’, afirma. E ainda acrescenta: ‘Junto a isso, tem a nossa especificidade, pois a persistência e a brutalidade da desigualdade no Brasil atingem um grande número de pessoas que não têm direito a nada.’

O especialista questiona: ‘Conseguimos perceber as desigualdades? Talvez a gente não se sinta igual o tempo todo.’ Explica que ao longo da vida aprendemos a visualizar as desigualdades, porém ‘algumas nós toleramos e outras nós reprimimos’. E citou exemplos, como a desigualdade de sexo entre homens e mulheres e de faixa etária.

‘Qual desigualdade é tolerável?’, insiste. ‘Eu tenho a impressão de que durante a educação na nossa infância, nós fomos treinados a nos afastarmos das pessoas que são socialmente inferiores a nós e a nos aproximarmos de quem é socialmente superior.’ De acordo com o sociólogo, é onde ocorre a imposição de juízos de valor sobre a constatação da desigualdade. ‘Se alguém é assaltado no Leblon é notícia de capa no jornal, mas quem é assaltado no subúrbio não é notícia porque isso é normal.’

Leonardo Mello reconhece que há racismo no Brasil. ‘Mas como é possível haver racismo num lugar onde supostamente não há racistas? Procure um no Brasil… É difícil. O ‘você sabe com quem está falando’ é outra forma de interagir com a desigualdade.’

A norma e o desvio

Citou ainda a questão da diferença de renda no debate sobre a pobreza. Um dos indicadores para falar de desigualdade é a renda; tenta-se medir a desigualdade calculando o quanto ganham os 10% que recebem mais e os 40% mais pobres – esta medida seria universal e comparável a outras sociedades capitalistas. ‘O Brasil é o campeão das desigualdades, mas nós temos instituições que medem com indicadores, avaliam e comparam os resultados com outros países. Certamente, há países africanos com mais desigualdade que o Brasil, mas não há ninguém para medir’, disse.

O sociólogo trouxe também informações sobre estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que mostram que 30% da população brasileira é tida como pobre. Como explicar a persistência de dados tão ruins da nossa realidade social? E ainda critica: ‘A desigualdade social no Brasil se manifesta em muitas esferas ao mesmo tempo, no acesso ao saneamento, no nível de escolaridade e na qualidade do ensino. Isso nos leva à máxima de que no Brasil não basta ser pobre, tem que sofrer. Em todas as esferas de nossa vida é tudo um pouco piorado quando se é mais pobre, ou quando se é mais desigual.’

Os dados sobre desigualdades são abundantes, segundo Mello. ‘O meu ponto exato é a percepção da desigualdade que é aceitável, não temos interesse na realidade social.’ Para ele, as políticas públicas são processos e há pouco tempo algumas agendas políticas eram menosprezadas, a exemplo da população negra, do portador de deficiência, das questões que envolvem o meio-ambiente.

‘Falta um meio-termo quando a gente discute a desigualdade. Ou se encara todo mundo igual, ou se transforma tudo em gueto.’ E pergunta: ‘Que dispositivos nos levam a nos interessarmos pelas desigualdades e pela formulação de políticas públicas compensatórias? Quando a sociedade desperta para o tema, é a hora que as políticas públicas são formuladas. Nós temos a percepção de que, quando discutimos desigualdade, estamos discutindo pessoas que não são normais. Gostamos de nos ver enquanto norma, e reprimir os que têm um comportamento desviante.’

Educação é prioridade?

Mas, para o pesquisador, o perigoso é achar que o outro está sempre à margem. ‘A nossa desigualdade não é da tolerância e do respeito aos direitos, é da submissão. A questão é olhar o outro como se olhássemos a nós mesmos’, ressaltou.

A democracia, considerou Leonardo Mello, é fruto do diálogo, e não da força, e o diálogo é baseado em argumentos. ‘O que importa para mim é a formação deste olhar, a igualdade e o respeito às diferenças.’ E para o sociólogo é importante ter argumentos e a percepção dos fatos: ‘Aonde tem um fato relevante para ser apurado, aonde você toca as pessoas, isto é a percepção pública.’ Para Mello, o essencial é apurar bem, contextualizar e produzir argumentos.

Uma forma de falar em políticas públicas é discutir orçamento público. Este é o tema da palestra que Leonardo Mello dará na Disciplina e Curso de Extensão de Jornalismo de Políticas Públicas Sociais do Netccon e da ANDI, em ‘Orçamento nacional: As possibilidades de intervenção e orientação para o social’, no dia 28 de abril no auditório da Central de Produção Multimídia da Escola de Comunicação da UFRJ.

O orçamento público, adiantou o sociólogo, é uma lei autorizativa, isto é, ‘ela autoriza a pôr em prática um projeto e não obriga, como seria no caso de uma lei mandatória. Nos EUA, por exemplo, o orçamento público é mandatório, lá você tem que fazer’, explicou. O orçamento público ainda é uma política pré-pública e a sociedade não tem sensibilidade para participar do processo de formulação de políticas públicas. Mello citou o sociólogo e também ativista dos direitos humanos Betinho, fundador do Ibase, ao fazer uma provocação para o público de 80 pessoas presentes à sua palestra: ‘Se a educação é prioridade e não gastarmos na educação, isso é demagogia.’

Equilíbrio e direito

Para Leonardo Mello, o mercado tem como função promover a desigualdade, pois é movido pela lógica da produção do lucro. ‘Mas essa não deveria ser a função do Estado. O Estado não pode promover a desigualdade; ele foi apropriado por setores que promovem a desigualdade no setor público. Aí não funciona mesmo. Existem exemplos de desigualdades de baixo de nossos narizes, como o grande número de assassinatos em favelas, as desigualdades no acesso à cultura. O que me incomoda é a apropriação de dinheiro público’, considerou.

Por que, então, pensar em políticas públicas compensatórias? Mello responde: ‘Primeiro, pelo grau de desigualdade que a nossa sociedade vive, não é razoável nem em renda, nem em salário ou em educação. Se as empresas promovem as desigualdades, está tudo bem. O Estado é que não pode fazer isso. Quando ele não coloca o dinheiro no lugar mais adequado e pensa qual política é mais ou menos compensatória. O problema da questão da desigualdade é que não há compensação. A política compensatória é função precípua do Estado. O conceito de público é para todo mundo, universal, mas não há dinheiro para fazer para todos, então política pública é tudo que atende a todos.’

Para Mello, a política compensatória está associada a políticas sociais e ‘a idéia de compensatória está em recompor a noção de equilíbrio e de direito’. Afirma que o essencial é sermos parte da equação do problema e da solução. ‘Todos nós, em diferentes etapas da vida, temos uma certa carência. O Estado não tem dinheiro para dar tudo o que a gente quer. A sociedade que temos é uma média da sociedade que todos nós queremos. E a política pública, portanto, é fruto dos nossos desejos que são compartilhados socialmente.’

Sobre o palestrante

Mestrando em Estatística pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), com especialização na Lyndon Johnson School of Public Affairs da Universidade do Texas em Austin, e graduação em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Leonardo Mello está desde 1991 no Ibase e, atualmente, trabalha na área de metodologia de pesquisas e indicadores.

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Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro; monitora da disciplina e curso de extensão Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, oferecida pela UFRJ em parceria com a Agência de Notícias dos Direitos da Infãncia (ANDI)